Li, na última semana do ano, o livro "A Navalha na Carne" (Senzala), a principal criação de Plínio Marcos. "A Navalha na Carne" foi concebida originalmente como uma peça teatral. Seu sucesso foi quase que imediato. Escrita em 1966, ela chegou aos palcos paulistanos no ano seguinte. A fama viria com a versão carioca, produzida ainda em 1967. O sucesso do espetáculo, porém, chamou a atenção dos censores da ditadura militar. Os milicos não gostaram de ver uma história com muitos palavrões e com elevada violência doméstica ser apresentada nos palcos das duas maiores cidades do país. Além disso, a trama de Plínio Marcos exibia uma realidade crua do Brasil e era protagonizada por personagens marginalizadas pela sociedade da época (um cafetão, uma prostituta e um homossexual). Como consequência, a exibição do espetáculo foi proibida pela censura. Por mais de uma década a peça foi impedida de ser encenada no território nacional.
Para a história criada por Plínio Marcos não ser esquecida pelo público ou ficar perdida nas gavetas dos dramaturgos, a alternativa encontrada foi transformá-la em livro. O escritor Pedro Bandeira foi convidado para montar a versão impressa de "A Navalha na Carne" para a editora Senzala. O elenco original da versão paulistana da peça, formado por Paulo Villaça, Ruthinéia de Souza e Edgard Gurgel Aranha, fez um ensaio fotográfico com suas encanações. A proposta da obra era levar a experiência do teatro para as folhas da publicação.
O resultado final é um trabalho originalíssimo. O livro é ilustrado com as performances dos atores. Além disso, sua diagramação é pouco convencional, parecendo mais uma história em quadrinhos ou uma revista ilustrada do que uma obra literária convencional. O projeto gráfico também é especular. Ainda hoje, é raro encontrar um acabamento tão impecável como esse.
Assim, chegou às livrarias do país, no ano de 1968, o livro "A Navalha na Carne". Curiosamente, a censura imposta à peça não se aplicava ao universo literário. A publicação da editora Senzala estava disponível à venda a todos os brasileiros. O mesmo se aplicou a versão cinematográfica. No ano seguinte, a polêmica história de Plínio Marcos ganhava as telas dos cinemas do país. O filme de 1969 foi dirigido por Braz Chediak. "A Navalha na Carne" ainda teria uma segunda adaptação ao cinema, essa mais contemporânea. O diretor Neville de Almeida regravou a trama na década de 1990.
"A Navalha na Carne" se passa inteiramente em um pequeno quarto de hotel/motel de quinta categoria. Muito possivelmente a recriação desse ambiente pouco familiar e religioso em um teatro tenha sido decisivo para a proibição da peça pela censura. No final de um dia de trabalho, Neide Sueli, uma prostituta um tanto velha e nada bonita, volta para sua casa. Aquele quarto decadente e sujo é sua residência. Lá, a protagonista encontra Vado, seu cafetão. Surpreendentemente, ele não tinha ido embora naquele dia, aguardando o retorno de Neide. A mulher fica empolgada com o possível gesto de carinho do seu homem. Afinal, há meses que os dois não faziam sexo. Porém, rapidamente ela percebe que Vado está mal-humorado e violento. Ele a esperou porque está sem dinheiro. A grana que ela prometeu entregar-lhe na véspera tinha desaparecido.
O casal começa a discussão sobre onde está o dinheiro dos programas do dia anterior de Neide Sueli. Ela afirma que deixou no criado-mudo para o cafetão pegar quando aparecesse por lá. Ele disse que não encontrou nada ali quando chegou e acusa a prostituta de ser mentirosa. Depois de muito bate-boca, a suspeita do casal, então, recai sobre Veludo. O homossexual que trabalha no hotel/motel como faxineiro poderia ter surrupiado a grana quando entrou no quarto para fazer a arrumação. Veludo é chamado. Ele nega seu envolvimento no sumiço do dinheiro e defende-se como pode. A discussão prossegue agora entre o trio, cada um acusando o outro de estar mentindo.
"Navalha na Carne" possui um enredo trágico e enquadra-se no gênero brutalista. Sua linguagem é agressiva e chocante. As frases curtas e diretas, sem abrandamentos, o grande número de palavrões, as conotações sexuais e o uso das palavras como arma de intimidação são marcas do brutalismo. A sociedade excludente e injusta dos grandes centros urbanos é a causadora da excessiva violência que presenciamos nesse tipo de enredo. Nessas tramas, não há mocinhos nem mocinhas, somente vilões. Quem já leu Rubem Fonseca, Sérgio Sant'Anna, João Antônio, Wander Piroli, Patrícia Melo, Marçal Aquino e Marcelino Freire entenderá o que estou me referindo.
Assim, esse livro retrata de maneira intensa e passional as mazelas da relação afetiva e social de personagens marginalizadas socialmente. O produto final é a compaixão do público para com a personagem principal, uma prostituta inculta, vulgar, romântica e pobre. Neide Sueli é uma das mais improváveis protagonistas das novelas brasileiras.
O enredo de "A Navalha na Carne" trata essencialmente da violência doméstica, uma triste realidade que muitas mulheres sofrem diariamente. Paradoxalmente, a parte mais chocante da rotina de Neusa Sueli não acontece quando ela sai de casa para fazer seus programas, mas sim quando ela retorna para os braços de seu amado. A prostituta sofre intensa violência dentro do seu próprio lar. O homem que ela ama, Vado, se aproveita de Neusa para sugar todo o dinheiro dela, não escondendo o desprezo que sente por ela e pela profissão da parceira. Isso fica evidente quando ele a xinga de velha e feia sem demonstrar qualquer resentimento ou pena.
Portanto, o antagonismo da trama recai sobre Vado. Ele é quem cria o conflito ao quebrar a harmonia na residência de Neusa Sueli. Ela retorna para casa feliz e carinhosa, desejando passar boas horas com seu amado. Contudo, ele está mal-humorado e violento, querendo descontar na prostituta a frustração por estar sem dinheiro e por ter tido um dia improdutivo (entenda-se: não ter ido ao bar para beber e jogar bilhar com os amigos).
O que mais chamou minha atenção em "A Navalha na Carne" foi o conjunto de contradições das personagens. Esse elemento, em minha visão, chegou até mesmo a sobrepor-se à violência da linguagem, dos atos e do cenário (também muito agressivos). Neusa Sueli faz chacota da vizinha e colega que é desprezada, humilhada e covardemente agredida pelo cafetão. Neusa Sueli afirma em voz alta que jamais permitiria aquilo com ela. Contudo, ela repete imediatamente o que acabara de condenar, sendo totalmente condescendente com Vado.
O mesmo se passa com Veludo. Ele grita para Neusa Sueli não aceitar um homem que a despreze e que sugue todo o seu dinheiro, não demonstrando um amor genuíno por ela. Entretanto, ele também faz o mesmo com o rapaz do bar, sendo explorado financeiramente e afetivamente. E, por fim, Vado xinga, bate e humilha Veludo por ele ser homossexual. Porém, na primeira oportunidade, começa a flertar com o rapaz, gostando do joguinho do contato físico com o faxineiro. Em uma analogia semiótica, o cigarro de maconha pode ser entendido como um símbolo fálico e o ato de tragar o baseado como sexo oral. Dessa forma, a criação de Plínio Marcos é uma overdose de incômodas contradições, que chocam leitor do início ao fim.
"A Navalha na Carne" é um livro curto, tendo apenas 160 páginas. Como ele possui muitas fotos e uma diagramação generosa (letras grandes), sua leitura é muitíssimo rápida. É possível lê-lo em pouco mais de trinta minutos.
Curiosamente, achar o livro "A Navalha na Carne" hoje em dia também é um tanto complicado. Sem uma nova edição há mais de uma década, não é possível comprá-lo nas livrarias. O caminho é o sedo. E mesmo assim, ele é artigo raro. Os melhores exemplares são vendidos por até R$ 100,00.
Há várias edições do livro disponíveis. A melhor, em minha opinião, é a original, de 1968, da editora Senzala. O que a torna tão interessante é que o texto vem acompanhado da ilustração das personagens, imitando a encenação do espetáculo cênico. Ou seja, a impressão é que estamos assistindo à peça e não lendo o livro. Muito legal! Além disso, a diagramação da obra, como já falei, é ousada, lembrando um pouco as histórias em quadrinhos ou as revistas ilustradas, muito comuns na década de 1960.
Depois de trabalhar como comerciante e se arriscar em várias profissões (inclusive jogador de futebol), Plínio Marcos consolidou-se como um dos principais dramaturgos do país entre a década de 1960 e 1970. Ele produziu várias peças teatrais, além de roteiros televisivos. Conhecer "A Navalha na Carne", sua principal criação, é aprofundar-se por um dos capítulos mais marcantes da literatura e da dramaturgia nacional das últimas décadas.
Apesar de possui uma temática pesada e uma linguagem muito agressiva, eu gostei muito dessa obra. Quem tem espírito forte e é corajoso(a) para mergulhar no brutalismo brasileiro aqui vai uma boa sugestão para esse início de 2018.
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