Há cinquenta anos, a Tropicália ainda não havia nascido formalmente. O álbum "Tropicália ou Panis et Circencis", considerado o marco inicial do estilo musical que encantou o país na segunda metade da década de 1960, só seria gravado e lançado em julho de 1968. O disco foi uma produção coletiva de Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Nara Leão, Os Mutantes e Tom Zé. Os poetas Capinam e Torquato Neto e o maestro Rogério Duprat também ajudaram a viabilizá-lo.
Entretanto, em 1967, já era possível ver o surgimento de um novo movimento artístico se desenhando. Isso ficou mais evidente no III Festival da Música Popular promovido pela TV Record. Em outubro daquele ano, os amigos baianos Gilberto Gil e Caetano Veloso lançaram, respectivamente, as canções "Um Domingo no Parque" e "Alegria, Alegria" no palco do teatro Paramount, em São Paulo. Era o começo de uma revolução que varreria a música popular brasileira. A estreia de "Alegria, Alegria", por sinal, já foi comentada aqui no Blog Bonas Histórias em um post de fevereiro deste ano.
Agora, o foco da análise é "Domingo no Parque". A música tem letra de Gilberto Gil e arranjos do maestro Rogério Duprat. A canção chegou à final do concurso ao lado de "Ponteio", de Edu Lobo (interpretada em conjunto com Marília Medalha), e "Roda Viva", de Chico Buarque (cantada com o MPB4). Gilberto Gil, por sua vez, foi ao festival tendo ao seu lado os jovens integrantes dos Mutantes (Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Rita Lee), até então uma banda totalmente desconhecida. O próprio Gilberto Gil era um novato no cenário musical do eixo Rio-São Paulo. Ele havia sido apresentado ao grande público há poucos meses no "O Fino da Bossa", programa de televisão comandado por Elis Regina. A cantora naquela oportunidade interpretou algumas canções de Gilberto Gil.
A originalidade de "Domingo no Parque" está tanto em sua letra quanto em sua melodia. Para ser mais preciso, o que a faz espetacular é a combinação harmônica e criativa desses dois elementos. De forma geral, a música mistura como poucas vezes visto elementos da tradição popular com referência pop e com o erudito, formando uma concha de retalho cultural. Para completar, há ainda pitadas de romance policial na letra. Incrível! Influenciada diretamente pelo álbum Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Bands, dos Beatles, lançado alguns meses antes e que revolucionou a música internacional, a criação de Gilberto Gil ainda tem a propriedade de encantar os ouvidos dos amantes da boa música ainda hoje.
Antes de comentarmos com mais detalhes os aspectos estruturais desta música, veja abaixo sua letra na íntegra:
Domingo no Parque (Gilberto Gil) - 1967
O rei da brincadeira
Ê, José!
O rei da confusão
Ê, João!
Um trabalhava na feira
Ê, José!
Outro na construção
Ê, João!...
A semana passada
No fim da semana
João resolveu não brigar
No domingo de tarde
Saiu apressado
E não foi prá Ribeira jogar
Capoeira!
Não foi prá lá
Pra Ribeira, foi namorar...
O José como sempre
No fim da semana
Guardou a barraca e sumiu
Foi fazer no domingo
Um passeio no parque
Lá perto da Boca do Rio...
Foi no parque
Que ele avistou
Juliana
Foi que ele viu
Foi que ele viu Juliana na roda com João
Uma rosa e um sorvete na mão
Juliana seu sonho, uma ilusão
Juliana e o amigo João...
O espinho da rosa feriu Zé
(Feriu Zé!) (Feriu Zé!)
E o sorvete gelou seu coração
O sorvete e a rosa
Ô, José!
A rosa e o sorvete
Ô, José!
Foi dançando no peito
Ô, José!
Do José brincalhão
Ô, José!...
O sorvete e a rosa
Ô, José!
A rosa e o sorvete
Ô, José!
Oi girando na mente
Ô, José!
Do José brincalhão
Ô, José!...
Juliana girando
Oi girando!
Oi, na roda gigante
Oi, girando!
Oi, na roda gigante
Oi, girando!
O amigo João (João)...
O sorvete é morango
É vermelho!
Oi, girando e a rosa
É vermelha!
Oi girando, girando
É vermelha!
Oi, girando, girando...
Olha a faca! (Olha a faca!)
Olha o sangue na mão
Ê, José!
Juliana no chão
Ê, José!
Outro corpo caído
Ê, José!
Seu amigo João
Ê, José!...
Amanhã não tem feira
Ê, José!
Não tem mais construção
Ê, João!
Não tem mais brincadeira
Ê, José!
Não tem mais confusão
Ê, João!...
Êh! Êh! Êh Êh Êh Êh!
Êh! Êh! Êh Êh Êh Êh!
Êh! Êh! Êh Êh Êh Êh!
Êh! Êh! Êh Êh Êh Êh!
Êh! Êh! Êh Êh Êh Êh!...
Agora, acompanhe o vídeo com a apresentação original de "Domingo no Parque". Ela foi feita por Gilberto Gil e pelos Mutantes durante o Festival da Música Popular de 1967. Como o vídeo é antigo, a qualidade das imagens não é muito boa. Pelo menos o som, o mais importante neste caso, está em melhores condições:
A melodia combina berimbau com guitarras elétricas. Também mescla sons típicos de parque de diversão com um baião bem estilizado. Surgem, a todo instante, barulhos de realejo, brinquedos e crianças. Os momentos decisivos da música são pontuados com gritos e arranjos especiais de violino. Estes recursos aumentam ainda mais a dramaticidade da trama. A impressão é que estamos acompanhando uma cena de cinema. Só que ao invés de imagem, temos uma narrativa sonora com forte intensidade melodramática.
A letra trata de uma história densa e bem elaborada. José e João sãos amigos com características distintas. Um é tímido e pacífico (José) e o outro é extrovertido e brigão (João). O que une os dois é a vida simples (José é feirante enquanto João é operário da construção civil) e, principalmente, o amor pela mesma mulher, Juliana.
Em certo domingo, o José pacato e brincalhão se transforma em um assassino frio e impiedoso. Ele vê Juliana no parque de diversão com João. A raiva sobe à cabeça do feirante e ele, em uma ação destemperada, mata a amada e o amigo com uma faca. O crime passional põe fim à narrativa. José é (provavelmente) preso e João e Juliana são enterrados. Com isso, "Amanhã não tem feira/ Ê, José!/ Não tem mais construção/ Ê, João!/ Não tem mais brincadeira/ Ê, José! Não tem mais confusão/ Ê, João!".
O fim triste tem como contraste a volta da animação sonora. Esta opção é uma clara imposição feita pelos autores da música ao festival que participavam. Seria muito complicado terminar a canção de maneira triste. Isso iria prejudicá-la no concurso. Dificilmente "Domingo no Parque" teria alcançado o segundo lugar (a primeiro posição ficou com "Ponteio") se não tivesse um encerramento alegre melodicamente (contrastando, portanto, com a tristeza narrativa).
O efeito da letra é potencializado pelos arranjos dramáticos de Duprat e pelos cortes bruscos no poema. O resultado é uma grande confusão visual, que representa a vertigem emocional das personagens. O acompanhamento da orquestra de Rogério Duprast é incrível. A mistura de música popular, guitarras e arranjos de música clássica é espetacular.
Esta é uma das melhores canções brasileiras de todos os tempos. Em 2008, a já extinta Revista Bravo colocou "Domingo no Parque" como sendo a vigésima música mais importante da nossa história. Realmente, esta original criação de Gilberto Gil merece ser ouvida várias vezes. Ela um clássico da nossa cultura e a principal obra da fértil carreira do baiano tropicalista.
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