O trabalho mais conhecido de Albert Camus, vencedor do Nobel de Literatura de 1957, é “O Estrangeiro” (Record). Nessa novela publicada quinze anos antes da entrega do prêmio da Academia Sueca de Letras, o escritor francês debatia de maneira reflexiva a condição do absurdo e da liberdade humana. Considerado uma das narrativas mais influentes da primeira metade do século XX, “O Estrangeiro” consagrou definitivamente seu autor, um empolgado adepto da escola francesa de construir ficção com muitos elementos filosóficos. Não por acaso, uma das frases mais famosas de Camus era: “Se você quiser filosofar, escreva romances”.
Hoje, contudo, gostaria de comentar outra obra fundamental do francês nascido, em 1913, na Argélia, então uma colônia europeia. “A Peste” (Record) é o livro que concluí na última quarta-feira à noite. Neste romance, Albert Camus faz uma sutil alegoria da invasão nazista na França durante a Segunda Guerra Mundial, período conhecido como a Resistência. A trama também pode ser encarada como uma crítica ao comportamento contraditório das pessoas nos momentos de crise coletiva. É, portanto, o choque de realidade imposto pelo ambiente aos indivíduos, normalmente mergulhados em seus pequenos universos internos, em suas rotinas egoístas e em seus problemas rasteiros.
Publicada em 1947, “A Peste” integra a primeira parte da trilogia da “Revolta”, composta por “Os Justos”, peça teatral de 1949, e “O Homem Revoltado”, ensaio de 1951. O romance conquistou no ano de seu lançamento o Prêmio da Crítica, honraria concedida entre 1945 e 1984 aos principais escritores de língua francesa.
Por mais que Albert Camus fosse contra os conceitos filosóficos do Existencialismo, é inegável que suas obras após a Segunda Guerra Mundial tenham muitas das características dessa corrente. Sua literatura é fundamentalmente existencialista. “A Peste” é um ótimo exemplo disso. “O Estrangeiro”, por sua vez, tem também essa pegada filosófica-reflexiva, porém, na minha visão, ele está mais para o Absurdismo (um tipo de Existencialismo niilista).
“A Peste” se passa em Oran, uma cidade argelina colonizada pelos franceses e localizada às margens do Mediterrâneo. O lugar é descrito como muito feio e extremamente pacato. A história ficcional acontece nos anos de 1940. A rotina da localidade é quebrada quando ratos, inexplicavelmente, aparecem mortos por todos os cantos do município. Bernard Rieux, um médico engajado e humanista, é quem primeiro questiona as autoridades para o risco daquelas mortes em massa representar o início de uma moléstia perigosa. Suas preocupações ganham rapidamente vida. Uma peste instala-se em Oran.
Os habitantes da cidade começam a morrer. Preocupados com a possibilidade da misteriosa doença se espalhar pelo território francês na colônia e, quem sabe, até no continente europeu, o governo central decreta medidas drásticas. Oran é isolada do mundo. Ninguém mais pode entrar e ninguém mais pode sair dela. A circulação de pessoas, objetos e mercadorias ficam interrompidas dos dois lados da fronteira do município. É instalado o caos em Oran.
Enquanto precisam encarar o medo das mortes pela peste, algo que aumenta a cada dia, os habitantes daquela localidade também têm que se acostumar com a nova dinâmica social-econômica a eles imposta. São tempos de angústia e de inconformismo. Oran é agora uma cidade que se divide entre a espera da morte e a esperança de que aquela misteriosa praga acabe algum dia.
Enquanto o caos impera, cada uma das personagens retratadas no romance precisa levar sua vida de alguma forma. O Dr. Rieux trabalha noite e dia para ajudar os enfermos, esquecendo-se da fadiga e dos seus problemas pessoais. Jean Tarrou, vizinho de Rieux, escreve em cadernos suas crônicas sobre a epidemia e como ela está afetando os homens e as mulheres do município. Cottard, um homem que tentou se suicidar pouco antes da peste chegar, é agora quem mais se beneficia com o isolamento de Oran. Mercador, ele viu os preços dos produtos que comercializava inflarem. Dr. Castel, amigo de Rieux, tenta desenvolver uma vacina.
Joseph Grand é um aspirante a escritor que fica sempre reescrevendo a primeira frase do seu romance de estreia, sem nunca avançar para a segunda frase. O padre Paneloux afirma que a peste é fruto de uma ação divina. Em suas acaloradas pregações, diz que Deus teria agido desta maneira como punição aos pecadores. Raymond Rambert é um jornalista parisiense que tenta de todas as maneiras deixar a cidade sitiada. Ele tinha viajado a trabalho para Oran e ficaria poucos dias na colônia. O bloqueio nas fronteiras o impede de voltar para os braços da mulher amada que ficou em Paris.
“A Peste tem quase 300 páginas e é dividido em cinco partes, cada uma descrevendo um estágio da peste. Sua leitura não é das mais fáceis. Achei Camus um autor que requer muita atenção e bastante cuidado por parte do leitor. Obviamente, não estamos tratando aqui de uma literatura recreativa. Albert Camus é colega de Jean-Paul Sartre e Voltaire na arte de falar de temas profundos em seus textos ficcionais. Admito que também fiquei um pouco perdido com a grande quantidade de personagens do livro. Várias vezes, precisei voltar as páginas para relembrar quem era essa e quem era aquela pessoa. Por isso, levei cerca de cinco noites para concluir esta obra.
O primeiro elemento que destaco deste romance é o perfil alegórico das personagens. É possível notar claramente os tipos descritos pelo autor. A sociedade francesa durante a Resistência está toda ela representada nas páginas de “A Peste”. Por exemplo, Dr. Rieux é o homem altruísta e preocupado essencialmente com o bem-estar coletivo. Por outro lado, Cottard é o capitalista egoísta e materialista. Já Paneloux é o representante da passionalidade religiosa. E Joseph Grand é o artista fútil e impertinente. É muito interessante ver o comportamento dessas figuras na trama. Indiretamente, Albert Camus critica esses tipos em sua literatura. Neste caso, ele age quase como um Gil Vicente (na versão moderna e francesa). Juro que me lembrei muito da “Trilogia das Barcas” produzida pelo dramaturgo português no século XVI
Por falar em personagens, não há nenhuma figura feminina importante neste romance. Curiosamente, todos os protagonistas e personagens secundárias de “A Peste” são homens. Não entendi isso. Talvez esse detalhe tenha passado despercebido do autor. Ou ele tentou mostrar o quão a sociedade da época era machista. Afinal, se estava relacionando seus personagens aos tipos mais comuns da sociedade francesa da metade do século XX, não fazia sentido Camus colocar as mulheres como protagonistas.
Outro recurso interessante (e pouquíssimo comum de ser visto em obras ficcionais) é o maior ênfase aos eventos macroambientais. Ou seja, a maior parte do relato é voltada para os acontecimentos gerais que afetam a coletividade. Em muitos instantes do livro, o microambiente (a vida de cada uma das pessoas da cidade) fica em segundo plano. Como uma narrativa alegórica e com uma pegada existencialista, essa estratégia é perfeita. Entretanto, ela atrapalha um pouco a fluidez do texto e compromete a velocidade da narrativa. Temos aqui, portanto, uma história que caminha com pouco dinamismo. Adianto, desde já, que os leitores mais ansiosos e pouco meticulosos irão sofrer um pouco.
E o que falar do humor de Albert Camus, hein? “A Peste” apresenta trechos muito divertidos. O humor deste livro é do tipo sutil e bastante inteligente. Repare nas várias contradições apresentadas ao longo desta história. O indivíduo que queria se matar é quem mais gosta da chegada da peste. O religioso que via a praga como um sinal de intervenção divina contra a moral e os bons costumes é um dos mortos pela doença. E algumas personagens ficam discutindo calorosamente uma frase de um romance no instante em que a peste está devastando milhares de habitantes de Oran. Hilário!
Do início ao final do livro, há inserções de trechos em que o debate filosófico é mais direto. O romance torna-se, nestes pontos, um pouco mais difícil. Por outro lado, ele adquire muito mais riqueza conceitual. Ler Camus nunca foi fácil, mas pode ser muito divertido e enriquecedor. Para tal, você precisa se preparar para o desafio e deve mergulhar de cabeça em suas obras. “A Peste” é com certeza um dos seus trabalhos mais impressionantes.
Gostei deste romance. Ele faz parte do tipo de obra que, assim que você termina, você quer relê-la. A sensação que tive é que não peguei tudo o que o autor tentou transmitir.
O Desafio Literário de setembro prossegue na próxima terça-feira, dia 18, com a análise do livro “O Homem Revoltado” (Record), o quarto livro que o Bonas Histórias analisará neste mês de Albert Camus. Não perca a continuação do Desafio Literário.
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