Darico Nobar: Olá! Sejam bem-vindos a mais um Talk Show Literário, o melhor programa de entrevistas da televisão brasileira. [O quinteto musical anima o público com seu repertório melódico, parando a canção tocada ao sinal do apresentador]. Hoje, nossa convidada é Neusa Sueli, a protagonista de Navalha na Carne. Originalmente uma peça de Plínio Marcos, Navalha na Carne virou livro depois que o espetáculo cênico foi censurado pela ditadura militar. Boa noite, Neusa.
Neusa Sueli: Boa noite, Darico e pessoas. [A convidada acena com uma das mãos para a plateia, que a aplaude. Com a outra mão, a entrevistada puxa para baixo a microssaia e ajeita para cima o apertado bustiê que usa].
Darico Nobar: Neusa, mate minha curiosidade, por favor: o Vado voltou ou não voltou para sua casa depois daquela discussão horrível que vocês tiveram?
Neusa Sueli: Qual discussão você está falando? Se for a da noite passada, está tudo bem agora. O Vadinho retornou hoje para casa, um pouco antes de eu sair de lá. Como eu tinha que vir para seu programa, praticamente ele entrou por uma porta e eu saí por outra. Mas está tudo em paz entre a gente, como sempre.
Darico Nobar: Não, não... Eu perguntei de modo geral... Navalha na Carne termina com ele saindo bravo do seu quarto e ficamos sem saber se ele foi embora definitivamente ou apenas de maneira provisória. Por isso, minha dúvida.
Neusa Sueli: Ah, sim... O Vado pode reclamar, xingar, discutir, brigar e até me ameaçar, mas sempre retorna para os meus braços como um cachorrinho carente e travesso. Homens... O que podemos fazer para endireitá-los?!
Darico Nobar: A relação de vocês melhorou nos últimos anos?
Neusa Sueli: Como assim?! Nossa vida sempre foi ótima! Não entendi a pergunta.
Darico Nobar: Antigamente, ele bebia muito, não trabalhava, pegava todo o seu dinheiro e gastava tudo no bar e na jogatina com os amigos. Ele também era violento, batia em você. Você não está lembrada dessa fase?
Neusa Sueli: Ah, sim... Isso às vezes acontece mesmo. Mas não é sempre, tá? Do jeito que você fala até parece que o Vadinho é um imprestável. Saiba que ele é um homem exemplar. Nunca conheci marido mais fiel, um amigo mais leal e um cafetão mais compreensível que ele. Nós nos amamos, porém, às vezes, brigas acontecem. Todos os relacionamentos passam por isso. Quem nunca saiu na mão ou nunca precisou espancar a pessoa amada que jogue a primeira pedra.
Darico Nobar: Com qual frequência vocês discutem? [O apresentador faz cara de assustado].
Neusa Sueli: A última briga feia foi há cerca de três horas, quando saí de casa. Ele pensou que eu vinha para um programa com um cliente. Algo pago, sabe? Quando expliquei que viria para outro tipo de programa, de televisão, que não pagam nada, ele se revoltou. Até aí, não posso tirar a razão dele. O entrevistado devia receber cachê!
Darico Nobar: Por um acaso, esse hematoma em seu olho é fruto de uma briga?
Neusa Sueli: Maldita maquiadora! Ela disse que conseguiria esconder a marca... [Depois de falar baixinho, a convidada retorna ao tom de voz normal]. Não! O soco no olho é de um briga de ontem. Eu me esqueci de passar uma camisa que o Vadinho gosta de usar e, aí, ele ficou muito bravo. Você já imagina o que aconteceu, né?
Darico Nobar: Meu Deus, Neusa Sueli! Você deixa que ele bata em você?
Neusa Sueli: Ah não, Darico. Até você vai querer se meter no meu casamento?! Já não chega os enxeridos que me atormentam falando isso e aquilo do Vado.
Darico Nobar: Existe uma lei que proíbe o marido, o namorado, o amante ou qualquer homem de bater em sua parceira... Essa lei se chama Maria da Penha e dá garantias legais às mulheres...
Neusa Sueli: Não precisa ensinar a missa ao vigário, tá? Eu tenho um marido maravilhoso em casa. O Vadinho é exemplar. Ele não tem problemas com a polícia há muito tempo e se depender de mim nunca terá novamente. Você deveria falar essas coisas para minha filha. O marido dela que é um filho da puta.
Darico Nobar: Oh! Sem palavrões, por favor. Estamos ao vivo.
Neusa Sueli: Foi mal! Vou tentar controlar minha língua.
Darico Nobar: Neusa Sueli, você saberia me explicar por que a peça Navalha na Carne foi censurada pelos militares, mas o livro com a mesma história pode ser lançado nas livrarias no ano seguinte sem problema nenhum?
Neusa Sueli: Deve ter sido mais um engano que os milicos cometeram. Se eles explodiram uma bomba no próprio colo lá no Riocentro, por que não deixariam passar batida a publicação de um livro?! Por outro lado, talvez a peça tenha sido censurada por causa da sua ambientação e não por causa da sua trama. O palco era um quarto de motel, vale a pena lembrar. Precisamos admitir que o Plínio Marcos fora muito ousado para a época. Ele chocou a burguesia careta da década de 1960. No livro, não dava para recriar um ambiente tão lascivo como aquele.
Darico Nobar: Você disse que tem uma filha. Conte-me sobre ela. Como ela se chama, quantos anos tem e o que faz da vida? Você tem mais filhos ou só ela?
Neusa Sueli: Só tenho a Marie Cristiele. Ela tem quarenta e dois anos e é garota de programa como a mãe. Mas nós duas não trabalhamos juntas não. Quando ela completou doze anos, eu a levei para o Tião, um cafetão lá em São Cristovão. Eu não queria que o Vado cuidasse da carreira da menina. Ele já andava muito assanhadinho para o lado dela para o meu gosto. Achei melhor matar o mal pela raiz e separá-los. Além disso, esse negócio de trabalhar com família nunca dá certo mesmo.
Darico Nobar: Desculpe-me perguntar, Neusa Sueli, mas o Vado é o pai da menina?
Neusa Sueli: Oche! Claro que é! Tá pensando que eu sou uma dessas quengas que se deitam com vários homens?! Sou mulher direita, mulher de família. Respeite-me!
Darico Nobar: Desculpa, desculpa! Não queria ofendê-la.
Neusa Sueli: Assim tá melhor. Gosto de homem que sabe baixar o facho.
Darico Nobar: Conte-me um pouco mais sobre sua filha, Neusa Sueli.
Neusa Sueli: Marie Cristiele é uma moça trabalhadora. Como já passou dos quarenta anos, a clientela caiu um pouco. Isso é normal. No ano passado, ela precisou diminuir o valor do programa pela metade para o faturamento ficar igual ao de antes. O problema é que agora precisa dar mais vezes. Por ser mulher bonita, trabalha de manhã à noite. Até de madrugada nos final de semana. O problema da minha filha é o Tião. Ele não faz nada o dia inteiro e ainda pega todo o dinheiro da pobrezinha. Deve fazer uns dez anos que ele não arranja um cliente novo para ela. Ela é quem precisa se arranjar sozinha. Já viu um cafetão que não cuida da sua mulher?! E para piorar, ele está sempre bêbado. E, acredite, ele ainda por cima bate muito nela, coitadinha...
Darico Nobar: E ela não faz nada? Por que não mete um pé na bunda dele?
Neusa Sueli: Aquela nasceu para ser cordeirinho de raposa velha. A Marie Cristiele é apaixonada pelo marido e aceita todas as sem-vergonhices dele. No fundo, é uma boba. Já falei para ela meter o pé na bunda do Tião, mas ela não me ouve. Se fosse comigo, aquele homem já teria amanhecido com a boca cheia de formiga.
Darico Nobar: Você ainda trabalha, Neusa Sueli?
Neusa Sueli: É claro que sim, diacho! Estou inteirona, vendendo saúde e beleza. Não tá vendo?!
Darico Nobar: Novamente sei que você pode ficar brava comigo, mas tenho que perguntar. Afinal, esse é o meu trabalho, não é? Quantos anos você tem?
Neusa Sueli: Não tenho problema em revelar minha idade. [Mesmo assim, a entrevistada fica sem graça]. Tenho trinta e cinco anos, mas meu corpinho é de trinta.
Darico Nobar: Pera aí, Neusa Sueli. Você não pode ter só trinta e cinco anos!
Neusa Sueli: E quem é você, seu branquelo de pau pequeno, para querer corrigir minha idade?! Se estou falando que tenho trinta e cinco, é porque tenho. Nunca menti e não vai ser na merda de um programa de televisão que vou cometer um pecado.
Darico Nobar: Analise bem a situação: se sua filha tem quarenta e poucos anos...
Neusa Sueli: Quarenta e dois.
Darico Nobar: Isso, quarenta e dois. Você, como mãe dela, não pode ter menos.
Neusa Sueli: É verdade! Não tinha pensado nisso... Por alguns segundos, achei que você tivesse pensado que eu estivesse velha. Que alívio! Acho, então, que cometi um engano com a idade dela. Acho que ela deve ter trinta e sete ou trinta e oito anos.
Darico Nobar: Ainda sim, você com trinta e cinco é mais nova.
Neusa Sueli: Tá bom, tá bom. Reconheço que menti a idade... É uma coisa feia de admitir, mas quem nunca fez isso?! Minha filha só tem trinta anos. Ou vinte e oito. Isso, a Marie Cristiele tem vinte e oito. Só sei que eu tenho trinta e cinco e pronto!
Darico Nobar: Mesmo assim, Neusa Sueli. Se você tem trinta e cinco, sua filha...
Neusa Sueli: Cale sua boca, almofadinha de merda! [Ela encosta uma navalha no pescoço do entrevistador]. Vai dizer agora que tem algum problema com a minha idade?
Darico Nobar: Não, não. [As palavras mal saem. O pavor é evidente no rosto dele].
Neusa Sueli: Então, estamos de bem novamente. [A convidada tira a navalha do pescoço do apresentador e a recola em sua pequena bolsa]. Fizemos as pazes, certo?
Darico Nobar: Sim, fizemos... [Acaricia o pescoço como se não acreditasse que ele ainda estivesse segurando a cabeça]. Pessoal, esse foi o Talk Show Literário de hoje. Obrigado pela audiência de vocês e até o mês que vem. [O entrevistador se levanta contrariado e segue direto para o camarim. Ele não espera a banda começar a tocar nem se preocupa em se despedir da entrevistada, deixando o palco rapidamente].
[O quinteto, depois de alguns segundos de hesitação, começa a tocar uma canção].
Neusa Sueli: O programa acabou? Darico! O que aconteceu? Darico! [Imediatamente o microfone da convidada é cortado e o talk show termina abruptamente].
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O Talk Show Literário é o programa de televisão fictício que entrevista as mais famosas personagens da literatura. Nesta primeira temporada, os convidados de Darico Nobar, personagem criada por Ricardo Bonacorci, são os protagonistas dos clássicos brasileiros. Para acompanhar as demais entrevistas, clique em Talk Show Literário. Este é um quadro exclusivo do Blog Bonas Histórias.
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