No último domingo, li "As Parceiras" (Record), o primeiro romance da carreira de Lya Luft. Publicado em 1980, a obra representou a estreia da gaúcha na ficção. Até então, Lya, com quarenta e um anos de idade, era mais conhecida como tradutora de obras do alemão para o português. Ela já tinha publicado timidamente três livros de sua própria autoria, mas eles eram de poesia e de contos.
Quem teve a ideia de transformar a poeta e tradutora em romancista foi seu editor, Pedro Paulo Sena Madureira. Após ler alguns contos de Lya, Madureira sugeriu que ela também passasse a escrever romances. Em sua visão, os contos dela eram embriões de futuros e bons romances. Foi o que Lya Luft fez. Em 1980, o próprio Madureira editou "As Parceiras".
O romance de estreia da gaúcha foi muito bem recebido pela crítica. Apesar de novata na função, Luft mostrava maturidade artística de uma escritora experiente. A obra possui um texto marcante e uma trama densa e tensa. "As Parceiras" é o mergulho na alma feminina e nas angústias da mulher madura. O livro questiona os valores da vida e a proximidade com a morte sob o ponto de vista feminino.
A produção de "As Parceiras" está diretamente relacionada ao grave acidente automobilístico que a autora sofreu em 1979, que quase a matou. Estar a poucos passos da morte transformou Lya Luft. Ela passou a fazer tudo o que evitava e a questionar aspectos banais do cotidiano. Essas mudanças ajudaram-na a se lançar aos romances e a criar uma temática própria para seus livros (debate constante entre amadurecimento, envelhecimento e morte). Além de "As Parceiras", "A Asa Esquerda do Anjo" (Record), segundo romance da escritora lançado em 1981, também é fortemente influenciado pelo acidente automobilístico.
"As Parceiras" é narrado em primeira pessoa pela protagonista, Anelise. A vida da personagem está um caos: ela está se separando do marido e seu filho pequeno acabou de falecer. Por isso, ela decide viajar para a casa de veraneio da família para refletir sobre sua existência e sobre as recentes perdas. Nos sete dias que passa na antiga casa, ela pode fazer uma análise completa sobre sua vida. Ao mesmo tempo em que tenta entender o que aconteceu consigo, Anelise também faz uma retrospectiva da vida de todas as mulheres de sua família. A revisão histórica do clã, que possui certo ar de devaneio, começa com os dramas enfrentados pela avó materna, Catarina.
Para desespero de Anelise, algo une as mulheres de sua família ao longo das gerações: todas são fadadas à infelicidade. Ora é a loucura, ora é a morte precoce que as aflige. Ora é a violência masculina que impera, ora é a doença física e psicológica que as atinge. Ora é a impossibilidade da maternidade, ora é o fardo do cuidado da prole que as angustia. Assim, pelas páginas do romance desfilam a maluca com instintos homossexuais, a religiosa que permanece virgem até o fim da vida, a anã com problemas mentais, a artista liberal e casamenteira, a dona de casa frágil e lunática e a jovem apaixonada e independente. Ao lado dessas mulheres complexas e complexadas, os homens são normalmente retratados como seres bárbaros, rudes, violentos, confusos, passivos e/ou insensíveis.
"As Parceiras" é um livro pequeno, com apenas 128 páginas. Ele é dividido em sete capítulos. Cada um deles refere-se a um dia que a protagonista passou na casa de veraneio. Assim como a semana, a obra começa no domingo e termina no sábado (os dias da semana são os nomes dos capítulos). Assim como a semana, a leitura da trama passa rapidamente diante dos nossos olhos (li essa obra em pouco mais de quatro horas).
Apesar de breve, a narrativa desse romance é profunda e intensa. Misturando cenas do cotidiano da personagem principal com lembranças do passado da família de Anelise, Lya Luft constrói uma trama emotiva e dramática. A impressão que temos ao ler a obra é que cada frase reúne um turbilhão de sentimentos das suas personagens. Ao mesmo tempo, cada frase também é fruto de uma coletânea de fatos tristes que as mulheres descritas precisaram passar. Isso fica evidente logo nos primeiros parágrafos:
"Catarina tinha catorze anos quando casou, penso, enquanto seguro a balaustrada, me debruço para aspirar melhor a maresia, e deparo com a mulher postada no morro à minha direita. Bem na pedra saliente, onde a rocha cai na vertical até às águas inquietas. Catorze, recém-feitos. Jogaram com ela um jogo sujo. Não podia mesmo aguentar".
Durante a leitura, admito que fiquei com a impressão de a obra ser autobiográfica. Essa sensação é consequência da qualidade do texto e da força narrativa do romance. Lya Luft explica que Anelise é uma criação ficcional que combina várias mulheres que conheceu, tendo inclusive um pouco de si.
"As Parceiras" não é uma história que promove o feminismo. Também não parece possuir pretensões ideológicas. Nada disso! O livro tem a propriedade de debater aspectos da vida das mulheres de maneira sincera e direta. Ali estão todas as angústias e todas as frustrações femininas concentradas em uma dezena de personagens. Lya Luft debate os dramas das mulheres de ontem e de hoje com a tranquilidade e a lucidez dos sábios. Enquanto muitas leitoras podem se identificar com as várias neuras descritas nas páginas do livro, os leitores masculinos poderão entender o que, afinal, se passa na mente da mulherada (algo sempre complicado para nós, homens).
Para esse leitor masculino, infelizmente, Lya Luft é muito dura. Os homens, nesse livro, são sempre encarados como vilões. Não há um que preste. Há aquele que violenta regularmente sua esposa, o que não consegue amar sua mulher, o que trai compulsivamente e o que abandona o barco familiar no primeiro sinal de fadiga do relacionamento. Todos têm instintos animalescos. Se eles não são os causadores da infelicidade feminina (na maioria das vezes, eles são sim os responsáveis), as personagens masculinas não fazem nada para minimizar o caos da vida das mulheres ao seu redor.
A linguagem do livro é similar a de uma confidência entre amigas. Lya Luft produz um texto muito bonito, quase poético. Ela consegue extrair beleza onde a vida se mostra mais triste e árida. O leitor se sente adentrando na mente da narradora. Porém, ao invés de um romance psicológico chato e permeado de fluxos aleatórios e confusos de pensamentos, temos aqui uma trama clara, factível e bem estruturada.
O desfecho do romance é do tipo aberto. Ou seja, a compreensão do seu final depende da sensibilidade de quem lê a história, transformando o leitor em uma espécie de coautor. Eu gostei. Achei espetacular o encerramento. O destino da narradora de certa forma está atrelado ao da avó, em um ciclo de vida perpétuo. De alguma forma, a maldição das mulheres daquela família está grudada eternamente às personagens.
"As Parceiras" é um retrato ácido e verdadeiro da opressão sofrida pelas mulheres ao longo das gerações. Os pesadelos da avó e da neta muitas vezes são parecidos, ficando distantes apenas no tempo. Esse primeiro romance de Lya Luft foi traduzido para o alemão e foi lançado na Europa.
Com a leitura de "As Parceiras", conclui o primeiro livro do Desafio Literário de outubro. Na terça-feira, dia 10, retorno ao Blog Bonas Histórias para analisar a segunda obra de Lya Luft desse mês: "Rio do Meio" (Mandarim). Ao invés de um romance, a próxima publicação é um ensaio que mistura realidade e ficção, em um debate aberto sobre a literatura da autora. Não perca as novidades desse Desafio Literário!
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