O Desafio Literário de novembro começa, como não poderia ser diferente, com a análise do primeiro romance de Fernando Sabino. O título em questão é “O Encontro Marcado” (Record), uma narrativa em que o autor mineiro se utiliza de sua própria biografia para compor um drama sensível e profundo sobre a juventude das décadas de 1940 e 1950. Li este livro no último final de semana e, agora, gostaria de comentá-lo com vocês neste post do Bonas Histórias.
Considerado, até hoje, uma obra cult, “O Encontro Marcado” é o livro que melhor retratou os anseios de uma geração de brasileiros. Ele expôs, como poucos romances fizeram até então no Brasil, as angústias dos jovens de sua época. Os anos de 1950, vale a pena lembrar, ficaram caracterizados pelo fim das grandes guerras mundiais, pelo início do rápido processo de urbanização do Brasil, pelo crescimento acelerado da economia nacional e pela efervescência que atingia a cultura, principalmente o cinema e a música, o esporte, a moda e a arquitetura brasileira. Diante do otimismo que tomava conta do restante do país, uma parcela da juventude nacional exalava a preocupação quanto ao seu futuro. Ela se questionava sobre como agir diante de tantas mudanças sociais. A insegurança, o pessimismo e o descompasso de valores levaram muitos jovens desse período à depressão ou ao inconformismo.
E o que tem “O Encontro Marcado” efetivamente com esse panorama histórico? O romance de estreia de Fernando Sabino, que mistura ficção com muitas passagens autobiográficas, retrata fielmente esse drama geracional. Não à toa, a publicação se tornou leitura de cabeceira de muitos jovens daquela época. Ela foi, mais tarde, traduzida para outros idiomas e lançada no exterior. No Brasil, onde se tornou best-seller, “O Encontro Marcado” ganhou também versões teatrais.
Escrito entre março de 1954 e julho de 1956, “O Encontro Marcado” foi publicado no finalzinho de 1956. A versão inicial da obra tinha mais de 1.300 páginas. Coube ao autor cortar mais de 80% do seu texto para chegar ao tamanho padrão dos romances. Na metade da década de 1950, Fernando Sabino era um jornalista na casa dos trinta anos de idade. Integrante de um círculo famoso de escritores, Sabino havia deixado Belo Horizonte e morava há uma década no Rio de Janeiro. Ele trabalhava em jornais e revistas de porte nacional e já era relativamente conhecido como um dos bons cronistas nacionais. Por isso, a surpresa do público e do mercado editorial quando ele apresentou seu romance. A passagem entre a escrita jornalística/literatura de crônicas para a ficção longa tinha sido concluída com êxito.
O sucesso imediato da obra permitiu a Fernando Sabino, já em 1957, realizar um sonho acalentado desde a infância: viver exclusivamente da escrita. Foi o que ele fez a partir de então, abandonando para sempre o trabalho de funcionário público. Além de publicar regularmente novos livros, Sabino passou a escrever crônicas diárias no Jornal do Brasil. Na conceituada Revista Senhor, suas crônicas eram mensais. Estava pautado o caminho para o surgimento de um dos maiores escritores de sua geração e de um dos principais cronistas da história brasileira.
Apesar de ser uma descrição dos dramas dos jovens da metade do século XX, “O Encontro Marcado” permaneceu, nas décadas seguintes, com sua reputação inabalada. Ele é visto, ainda hoje, como um romance icônico. Prova disso está no número de reedições do livro. A obra se aproxima de atingir a marca de 100 edições, algo extremamente raro de ocorrer no mercado editorial brasileiro. Para a maioria dos leitores nacionais, esta é a publicação mais famosa de Fernando Sabino. Mesmo com outros títulos do autor sendo mais premiados, “O Grande Mentecapto” (Record), prêmio Jabuti de 1980, e “Livro Aberto” (Record), prêmio Jabuti de 2002, e de melhor qualidade, “Melhores Crônicas de Fernando Sabino” (Record) e “O Menino no Espelho” (Record), por exemplo, “O Encontro Marcado” continua no imaginário coletivo quando o nome de Sabino é citado.
O protagonista deste romance é Eduardo Marciano, o filho único de um casal de classe média que morava em Belo Horizonte. O leitor acompanha as diferentes fases de vida de Eduardo, de sua infância na capital mineira até o instante que ele, já morando no Rio de Janeiro e com aproximadamente 30 anos de idade, se separa da sua esposa. Ou seja, temos aqui um exemplo clássico de romance de formação, tipologia criada pelos teóricos da literatura. Nesse tipo de narrativa, o leitor conhece a trajetória de uma personagem do seu nascimento/infância até o seu crescimento/amadurecimento. Assim, é possível verificar o seu desenvolvimento moral, físico, psicológico, social e ideológico.
A principal característica deste romance é o drama psicológico do seu protagonista. Eduardo Marciano é uma pessoa melancólica, solitária e eternamente angustiada com sua vida. Nada parece contentá-lo. Se está morando em Minas, ele quer ir para o Rio de Janeiro. Uma vez no Rio, passa a ver com saudosismo o tempo vivido em sua terra natal. Quando solteiro, queria se casar. Casado, queria viver como solteiro. No período em que praticava natação, achava entediantes os treinos e as competições. Depois que abandonou as piscinas, sentia falta das braçadas e lembrava emocionado de suas conquistas e recordes. Se estivesse sozinho à noite, ansiava por uma companhia feminina na cama. Quando a conseguia, sentia nojo da parceira, remorso pela infidelidade conjugal ou raiva de si mesmo pelo sexo descompromissado. Preferia, assim, terminar a noite dormindo casto e sem ninguém por perto. Realmente, era quase impossível contentá-lo!
O único desejo imutável de Eduardo é o de se tornar escritor. Sua paixão pela literatura percorre todas as páginas do livro. Ao mesmo tempo em que ele se sente atraído pelo ofício da escrita, algo sempre parece bloqueá-lo. No início é a oposição da família. Depois, as noites passadas com os amigos na boemia e na bebedeira. Mais tarde, é a vida de casado e o trabalho como funcionário administrativo em uma repartição pública. Sempre há algo a minar seu sonho e a adiar a produção do seu primeiro romance. De certa maneira, o passar dos anos e o amadurecimento do protagonista conspiram contra seus desejos literários. Isso também acontece com os amigos próximos de Eduardo Marciano. Em algum momento de suas trajetórias, eles deixaram a poesia ou a ficção de lado, investindo exclusivamente em profissões comuns. Apesar de ninguém produzir efetivamente literatura, todo mundo adora discutir sobre os caminhos que ela segue. Os debates literários feitos pelas personagens são um dos pontos altos da obra de Fernando Sabino.
“O Encontro Marcado” possui aproximadamente 290 páginas. Ele está dividido em duas partes: “I - A Procura” e o “II – O Encontro”. Essas partes têm, cada uma, três capítulos e são narradas em terceira pessoa (narrador observador muito próximo ao protagonista). Em “A Procura”, temos o relato da época em que Eduardo Marciano viveu em Belo Horizonte. “O Ponto de Partida” narra a infância, “Geração Espontânea” a adolescência e “O Escolhido” o início da fase adulta da personagem principal. Na infância, temos um Eduardo muito arteiro e bastante mimado pelos pais. Ele está sempre aprontando suas traquinagens dentro de casa. Na adolescência, os traços de revolta e de inconformismo do rapaz surgem com intensidade. As descobertas da sexualidade, os primeiros namoros, a paixão pela literatura e as desavenças com os pais marcam esse estágio de vida. No começo da fase adulta, as bebedeiras frequentes com os amigos literatos, Mauro e Hugo, por Belo Horizonte, o sonho de ser escritor, o difícil começo na carreira de jornalista e as arruaças pelas ruas da cidade acabam moldando a rotina do jovem. Nessa época, ele também se apaixona por Antonieta. A moça é filha de um importante ministro do governo federal. Ou seja, ela mora no Rio de Janeiro.
Na segunda parte do romance, “O Encontro”, Eduardo Marciano já está morando no Rio. Os três capítulos dessa parte são: “Os Movimentos Simulados”, “O Afogado” e “A Viagem”. No primeiro, temos o início do casamento de Eduardo e Antonieta. O novo círculo de amizades do rapaz na capital federal e o trabalho como funcionário público ganham destaque. No segundo capítulo, as crises existenciais do protagonista se intensificam. Ele passa a questionar tudo, inclusive seu casamento, que entra em crise. E, por fim, no último capítulo da obra, temos um homem solitário e triste, que poderá ser salvo apenas pela literatura.
“O Encontro Marcado” é um livro muito bom. Sua leitura se revelou mais difícil do que eu imaginei à princípio. Apesar de retratar uma época específica, não achei o romance datado ou envelhecido. As angustias das personagens, principalmente do protagonista, são parecidas com as sentidas pelos jovens de outras épocas. É verdade que algumas coisas mudam aqui e ali, mas o sentimento de contestação, o pessimismo juvenil, a incompreensão com a vida da geração anterior, o receio com o futuro, o vazio interior, as dúvidas quanto à sexualidade, a busca pelo verdadeiro amor e o sentimento de não pertencimento à sociedade são universais.
Se o leitor procura essencialmente uma narrativa com muita ação e reviravoltas na trama, é possível que se frustre com este livro. “O Encontro Marcado” está mais para um drama psicológico do que para um thriller. Por isso, é preciso mergulhar na mente de Eduardo Marciano e encarar seus conflitos que são, na maioria das vezes, de ordem emocional. Como retrato da vida de Fernando Sabino antes da fama e sob o ponto de vista do estudo pormenorizado de sua biografia, esse romance é sensacional. Apesar de incluir muita ficção em seus relatos, é possível verificar nesta história a enorme quantidade de passagens autobiográficas e de personagens reais. Se fosse lançado hoje em dia, muita gente iria classificar esta obra como uma autoficção.
Quanto às personagens reais, é interessante relacionarmos os amigos, os parentes e os conhecidos de Fernando Sabino com os de Eduardo Marciano (não é preciso dizer que o protagonista do romance é o alter ego do escritor). Mauro e Hugo são, respectivamente, Hélio Pellegrino e Otto Lara Resende. Sabino, Pellegrino e Lara Resende formavam juntamente com Paulo Mendes Campos um grupo de jovens literatos de Belo Horizonte. A trupe era autointitulada de “Os Vintanistas”, pois seus integrantes tinham cerca de vinte anos na época. A troca de correspondência de Fernando Sabino com esses amigos seria, mais tarde, publicada em um livro: “Cartas na Mesa” (Record), de 2002. Antonieta é Helena Valladares, a primeira esposa do autor. E Toledo, personagem que atua como uma espécie de ídolo e mentor literário do protagonista do romance, é Guilherme César.
A relação entre passagens reais e fictícias da obra fica clara desde o primeiro momento. No primeiro capítulo, temos a história de Eduardo, ainda criança, tentando salvar uma galinha comprada pela mãe. Esse mesmo episódio seria, tempos depois, inserido no livro “O Menino do Espelho” (Record), outra obra que mistura episódios reais e trechos imaginados pelo autor. Por outro lado, nas páginas iniciais de “O Encontro Marcado”, vemos que Eduardo é filho único (uma invenção, pois Sabino tinha irmãos). O tempo inteiro há essa mescla, de passagens verdadeiras e fictícias.
A profundidade do texto de “O Encontro Marcado” se dá pelo discurso existencialista embutido no meio da trama. As próprias personagens discutem aspectos filosóficos de suas vidas, questionando, por exemplo, a morte, o efêmero, o contraditório, a inutilidade das coisas e o materialismo. Esse debate é feito principalmente nas conversas entre Eduardo, Hugo e Mauro e possui um verniz pessimista e um tanto sombrio, elementos típicos das personalidades dessas personagens.
Juntamente com os comentários existencialistas, o texto do romance amarra uma forte discussão literária. Os aspirantes a escritor conversam sobre os movimentos estilísticos da época e apresentam suas dúvidas sobre como produzir de fato literatura. Os medos e a insegurança do grupo conferem boas passagens, tornando a trama ainda mais emocionante e verossímil. Se alguns trechos desse debate literário se tornaram datados e até mesmo incompreensíveis para os novos leitores, na maior parte do tempo é possível acompanhar as divagações e opiniões de Eduardo, Hugo e Mauro.
Outro ponto que gostei de “O Encontro Marcado” foi o do contexto político. Ao fundo do conflito principal, temos o fim do Estado Novo, o retorno às eleições no país e o último governo Getúlio Vargas. Muito sutilmente, é possível notar que a crise política dessa época já era orquestrada pela elite conservadora com o apoio dos militares.
Não é possível falar de “O Encontro Marcado” sem citar a linguagem utilizada por Fernando Sabino. A oralidade dos discursos e o coloquialismo do texto são marcas muito fortes desse romance e características estilísticas que o autor levaria para suas futuras obras. Este estilo de escrita, simples, direto e com palavras muito relacionadas ao cotidiano das pessoas comuns, foi trazido do jornalismo e das crônicas, materiais que Sabino produziu à exaustão. Esse recurso também potencializa o efeito de confidência e de ar autobiográfico que o romance carrega. A impressão é que estamos lendo um texto que foi produzido outro dia (na verdade, o romance tem mais de 60 anos).
E, por fim, é preciso mencionar o desfecho espetacular deste livro. Se há algumas partes em que a trama se torna arrastada, repetitiva e um tanto chata, o leitor precisa seguir em sua leitura para encontrar um dos finais mais interessantes e originais da literatura nacional. Aqui, Fernando Sabino utiliza o cruzamento de diferentes realidades no meio da trama, misturando realidade e ficção dentro da própria história. É uma maluquice genial inventada por Juan Carlos Onetti, escritor uruguaio que influenciou grandes autores latino-americanos nas décadas de 1950 e 1960, como Julio Cortázar, Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa e, neste caso, Fernando Sabino. Esse expediente narrativo que marcou a prosa de Onetti é caracterizado pela “entrada” do autor na sua própria história ficcional e, como consequência, o diálogo direto dele com suas personagens. Nas páginas finais de “O Encontro Marcado”, há a aproximação de Fernando Sabino com Eduardo Marciano, em uma mistura deliciosa de verdade e de invenção. Ou seja, autor e seu alter ego passam a interagir diretamente, sem qualquer divisão de planos existenciais entre eles. É ou não é um recurso maravilhoso, hein?
Não havia forma melhor de começar o Desafio Literário de novembro. “O Encontro Marcado” é um livro incrível. Apesar de ser uma leitura difícil e com vários elementos específicos de sua época de publicação, ele ainda mantém a força do seu texto, um retrato fidedigno dos dramas existencialistas da juventude. Com este livro, Fernando Sabino mostrou que não era apenas um ótimo cronista, mas que podia ser também um excelente romancista. Sua narrativa criativa e sua estética ousada fizeram de “O Encontro Marcado” um clássico da literatura brasileira.
Seguindo no estudo da ficção de Sabino, na próxima sexta-feira, dia 9, volto ao Bonas Histórias para postar a análise de outro romance marcante deste autor: “O Grande Mentecapto” (Record). Não perca as próximas etapas do Desafio Literário de Fernando Sabino!
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