Mário Jorge queria mudar o mundo.
Quando pequeno, ficava indignado com as famílias morando em favelas e com as crianças mendigando nas esquinas. Ficava horrorizado com a injustiça social e com a miséria por todos os lados. Nesta época, sonhava em ser banqueiro. Enquanto seus coleguinhas de escola queriam ser jogadores de futebol, ele queria ter um banco só seu. Com o dinheiro dos rendimentos da sua empresa, iria construir gratuitamente uma casa para cada família carente. E aproveitaria para enviar mensalmente uma cesta básica para cada uma dessas residências. Se dependesse dele, de fome e frio os seus conterrâneos não sofreriam mais.
Mário Jorge tentou mudar a realidade.
Na adolescência, transformou-se em guerrilheiro comunista. O rapaz, nesta fase, entendia que a justiça social e o enriquecimento da população mais humilde só seriam conquistados com a mudança de regime político. E para tal, precisava pegar em armas e partir para o confronto direto contra o inimigo capitalista. Enquanto seus colegas prestavam vestibular e entravam na faculdade, ele combatia os soldados do governo no meio da floresta equatorial.
Mário Jorge teimou em desafiar o destino.
Ao completar vinte e sete anos, o jovem, depois de passar três anos preso, saiu da cadeia e voltou a estudar. Por insistência dos pais, se dedicou aos livros e entrou em uma universidade federal. O curso escolhido foi medicina. A proposta era se tornar médico e trabalhar em comunidades pobres e isoladas da nação, oferecendo um serviço digno aos menos favorecidos. Foi o que fez. Enquanto seus amigos empreendiam ou se empregavam em estimadas companhias privadas, ele não abria mão de ser um leal funcionário público mal remunerado.
A vida mostrou a Mário Jorge o quão complexa e pragmática ela pode ser.
Os dois anos de namoro com uma ambiciosa arquiteta transformaram-no em marido e pai de família. Fixando residência em uma bucólica cidade do interior, o casal teve três meninos. Agora, o médico tinha muitas obrigações e contas a pagar. Mesmo assim, ele não desistiu totalmente dos seus sonhos. Tornou-se também professor universitário. Queria contribuir com a formação doutrinária da nova geração. Se ele não tinha conseguido o que pretendia originalmente, pelo menos seus alunos poderiam continuar lutando por um mundo mais igualitário.
Nesse momento, o mundo quis mudar Mário Jorge.
Conciliando o trabalho na faculdade com os plantões nos hospitais municipais, o agora homem grisalho tornou-se muito conhecido no município. Vários admiradores foram conquistados sem que ele fizesse qualquer esforço para isso. Após algumas recusas, acabou se filiando a um partido político e foi eleito o vereador mais votado da cidade. Sua plataforma de governo era educação e saúde para todos. Após dois mandatos como presidente da Câmara Legislativa, virou prefeito. Uma administração para os pobres foi a sua meta.
A realidade de Mário Jorge alterou-se sensivelmente.
O sucesso em âmbito local o catapultou para o governo estadual. De governador, transformou-se em senador da República. Trabalhando no Distrito Federal, conquistou o respeito dos principais políticos do seu partido e do presidente da nação. A pasta da Saúde foi conferida a ele. Agora, era ministro. Todos diziam que se tratava da pessoa mais preparada para este cargo. Enquanto seus antigos amigos precisavam se preocupar com as coisas mundanas, ele aproveitava as regalias e as benesses do poder.
O destino teimou em desafiar Mário Jorge.
Hoje, o antigo médico e ex-professor universitário vê sua família uma vez por mês. A esposa é a única a visitá-lo na penitenciária de segurança máxima. Os filhos não vão. Os avós não querem que os rapazes sejam constrangidos ao ver o pai em tal situação. Ele foi preso há dois anos, acusado de comandar um grande esquema de corrupção no ministério. Os crimes praticados foram variados: formação de quadrilha, desvio de recurso público, apropriação indébita, enriquecimento ilícito e ocultação de patrimônio. E a sentença do juiz foi implacável.
Enfim, Mário Jorge parou de enganar os outros e a si mesmo.
Em uma cela superlotada, reflete às vezes em que ponto em sua trajetória teria fraquejado. Os sonhos infantis eram legítimos ou meramente invenções para ganhar a simpatia dos adultos? A juventude rebelde era algo ideológico ou ele buscava simplesmente uma aventura romântica para contar aos amigos? O espírito altruísta era verdadeiro ou uma simples estratégia para ocultar a busca por uma vida melhor para si e para os seus? Por que ao invés de mudar o mundo, ele deixou que o mundo o mudasse tanto?
Haverá muito tempo para pensar a este respeito. Para ser preciso, ainda restam 1.975 dias e 1.974 noites para essa reflexão ser concluída por Mário Jorge.
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Paranoias Modernas é a série mensal de narrativas curtas criada por Ricardo Bonacorci. Os 11 contos do quadro estão sendo publicados com exclusividade no Blog Bonas Histórias ao longo deste ano.
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