O quarto livro de Albert Camus que vamos analisar, hoje, no Desafio Literário de setembro é “O Homem Revoltado” (Record). Esta é a publicação mais polêmica do escritor e filósofo franco-argelino ganhador do Nobel de Literatura. Neste longo ensaio, o autor de “O Estrangeiro” (Record) apresenta a trajetória histórica e metafísica da Revolta, um dos conceitos mais importantes do Absurdismo. O Absurdismo, vale a pena citar, foi a corrente filosófica existencialista criada pelo dinamarquês Søren Kierkegaard na primeira metade do século XIX e, mais tarde, aprimorada pelo próprio Albert Camus. “O Homem Revoltado” e “O Mito de Sísifo” (Record), ambas coletâneas de ensaios de Camus, são os títulos que ajudaram a impulsionar o Absurdismo no século XX.
Publicado em 1951, “O Homem Revoltado” integra a trilogia da Revolta, composta também pela “A Peste” (Record), romance de 1947, e “Os Justos”, peça teatral de 1949. Esta coleção de obras escancara o viés negativo da violência praticada pelo ser humano, principalmente durante as revoluções realizadas nas primeiras cinco décadas do século passado. Tanto as revoltas de esquerda (entenda-se a Revolução Comunista de 1917) quanto as revoltas de direita (leia-se os movimentos nazifascistas dos anos de 1930) usaram e abusaram do assassinato em massa e do terror de Estado como ferramentas de controle da população. O resultado foi a carnificina de milhões e milhões de pessoas e a instalação de sistemas de governo em que a liberdade e a justiça, valores centrais do humanismo, se tornaram escassos ou até mesmo inexistentes. Ou seja, em nome de ideologias ora mais desenvolvidas ora mais frágeis, o homem contemporâneo incorporou a conduta assassina em sua rotina diária, ficando indiferente aos reflexos cruéis dessa prática.
Quando “O Homem Revoltado” foi lançado, Albert Camus era considerado um dos grandes pensadores do seu tempo. Seus livros anteriores suscitaram elogios rasgados de boa parte dos intelectuais franceses, o que representou a inserção do autor franco-argelino no panteão dos principais filósofos de sua geração. Jean-Paul Sartre, por exemplo, encantado com “O Estrangeiro”, romance mais famoso do autor, e com “O Mito de Sísifo”, obra máxima do Absurdismo, se tornou um grande fã de Camus e, por consequência, se transformou em um grande amigo. Contudo, a publicação de “O Homem Revoltado” colocou esse prestígio à prova. O novo livro provocou reações acaloradas e fez a vida e a carreira de Camus virarem de ponta-cabeça.
Quase todos os intelectuais franceses da primeira metade da década de 1950 se colocaram contrários às opiniões e às argumentações deste ensaio. Do dia para a noite, Albert Camus virou figura malquista na França e alvo de intensas críticas por parte dos seus pares. Não é errado dizer que o escritor sofreu um linchamento moral e público com o repúdio dos seus colegas. As discussões foram tão intensas que muita gente passou a virar o rosto para Camus e encerrar a amizade de anos com ele (e há quem ache que essa prática é algo restrito aos dias de hoje e às polêmicas das redes sociais). Sartre foi um desses opositores mais ferozes ao “O Homem Revoltado”. Depois de uma crítica extremamente negativa publicada pelo autor de “O Ser e o Nada” (Vozes), os dois escritores franceses mais importantes da época terminaram para sempre a amizade. A dupla sequer voltou a se falar depois disso.
O prestígio de Albert Camus só seria retomado, em parte, com a publicação de “A Queda” (Record), um romance desabafo de 1956, e, de maneira definitiva, com o recebimento do Nobel em 1957. Portanto, foram necessários entre cinco e seis anos para o autor se redimir da recepção negativa e das críticas pesadas dirigidas a “O Homem Revoltado”.
Sabendo dessa história, a dúvida que tinha no início da leitura deste ensaio era: “Por que Camus foi tão avacalhado pelos seus pares se escreveu uma obra contrária à violência de sua época?”. Para descobrir a resposta para essa questão intrigante, li ao longo dos últimos dias este livro.
“O Homem Revoltado” é uma publicação grande, a maior de Albert Camus que foi e que será analisada no Desafio Literário desse mês. O ensaio possui quase que 400 páginas. Elas estão divididas em cinco partes: “O Homem Revoltado”, “Revolta Metafísica”, “A Revolta Histórica”, “Revolta e Arte” e “Pensamento Mediterrâneo”. Precisei do final de semana inteiro (noite de sexta, manhã e tarde de sábado e tarde e noite de domingo) para concluí-lo completamente. Admito que sua leitura não é das mais fáceis. É preciso atenção redobrada por parte do leitor e um mergulho profundo na história, na literatura e, principalmente, na filosofia para entender a proposta do autor. Se a parte conceitual do livro é pesada e complexa, ao menos a linguagem utilizada é acessível e permite uma boa compreensão dos pensamentos e das ideias do franco-argelino. Apesar de difícil, esta obra não é daquelas incompreensíveis e hermeticamente fechadas. Não! Ela chega a ser até palatável quando o leitor é do tipo esforçado (e acima de tudo corajoso).
Na Introdução, Albert Camus apresenta a proposta do seu livro. Se em “O Mito de Sísifo” ele falava do suicídio a partir do Absurdo, em “O Homem Revoltado” ele falará do assassinato na perspectiva da Revolta. A Revolta é um dos elementos essenciais do Absurdismo, a corrente filosófica desenvolvida por Camus. Esse tema é relevante pois a primeira metade do século XX foi um período de grandes chacinas perpetradas pelas ideologias políticas. Tanto a esquerda quanto a direita mataram milhões de pessoas em nome de seus ideais.
“A primeira e única evidência que assim me é dada, no âmbito da experiência absurda, é a revolta. Privado de qualquer conhecimento, impelido a matar ou a consentir que se mate, só disponho dessa evidência, que é reforçada pelo dilaceramento em que me encontro. A revolta nasce do espetáculo da desrazão diante de uma condição injusta e incompreensível”.
Na parte I, chamada de “O Homem Revoltado” (homônima, portanto, ao título do livro), Camus explica que o homem revoltado é aquele que, depois de muito tempo falando sim, passa a dizer não. Essa negação de algo sensível para ele e para os seus semelhantes (a revolta pode ser tanto individual quanto coletiva) caracteriza a Revolta e origina-se da tomada de consciência de uma situação, agora, insustentável. A consciência traz consigo a necessidade de liberdade e de justiça. Viver sem livre-arbítrio e sem direitos assegurados não faz mais sentido para este homem. É preferível morrer a não ter sua situação atendida. A Revolta é o ato do homem informado, que tem consciência de seus anseios básicos. Como consequência natural à Revolta, o homem passa a se opor ao sagrado (as leis ditas divinas).
“Pode-se ainda precisar o aspecto positivo do valor que toda a revolta pressupõe, comparando-a com uma noção totalmente negativa como a do ressentimento (...). Na verdade, o movimento da revolta é mais do que um ato de reivindicação, no sentido mais forte da palavra (...). A revolta (...) fragmenta o ser e ajuda-o a transcender. Ela liberta ondas que, estagnadas, se tornam violentas (...). Na origem da revolta, há pelo contrário, um princípio de atividade superabundante e de energia”.
Na segunda parte, “Revolta Metafísica”, Albert Camus explica que o homem revoltado possui um caráter metafísico. O homem se insere contra a sua condição e contra a criação. Ele busca, por meio da revolta, a justiça. Essa revolta metafísica não é feita por ateus e sim por religiosos.
“Este se insurge contra um mundo fragmentado para dele reclamar a unidade. Contrapõe o princípio de justiça que nele existe ao princípio de injustiça que vê no mundo. Primitivamente, nada mais quer senão resolver essa contradição, instaurar o reino unitário da justiça, se puder, ou da injustiça, se a isso for compelido. Enquanto espera, denuncia a contradição. Ao protestar contra a condição naquilo que tem de inacabado, pela morte, e de disperso, pelo mal, a revolta metafísica é a reivindicação motivada de uma unidade feliz contra o sofrimento de viver e de morrer”.
Na sequência, temos um apanhado histórico da revolta metafísica. São usados conceitos filosóficos, passagens religiosas e enredos literários para exemplificar essa evolução. Passamos, assim, pela mitologia grega (Prometeu), pelo velho testamento (Caim), pelo novo testamento (Jesus Cristo), pelos personagens de Sade e pelos heróis românticos (a luta de Satã e da morte no “Paraíso Perdido”). Todas essas figuras religiosas, históricas e/ou ficcionais realizaram revoltas que mudaram suas realidades.
“As primeiras teogonias nos mostram Prometeu acorrentado a uma coluna, nos confins do mundo, mártir eterno, excluído para sempre de um perdão que ele se recusa a solicitar. Ésquilo torna ainda maior a estatura do herói, cria-o lúcido (‘nenhuma desgraça que eu não tenha previsto recairá sobre mim’), faz com que ele grite bem alto o seu ódio a todos os deuses e, mergulhando-o em ‘um tempestuoso mar de desespero fatal’, oferece-o finalmente aos raios e aos trovões: ‘Ah! Vejam a injustiça que suporto!’”.
Depois, avançamos para a concepção da morte de Deus por Nietzsche, passamos pela negação completa de Stirner e chegamos à revolta sistemática de Marx. O apanhado histórico prossegue até o século XIX, com a literatura de Fiódor Dostoiévski (principalmente com a análise de Ivan, protagonista de “Os Irmãos Karamazov”). Neste mundo sem Deus e sem ideais morais, o homem se acha sozinho e desamparado.
“A partir do momento em que o homem não acredita mais em Deus nem na vida imortal, ele se torna ´responsável por tudo aquilo que vive, por tudo que, nascido da dor, está fadado a sofrer na vida’. É a si próprio, e somente a si próprio, que cabe encontrar a ordem e a lei (...). Só há liberdade em um mundo onde o que é possível e o que não o é se acham simultaneamente definidos. Sem lei, não há liberdade. Se o destino não for orientado por um valor superior, se o acaso é o rei, eis a marcha para as trevas, a terrível liberdade dos cegos”.
Por fim, temos um retrato da Revolta no século XX a partir da visão do Absurdismo e do niilismo. Como exemplos práticos, temos os conceitos de Lautréamont e de Rimbaud. O surrealismo é, na opinião de Albert Camus, o movimento artístico que melhor retratou o homem revoltado.
“O conformismo é uma das tentações niilistas da revolta que domina uma grande parte de nossa história intelectual. Em todo caso, ela mostra como o revoltado que passa à ação, quando se esquece de suas origens, é tentado pelo maior dos conformismos. Ela explica, portanto, o século XX. Lautréamont, geralmente louvado como o bardo da revolta pura, anuncia, muito pelo contrário, o gosto pela subserviência intelectual que se dissemina pelo nosso mundo (...). A revolta absoluta, insubmissão total, sabotagem como princípio, humor e culto do absurdo, o surrealismo, em sua intenção primeira, define-se como o processo de tudo, a ser sempre recomeçado. A recusa de todas as determinações é nítida, decisiva e provocadora. ‘Somos especialistas da revolta’. Máquina de revirar o espírito, segundo Aragon (...)”.
A terceira parte de “O Homem Revoltado” é “A Revolta Histórica”. Esta é a seção mais extensa do livro, com mais de 180 páginas (ocupando quase que a metade da obra). Ao longo dos seis capítulos de “A Revolta Histórica”, Camus explica as diferenças conceituais e as semelhanças entre a Revolução Russa de 1917 e as Revoluções Nazifascistas da década de 1930. Ele começa dizendo que a busca pela liberdade está na raiz de todas as revoluções. Sem liberdade, a justiça se torna inconcebível para os revoltosos. Entretanto, a partir de um momento da revolução, a justiça exige a suspensão da liberdade. Aí surge em cena o terror, a violência e as perseguições. Os revoltosos se pré-dispõem a assassinar os inimigos internos e externos em nome de seus ideais, que estão acima de qualquer coisa e de todos.
A revolução é o estágio mais avançado da revolta. Nessa etapa, a busca é pela destruição do Estado e do sistema vigente. Assim, enquanto a revolta mata homens, a revolução mata ao mesmo tempo homens e princípios.
A primeira grande revolta é do escravo contra seu senhor. O exemplo mais emblemático é o da Revolta de Espártaco na Roma Antiga. A segunda grande revolta é do povo contra o rei. O caso mais marcante é o da Revolução Francesa de 1789. Depois vem a revolta do proletário contra a burguesia. Nessa etapa, a Revolução Russa de 1917 ganha protagonismo. O século XX foi próspero em produzir revoltas niilistas de direita e de esquerda. De semelhança, ambas usaram a violência como a principal força motriz das ações dos revoltosos.
“Começa o reino da história, e, identificando-se unicamente com a sua história, o homem, infiel à sua verdadeira revolta, de agora em diante estará fadado às revoluções niilistas do século XX, que, ao negarem toda moral, buscam desesperadamente a unidade do gênero humano através de um extenuante acúmulo de crimes e guerras (...). Os revolucionários do século XX tiraram o arsenal que destruiu definitivamente os princípios formais da virtude. Dela, preservaram a visão de uma história sem transcendência, resumida a uma contestação perpétua e à luta entre as vontades de poder. Sob seu aspecto crítico, o movimento revolucionário de nosso tempo é em primeiro lugar uma denúncia violenta da hipocrisia formal que preside a sociedade burguesa. A pretensão, parcialmente fundamentada, do comunismo moderno, como a do fascismo, mais frívola, é denunciar a mistificação que corrompe a democracia burguesa, os seus princípios e suas virtudes (...). O mundo de hoje só pode ser, aparentemente, um mundo de senhores e de escravos, porque as ideologias contemporâneas, aquelas que modificam a face do mundo, aprenderam com Hegel a pensar a história em função da dialética domínio/servidão”.
A Revolução Russa utiliza-se dos princípios alemães de Marx e Engels para destruir o sistema político-social então vigente e construir um novo (elementos esses que caracterizam uma verdadeira revolução). Contudo, a consequência mais imediata desse processo foi a violenta tomada de poder e das instituições pelo novo regime, assim como um governo que desprezava os ideais de liberdade e de justiça.
“Pisarev, teórico do niilismo russo, constata que os maiores fanáticos são as crianças e os jovens. Isso também é verdade em relação às nações. Nessa época, a Rússia era uma nação adolescente extraída a fórceps, havia apenas um século, por um czar ainda suficientemente ingênuo para cortar ele próprio as cabeças dos revoltosos. Não é de admirar que ela tenha levado a ideologia alemã aos extremos de sacrifício e de destruição de que os mestres alemães só tinham sido capazes em pensamento (...). Nasce nesse momento uma nova e um tanto horrenda raça de mártires. Seu martírio consiste em aceitar que o sofrimento seja infligido aos outros; eles se escravizam ao seu próprio domínio”.
A Revolução Russa se difere das Revoluções Nazista e Fascista sobretudo por uma questão: o embasamento ideológico. Se as revoltas alemã e italiana da década de 1930 eram irracionais (no sentido de não estarem ancoradas em princípios que a legitimassem), o comunismo era racional (estava embasado na teoria de Marx e Engels da luta de classes). Porém, todas essas revoluções foram perpetradas pela violência e mantidas pelo terror estatal. Nesse ponto, elas são idênticas: produziram milhões de assassinatos.
“Houve certamente razão em insistir na exigência ética que é a base do sonho marxista. Somos obrigados a reconhecer, antes de examinar o malogro do marxismo, que ela constituiu a verdadeira grandeza de Marx. Ele colocou o trabalho, sua degradação injusta e sua dignidade profunda no centro de sua reflexão (...). Marx acreditou que os fins históricos, pelo menos, se revelariam morais e racionais. Nisto reside sua utopia”.
A tomada de poder feita por Lenin e, depois, mantida/intensificada por Stalin desprezou grande parte dos princípios de Marx em nome da praticidade cotidiana. Os governantes soviéticos deram mais atenção aos elementos policiais-militares do que aos econômicos-ideológicos (como previsto originalmente por Marx). A Revolução Russa ficava, ano a ano, mais violenta e aguçava seu instinto assassino.
“Lenin utiliza nele seu método favorito, que é a autoridade. Com a ajuda de Marx e de Engels, começa por insurgir-se contra qualquer reformismo que pretenda utilizar o Estado burguês, organismo de dominação de uma classe sobre a outra (...). A contradição última da maior revolução que a história conheceu não reside inteiramente no fato de aspirar à justiça através de um séquito ininterrupto de injustiças e de violências. Servidão ou mistificação é a desgraça comum em todos os tempos (...). Não é justo identificar os fins do fascismo com os do comunismo russo. O primeiro representa a exaltação do carrasco pelo próprio carrasco. O segundo, mais dramático, a exaltação do carrasco pelas vítimas. O primeiro nunca sonhou em libertar todos os homens, mas apenas em libertar alguns e subjugar outros. O segundo, em seu princípio mais profundo, visa libertar todos os homens escravizando todos, provisoriamente. É preciso reconhecer-lhe a grandeza da intenção. Mas é legítimo, pelo contrário, identificar os seus meios com o cinismo político que ambos buscam na mesma fonte, o niilismo moral”.
Em “Revolta e Arte”, a quarta parte do livro, temos uma perspectiva do conceito filosófico de Albert Camus aplicado às artes. A revolta do ponto de vista artístico é sempre contra o real. Os artistas de todas as épocas promovem revoluções que negam a realidade objetiva da vida em prol da busca incessante pela beleza idílica.
“Para criar a beleza, ele (o artista) deve ao mesmo tempo recusar o real e exaltar alguns de seus aspectos. A arte contesta o real, mas não se esquiva dele. Nietzsche podia recusar qualquer transcendência, moral e divina, dizendo que essa transcendência constituía uma calúnia ao mundo e à vida. Mas talvez haja uma transcendência viva, prometida pela beleza, que pode fazer com que esse mundo moral e limitado seja amado e preferido a qualquer outro. A arte nos conduzirá dessa maneira às origens da revolta, na medida que tenta dar forma a um valor que se refugia no devir perpétuo, mas que o artista pressente e quer arrebatar à história”.
Essa dinâmica artística fica mais explícita quando olhamos para os romances. A vantagem da literatura está em permitir ao homem (leitor) uma análise de sua realidade (transplantada para o papel) por um olhar de fora, de um terceiro. A revolta proposta pelo artista fica restrita ao universo ficcional criado e manipulado pelo romancista.
“Uma análise detalhada dos romances mais célebres mostraria, em perspectivas diferentes a cada vez, que a essência do romance reside nessa perpétua correção, sempre voltada para o mesmo sentido, que o artista efetua sobre sua própria experiência. Longe de ser mortal ou puramente formal, essa correção visa primeiro à unidade e traduz por aí uma necessidade metafísica. Nesse nível o romance é antes de tudo um exercício da inteligência a serviço de uma sensibilidade nostálgica ou revoltada”.
A última parte de “O Homem Revoltado” é “Pensamento Mediterrâneo”. No desfecho da obra, Camus diz que todos os crimes, sejam eles irracionais (das revoltas nazifascistas) ou racionais (das revoltas comunistas), traem igualmente os valores propostos por suas revoluções. O assassinato não deveria ser fruto nem a raiz da ação do homem revoltoso. O crime, quando praticado em massa e indistintamente, é o descompasso de uma revolução. Apesar de apoiado no século XX por muitos artistas (ou ignorado por tantos outros que preferiram fechar os olhos às ações criminosas), a matança em massa de pessoas é, independentemente das circunstâncias, um atentado aos princípios básicos da humanidade (como o valor da vida, a justiça e a liberdade).
“No auge da tragédia contemporânea, entramos então na intimidade do crime. As fontes da vida e da criação parecem ter secado. O medo imobiliza a Europa povoada de fantasmas e máquinas. Entre duas hecatombes, instalam-se cadafalsos no fundo das masmorras. Torturadores humanistas aí celebram em silêncio seu novo culto. Que grito os perturbaria? Os próprios poetas, diante do assassinato de seu irmão, declaram orgulhosamente que estão com as mãos limpas. O mundo inteiro a partir de então, distraidamente, dá as costas a esse crime; as vítimas acabam de atingir o extremo de sua desgraça: elas entediam (...). É possível dizer, portanto, que a revolta, quando desemboca na destruição, é ilógica. Ao reclamar a unidade da condição humana, ela é força de vida, não de morte. Sua lógica profunda não é a da destruição; é da criação”.
Curiosamente, Albert Camus não prega o aspecto pacifista das revoltas nem das revoluções. Parte do processo de imposição do homem revoltado está no confronto contra aquele que poda sua liberdade ou contra aquilo que estabelece uma situação injusta. Entretanto, a violência sistemática e indiscriminada não pode ser vista como um meio nem um fim de uma ação revoltosa.
“A não violência absoluta funda negativamente a servidão e suas violências; a violência sistemática destrói positivamente a comunidade da vida e a existência que dela recebemos. Para serem profícuas, essas duas noções devem encontrar seus limites. Na história considerada como um absoluto, a violência se vê legitimada; como risco relativo, ela é uma ruptura de comunicação”.
Achei “O Homem Revoltado” um livro excelente. Albert Camus consegue apresentar seus argumentos de maneira detalhada e imparcial, sem qualquer viés ideológico. É difícil hoje em dia discordar da sua abordagem. Então, o que teria suscitado tantas críticas na época do lançamento da obra?! Na minha opinião, ao se manter neutro, criticando a violência praticada tanto pela direita quanto pela esquerda, o franco-argelino se tornou alvo fácil dos dois lados dessa disputa. Vale lembrar que na virada da década de 1940 para a de 1950, o mundo encontrava-se em uma fortíssima polarização ideológica. Era quase impossível alguém não escolher um lado para defender. O próprio Camus era assumidamente um pensador de esquerda. Contudo, neste ensaio, ele permaneceu a maior parte do tempo neutro, criticando indiscriminadamente os dois lados. Como consequência, sofreu pancada dos intelectuais de esquerda e de direita por isso. Ou seja, foi alvo da ira de todo mundo.
Para apresentar seus argumentos, Camus fez um apanhado histórico da violência e da revolta nas sociedades humanas, além de reconstruir passo a passo os conceitos filosóficos do existencialismo e do niilismo. Para completar, ele utilizou-se de muitos exemplos extraídos da literatura para ilustrar os quadros expostos. O resultado concreto é um material de grande riqueza intelectual. Nas páginas de “O Homem Revoltado” temos uma análise profunda dos trabalhos filosóficos do Marquês de Sade, Friedrich Nietzsche, Platão, René Descartes, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, André Breton, Dmitry Pisarev, Jean-Jacques Rousseau, Louis Antoine Léon de Saint-Just, Max Stirner, Voltaire, Mikhail Bakunin, Sergey Nechayev, Karl Marx, Friedrich Engels, Joseph de Maistre e Auguste Comte. Nas páginas deste ensaio, também acompanhamos belos estudos sobre as literaturas de Arthur Rimbaud, Conde de Lautréamont, Fiódor Dostoiévski, Emily Brontë, Sófocles, Leon Tolstói, William Blake, Honoré de Balzac, Herman Melville, Marcel Proust, entre outros.
Felizmente, a linguagem utilizada em “O Homem Revoltoso” não é difícil nem formal (uma diferença substancial do que encontramos em boa parte dos ensaios filosóficos por aí). Camus é um autor que emprega palavras e termos comuns para apresentar seus conceitos à maior parte dos leitores. Esse é um dos pontos mais legais de sua literatura. O difícil neste livro não é a linguagem empregada pelo escritor, mas sim a profundidade de suas ideias. É preciso, portanto, grande esforço do leitor para entender o que está sendo dito e para mergulhar em várias referências intertextuais, tanto da filosofia quanto da literatura e da história. É necessária uma boa bagagem nessas áreas para percorrer as páginas do livro de Camus com o mínimo de tranquilidade. Mesmo assim, não espere encontrar uma leitura tranquila e recreativa em “O Homem Revoltado”.
O que mais chamou minha atenção nesta leitura foi a maneira magnífica como a questão da violência foi apresentada. Camus não é um pacifista. Ele, em nenhum momento, prega a paz entre os homens como a solução para os conflitos humanos. Em sua visão, a violência é uma das consequências da ação do homem revoltado. Até aí, beleza. O problema está na forma indiscriminada como as revoluções e, consequentemente, os sistemas políticos da primeira metade do século XX utilizaram-se da violência, dizimando milhões de opositores. O terror estatal estava no DNA dos regimes comunistas e nazifascistas. Nunca na história o ser humano deu vazão com tamanha intensidade ao seu extinto assassino como nas primeiras cinco décadas do século passado. É isso o que Camus apresenta de forma magnífica, apesar das intensas críticas recebidas na época. Sinceramente, não vejo como seja possível, hoje em dia, discordar de sua tese.
Como a “A Peste” é o romance que apresenta ficcionalmente os conceitos deste ensaio, acredito que seja interessante ler primeiro “O Homem Revoltado” para depois mergulhar na trama do doutor Bernard Rieux em Oran. Desse jeito, o leitor poderá compreender melhor a proposta do romance, visualizando aonde Camus deseja chegar quando a cidade argelina fica isolada do mundo.
No próximo sábado, dia 22, o Desafio Literário de setembro continuará com a análise do quinto livro de Albert Camus: “A Queda” (Record). Nesse romance de 1956, o escritor e filósofo franco-argelino dá uma resposta ácida aos críticos que contestaram veementemente suas teses em “O Homem Revoltado”. Não perca os próximos posts do Bonas Histórias.
Gostou da seleção de autores e de obras do Desafio Literário? Que tal o Blog Bonas Histórias? Seja o(a) primeiro(a) a deixar um comentário aqui. Para saber mais sobre as Análises Literárias do blog, clique em Desafio Literário. E não deixe de curtir a página do Bonas Histórias no Facebook.