Aproveitando a minha mais recente viagem a Minas Gerais, li nessa sexta-feira "Os da Minha Rua" (Língua Geral), terceiro livro de Ondjaki do Desafio Literário de novembro. Como permaneci mais de cinco horas dentro do ônibus até Varginha, foi possível concluir tranquilamente essa obra que reúne vinte e dois contos do autor angolano. Novamente, Ondjaki retorna à sua infância em Luanda, passada entre o final da década de 1970 e comecinho dos anos de 1990, para construir uma narrativa intimista, emocionante, poética e autobiográfica.
Vale lembrar que o escritor já havia usado essa temática em "Bom Dia, Camaradas" (Companhia das Letras), seu romance de estreia. Por isso, a sensação de déjà vu. Quem já leu "Bom Dia, Camaradas" precisa saber que irá retornar aos mesmos cenários, às mesmas personagens, à mesma atmosfera e às mesmas situações do primeiro romance. Essa obra de agora, porém, não possui o tom irônico e bem-humorado que a narrativa longa apresentava.
Ondjaki usa o seu próprio passado como eixo central das histórias mostradas nos contos. As matérias-primas do livro são as lembranças, a infância e a vida dos amigos e dos familiares do escritor. Assim, acredito que essa publicação seja mais um conjunto de crônicas sobre a infância do que propriamente uma coleção de contos. Contudo, respeito a opção do autor e de sua editora de classificar o livro como sendo de contos. Assim, vou chamá-lo conforme denominado oficialmente por seus responsáveis.
"Os da Minha Rua" foi lançado em 2007, dois anos após "E Se Amanhã o Medo" (Língua Geral), outro premiado livro de contos do autor angolano. Essas duas obras pertencem à "Coleção Ponta de Lança" da Língua Geral. A proposta da editora carioca com "Ponta de Lança" é divulgar os principais nomes da língua portuguesa da literatura contemporânea, independentemente da onde estejam localizados no planeta. Além dos contos de Ondjaki, a "Coleção Ponta de Lança" abrange títulos de Ana Paula Maia (Brasil), Mauro Santa Cecília (Brasil), Nelson de Oliveira (Brasil), Ronaldo Cagiano (Brasil), Faíza Hayat (Portugal), Francisco José Viegas (Portugal), Patrícia Reis (Portugal), Miguel Gullander (Portugal/Suécia) e José Eduardo Agualusa (Angola). É uma seleção muito interessante que agrada quem gosta de conhecer as boas novidades da literatura em língua portuguesa.
"Os da Minha Rua" é um dos livros mais conhecidos e premiados de Ondjaki. A obra conquistou o Grande Prêmio de Conto Camilo Castelo Branco, em Portugal, em 2007, o Grande Prêmio APE (Associação Portuguesa de Escritores), em Portugal, no mesmo ano, e foi finalista do Prêmio Portugal Telecom de 2008, realizado aqui no Brasil. Nada mal, hein?!
Os vinte dois contos desse livro são: 1) Voo do Jika (Menino mais novo da rua pede para almoçar sempre na casa de Ndalu, o jovem protagonista-narrador de todas as histórias da publicação); 2) A Televisão Mais Bonita do Mundo (O narrador conhece a beleza da televisão em cores ao visitar a casa de um amigo do Tio Chico); 3) O Kazukuta (Retrato da vida tranquila e monótona de Kazukuta, o cachorro do Tio Joaquim); 4) Jerri Quan e os Beijinhos na Boca (O menino-protagonista dos contos vai com Irene, amiga mais velha da família, e com o namorado dela ao cinema); 5) Os Óculos de Charlita (As cinco filhas do senhor Tuarles não enxergam bem, mas apenas a mais velha, Charlita, possui óculos grandes e feios); 6) A Professora Genoveva Esteve Cá (Garoto explica para a amiga da mãe, no portão de casa, o motivo pelo qual não pode acordar a mãe naquele momento).
7) Ida ao Namibe (Família viaja de férias para uma província desértica de Angola); 8) O Homem Mais Magro de Luanda (Em festa na casa do Tio Chico, o pequeno protagonista conhece Vaz, um homem extremamente magro e frágil); 9) O Último Carnaval da Vitória (Narrador comenta, sob o ponto de vista infantil, como era o Carnaval em Luanda); 10) A Piscina do Tio Victor (Um tio que morava em Benguela convida todos os meninos da rua para visitarem sua casa, que tinha uma piscina cheia de Coca-Cola e fora construída com chocolates na beirada); 11) Os Quedes Vermelhos da Tchi (Narração da comemoração do dia 1o de maio na visão das crianças); 12) Manga Verde e Sal Também (A meninada come escondido da tia e da avó manga verde com sal).
13) Bilhete com Foguetão (Na escola, narrador escreve um bilhetinho secreto para Petra, a nova e bonita menina da turma); 14) As Primas do Bruno Viola (Em uma festa, Lara, a prima mais assanhada de Bruno, tenta beijar na boca o protagonista); 15) O Portão da Casa da Tia Rosa (Depois de muitos anos, o narrador retorna à casa do Tio Chico e da Tia Rosa, provocando emocionantes e saudosas lembranças); 16) Os Calções Verdes do Bruno (Bruno aparece misteriosamente na escola com roupas novas e de banho tomado); 17) O Bigode do Professor de Geografia (Professor explode de raiva em sala de aula após brincadeiras jocosas da sua turma de alunos); 18) No Galinheiro, no Devagar do Tempo (Enquanto Charlita, a moça de óculos feios, viaja para Portugal com seu pai, todos em Luanda comentam os últimos capítulos da novela "Roque Santeiro").
19) Um Pingo de Chuva (Alunos se despedem dos professores cubanos que trabalharam com eles em Angola e agora retornam para seu país natal); 20) O Niló que Também Era Sankarah (Após atrasos no início do ano letivo em sua antiga escola, o narrador precisa mudar de colégio, o que o afasta dos antigos colegas); 21) Nós Choramos Pelo Cão Tinhoso (Professora pede aos alunos para lerem um conto muito triste, o que emociona a todos na sala de aula); 22) Palavras para o Velho Abacateiro (Em uma tarde chuvosa, o narrador chora sua partida para o exterior. Para trás ficam as lembranças felizes da infância, de Angola, dos amigos e familiares).
De forma geral, "Os Da Minha Rua" é um mergulho inteligente e gracioso no universo infantil. As histórias autobiográficas de Ondjaki são todas narradas em primeira pessoa e remetem o leitor à beleza da visão da criança na fase inicial de sua vida. É, portanto, um bom livro. Seus melhores contos são "O Último Carnaval da Vitória", "A Piscina do Tio Victor", "O Portão da Casa da Tia Rosa", "No Galinheiro, no Devagar do Tempo" e "Nós Choramos Pelo Cão Tinhoso". Essas cinco narrativas são excelentes, dignas mesmo de premiação.
É legal notar, durante a leitura da obra, a influência da cultura brasileira na Angola da década de 1980. Os cantores brasileiros, como Roberto Carlos, os escritores nacionais, como Graciliano Ramos, e nossas telenovelas, "O Bem Amado" e "Roque Santeiro", são citados por Ondjaki porque estavam inseridos intimamente na rotina daquele país e na infância do escritor. Sinceramente não sabia que nossa cultura influenciasse tanto os habitantes da "África portuguesa".
Para o leitor brasileiro, um aspecto positivo de "Os Da Minha Rua" em relação a "E Se Amanhã o Medo" é a presença de um glossário no final do livro, algo que falou no título anterior. Apesar das duas obras pertencerem à mesma coleção, esse recurso importantíssimo para a compreensão do português angolano só aparece aqui.
Por outro lado, o principal ponto negativo de "Os Da Minha Rua" é a repetição de episódios e personagens já citados em "Bom Dia, Camaradas". Quem leu o romance, que também narra a infância do protagonista-narrador em Luanda, irá notar a grande semelhança. Há inclusive partes idênticas. O conto "Palavras para o Velho Abacateiro" é praticamente o desfecho do título de 2001. E "Um Pingo de Chuva" é um capítulo inteiro de "Bom Dia, Camaradas". Ou seja, se você não leu o primeiro romance de Ondjaki provavelmente irá gostar mais de "Os Da Minha Rua" se comparado ao leitor que já o leu.
Depois de ler, de forma consecutiva, os dois principais livros de conto de Ondjaki, agora minha meta é conhecer "AvóDezanove e o Segredo do Soviético" (Seguinte), um romance. Essa publicação foi lançada em 2008, um ano depois de "Os Da Minha Rua". Assim, voltamos às narrativas longas, as minhas favoritas. Vou começar amanhã a leitura dessa obra e na sexta-feira, dia 17, prometo postar aqui no Bonas Histórias uma análise completa sobre ela. Até a próxima etapa do Desafio Literário. Boa leitura para todos nós!
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