No começo deste mês, fui ao Auditório do MASP para assistir ao espetáculo teatral "Marte, Você Está Aí?". A autora da peça é Silvia Gomez, uma jovem dramaturga mineira formada em jornalismo e que está radicada em São Paulo há mais de uma década e meia. Depois de destacada atuação no Centro de Pesquisa Teatral (CPT), quando trabalhou por oito anos com Antunes Filho, Silvia passou recentemente a produzir peças para outras companhias. Em 2015, ela conquistou o Prêmio APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) de melhor texto com "Mantenha Fora do Alcance do Bebê", até aqui seu trabalho mais celebrado.
As peças de Silvia Gomez possuem tradicionalmente um clima tenso e uma narrativa densa, misturando angústias contemporâneas com reflexões sociopolíticas. Em "Marte, Você Está Aí?", a mineira faz uma crítica contundente a uma sociedade pseudofuturista. Nela, a repressão política e o preconceito ideológico continuam presentes na vida dos indivíduos. Apesar de todo o avanço tecnológico, o pensamento discordante e a opinião livre das pessoas comuns são os principais inimigos do Estado. Os agentes mais atuantes da sociedade são aqueles que mais sofrem com a repressão policial, que busca o tempo inteiro calar as vozes discordantes. As pessoas mais engajadas e mais influentes da comunidade são, portanto, pessoas subversivas.
"Marte, Você Está Aí?" teve a direção de Gabriel Fontes Paiva e a participação da experiente e conceituada atriz Selma Egrei. Completa o elenco a dupla formada por Michelle Ferreira e Jorge Emil. Com 80 minutos de duração, a peça intriga o público com um texto intenso (e, muitas vezes, enigmático), com uma narrativa entrecortada, personagens dúbias e cenas de forte dramaticidade.
O enredo da peça se passa em um futuro (não tão distante) no qual a exploração interplanetária é uma rotina. Uma jovem ativista política (interpretada por Michelle Ferreira) é alvo de perseguição política após liderar um protesto estudantil. Ferida, a moça precisa fugir da polícia e do Estado repressor. Escondida em uma casa abandonada, ela começa a cuidar de um cachorrinho que estava desamparado. O animalzinho ganha o nome de Marte.
Enquanto a estudante procura se esconder dos inimigos, sua mãe (Selma Egrei) recebe a visita de Bob, um agente do Estado (Jorge Emil). O policial quer saber se a mãe sabe do paradeiro da filha. A postura intransigente e violenta do rapaz faz a senhora se lembrar de seu passado, quando era uma militante de esquerda. Naquela época, a hoje dona de casa conservadora sofreu com a tortura praticada pela ditadura militar. As cenas de mãe e filha são entrecortadas, mostrando que o passado e o presente se confundem assustadoramente.
"Marte, Você Está Aí?" é uma boa peça. Seu texto é forte e contundente. É possível notar a maturidade e a riqueza artística de Silvia Gomez. A dramaturga faz várias críticas à sociedade contemporânea, como o consumo excessivo, a força da publicidade na rotina das pessoas, as relações conflituosas dentro das famílias, a intransigência de opiniões, a perseguição ideológica, o peso excessivo do aparato estatal e a violência urbana.
A grande sacada para entender o enredo da peça é notar que o futuro imaginado pela autora é na verdade nosso presente. Além disso, presente e passado se misturam na postura de mãe e filha. A jovem estudante tem comportamentos, pensamentos e crenças muitíssimos parecidas com que a conservadora dona de casa tinha na juventude.
As atuações do trio de atores também merecem elogios, assim como a produção da trilha sonora e o jogo de luzes. Michelle Ferreira, Jorge Emil e Selma Egrei são experientes e muito talentosos. A música torna o clima da peça ainda mais tenso enquanto as luzes guiam os olhares do público durante todo o espetáculo. Esses dois elementos participam de forma sinestésica da peça, mexendo com as emoções da plateia.
Gostei também das soluções criativas que foram colocadas em prática em "Marte, Você Está Aí?". Desde a presença enigmática dos atores no palco enquanto a plateia procurava seus lugares, antes do espetáculo começar efetivamente, até a escolha de um cachorro cenográfico para interagir com as personagens, são pequenos detalhes que engrandecem a peça.
Contudo, a aridez do texto e a complexidade da trama podem não agradar a maioria do público. Definitivamente, essa não é uma peça para as massas. A dificuldade de entendimento do que está acontecendo no palco (principalmente na primeira metade do espetáculo) pode levar muita gente na plateia a repudiar a trama e não mergulhar em sua densidade dramática.
Ao sair do teatro, ouvi muitos comentários negativos do público. Acho que a maioria não entendeu a obra de Silvia Gomes e/ou não conseguiu se conectar a profundidade do texto. Admito que também achei muito difícil a tarefa de montar o quebra-cabeça narrativo exposto pelo trio de atores no palco.
Se a dramaturga minieira fosse uma cineasta, compararia seus trabalhos aos de Alain Resnais, Akira Kurosawa, Federico Fellini, Ingmar Bergman e Krzysztof Kieslowski. Esses artistas jamais foram (são ou serão) populares. A beleza de suas obras está justamente na profundidade filosófica e na alta dose de subjetividade de suas criações. Assim, é possível que "Marte, Você Está Aí?" encante muito mais a crítica teatral do que o próprio público presente no teatro.
A temporada inicial de "Marte, Você Está Aí?" terminou no dia 6 de agosto, mas é bem provável que a peça volte a ser encenada nesse ano aqui em São Paulo, seja no Auditório do MASP ou em outro teatro paulistano. Quem tiver coragem para encarar a densidade, a aridez e a complexidade do espetáculo, fique ligado nas novidades do segundo semestre.
Gostou deste post e do conteúdo do Bonas Histórias? Deixe, então, sua opinião sobre as matérias desta coluna. Para acessar as demais críticas teatrais, clique em Teatro. E não se esqueça de curtir a página do blog no Facebook.