Li, ao longo da semana passada, os três livros da série literária "1Q84" (Alfaguara), de Haruki Murakami. Essa trilogia foi lançada no Japão entre maio de 2009 e abril de 2010. Trata-se, portanto, do título mais recente do autor japonês que o Desafio Literário analisa neste mês de julho. As obras de Murakami estudadas até agora no Blog Bonas Histórias foram publicadas originalmente no século passado: "Ouça a Canção do Vento" (Alfaguara), em 1979, "Pinball, 1973" (Alfaguara), em 1980, "Caçando Carneiros" (Alfaguara), em 1982, "Norwegian Wood" (Alfaguara), em 1987, e "Minha Querida Sputnik" (Alfaguara), em 1999.
No Brasil, a Alfaguara publicou "1Q84" entre novembro de 2012 e novembro de 2013. Os três livros da coleção possuem juntos um total de 1.280 páginas. A série é o mais ambicioso trabalho do principal escritor japonês da atualidade. Haruki Murakami inspirou-se no livro "1984" (Companhia das Letras), clássico de George Orwell. A maior diferença entre esses títulos é que a obra japonesa é uma trama fantástica, enquanto a publicação do inglês é uma distopia.
Os três livros de "1Q84" ultrapassaram a marca de oito milhões de unidades vendidas globalmente. No Japão, sua primeira edição se esgotou no primeiro dia. Ao final do primeiro mês, os leitores japoneses já tinham adquirido um milhão de cópias, um recorde no mercado editorial local. Nos Estados Unidos, as livrarias tiveram que abrir à meia-noite no dia de lançamento da obra para atender à grande demanda de clientes. Em alguns momentos, até parecia que o livro publicado fosse de J. R. R. Tolkien ou de J. K. Rowling, best-sellers juvenis.
Há uma explicação racional para essa avidez dos leitores por "1Q84". Quando os livros dessa série chegaram às livrarias do mundo todo, seu autor já era um dos principais nomes da literatura contemporânea. Popular e muito carismático, Haruki Murakami havia conquistado uma legião de fãs ao longo das décadas de 1980 e de 1990, tanto em seu país quanto no exterior. Seu público fiel estava ansioso para conferir o trabalho mais aguardado do artista, produzido ao longo de vários anos. A promessa era que "1Q84" fosse a obra máxima de um escritor que vivia a fase madura da carreira. Por isso a grande expectativa dos leitores e a dimensão volumosa do lançamento dos livros dessa coleção.
Apesar do retumbante sucesso comercial de "1Q84", o título mais vendido de Murakami continua sendo "Norwegian Wood", com mais de 12 milhões de unidades comercializadas no planeta. A diferença é que o romance sobre o triângulo amoroso formado por Toru Watanabe, Naoko e Midori Kobayashi está no mercado há trinta anos, enquanto a série baseada em "1984" completou apenas sete anos de vida nas livrarias. Por outro lado, "Norwegian Wood" é um único livro, enquanto "1Q84" é formado por três.
O enredo de "1Q84" é difícil de explicar porque ele é bastante fragmentado e um tanto amalucado. Mesmo assim, vou tentar descrevê-lo. A história se passa no Japão durante o ano de 1984. O livro 1, que tem 432 páginas e é dividido em 24 capítulos, apresenta dois focos narrativos. De início, achamos as tramas totalmente distintas. Nos capítulos ímpares, conhecemos a vida de Aomame, uma jovem assassina que trabalha como instrutora de artes marciais em uma academia de Tóquio. Nos capítulos pares, lemos sobre Tengo Kawana, um professor de matemática que sonha em ser romancista. Ambos levam vidas solitárias e monótonas na capital japonesa. Apenas nos capítulos finais desta obra inicial da série, percebemos que as tramas das duas personagens irão se cruzar e vão compor uma única narrativa.
Tanto Aomame quanto Tengo são misteriosamente levados para um mundo paralelo. Eles passam a viver em uma realidade diferente do que estavam acostumados. Para datar esse novo tempo, eles a chamam de "1Q84". Ou seja, trata-se de uma variação do ano de 1984, que até então viviam. A passagem para o novo mundo acontece logo no primeiro capítulo. Aomame precisa chegar a um hotel para matar um homem que espancava a esposa (a protagonista é assassina de homens violentos). Para não chegar atrasada ao compromisso, a moça abandona o táxi em que estava parada em meio a um grande congestionamento. Ela desce uma escada sinistra no alto de um movimentado viaduto para pegar o trem na estação mais próxima. Contudo, ao utilizar aquela escada de emergência, ela passa para um mundo diferente. A principal característica desse novo lugar é a presença de duas luas no céu.
Curiosamente, a realidade com as duas luas no céu foi descrita por Tengo em um dos seus livros. Tal obra se chama "Crisálida de Ar" e se tornou um best-seller no Japão. Porém, o professor de matemática é apenas o ghost writer da publicação. Sua autora é Eriko Fukada, apelidada de Fukaeri. A garota tem 17 anos e é disléxica. Como ela tinha uma excelente história nas mãos e não conseguia escrever o romance, Tengo foi convocado pelo editor da obra para ajudar a moça.
No livro 2 de "1Q84", com 376 páginas e 24 capítulos, Tengo e Aomame tornam-se alvo da ira de uma misteriosa seita religiosa. Os capítulos sobre a dupla continuam intercalados (os ímpares são dela e os pares são dele). O professor revelou a secreta história do "Povo Pequenininho" em seu livro "Crisálidas de Ar". O "Povo Pequenininho" é quem aparentemente comanda o grupo religioso que o persegue. O escritor não sabia que aquela trama fantástica de Fukaeri era real e não podia ser revelada para a sociedade japonesa. A instrutora de artes marciais, por sua vez, precisou assassinar o líder do mesmo grupo religioso, pois ele estuprava as meninas da seita. Assim, Aomame passou a ser também alvo da vingança dos religiosos, que queriam a cabeça da moça como vingança pela perda do seu amado líder.
Enquanto as personagens principais fogem dos fanáticos integrantes da seita, descobrimos que Tengo e Aomame foram colegas de escola em um passado distante. Mesmo sem se ver há muito tempo (aproximadamente duas décadas), a dupla permanece apaixonada um pelo outro. Assim, ao mesmo tempo em que precisam fugir dos inimigos em comum, os protagonistas desejam se reencontrar para vivenciar aquele amor puro da infância, que sempre permaneceu platônico.
É apenas no livro 3 de "1Q84" que boa parte dos mistérios da trama é revelado. Essa última obra da trilogia tem 472 páginas e 31 capítulos. Sua grande novidade é a inserção de mais um foco narrativo. Além de acompanharmos em capítulos diferentes as aventuras de Tengo e Aomame, agora podemos ler sobre Ushikawa. Esse é o homem contratado pela seita religiosa para perseguir o casal de protagonistas. A partir desse ponto, a história se divide em três sequências narrativas que se entrecortam o tempo inteiro.
Nesta última parte da série, os desafios de Tengo e Aomame se tornam mais difíceis. A atuação de Ushikawa para localizar os dois é exemplar. O investigador japonês não deixa passar nenhuma pista e consegue localizá-los. Hercule Poirot e Sherlock Holmes são principiantes perto de Ushikawa. Para complicar ainda mais a vida dos protagonistas, fatos surpreendentes abalam suas rotinas. Tengo e Aomame vão tentar viver juntos, mas para isso precisam frustrar as investidas de Ushikawa, além de precisarem se encontrar. Só depois disso, poderão pensar em uma maneira de sair da realidade angustiante de "1Q84".
Os livros da série "1Q84" são realmente muito bons. A história é ótima e consegue prender a atenção do leitor. A fragmentação da narrativa em dois polos distintos não chega a confundir o leitor em nenhum momento. Ela apenas aumenta o suspense e o clima de mistério. O que faz essa obra ser tão cativante é que as duas partes da trama são muito interessantes. Juro que não sei apontar qual delas é a melhor: se a de Tengo ou a de Aomame. Além disso, a narrativa segue com uma ótima fluidez ao longo dos três livros. Não há instantes chatos ou tediosos nas mais de 1.200 páginas da trilogia.
Sem dúvida nenhuma, esse é o título mais robusto de Murakami. Se até então o escritor japonês havia produzido novelas e romances com enredos simples, pessoais e de pouca densidade narrativa, "1Q84" inverte essa característica. A história é muito complexa, recheada de personagens inusitadas, acontecimentos fantásticos e ações típicas dos mais movimentados romances policiais modernos. De certa forma, podemos classificar "1Q84" como sendo um "Caçando Carneiros" mais bem elaborado e futurista. Não faltam perseguições, fugas, aventuras, teorias conspiratórias, reviravoltas e mistérios nos livros dessa coleção. As narrativas introspectivas, lentas, banais e reflexivas que Murakami estava acostumado a desenvolver nas obras precedentes se transformam aqui em um thriller ágil, movimentado e enigmático.
Quando comparamos a trajetória literária do autor, notamos outros elementos inusitados em "1Q84". Diferente da maioria dos livros de Haruki Murakami (escritos normalmente em primeira pessoa), este foi produzido em terceira pessoa. O narrador é onisciente e onipresente, se identificando com os protagonistas (narrador intruso). Esse recurso dá uma maior riqueza de detalhes à história e permite uma construção mais abrangente da narrativa. Creio que seria impossível desenvolver uma trama tão complexa se ela estivesse em primeira pessoa.
Outra questão interessante (e um tanto inovadora para Murakami) foi a descrição da história em dois focos narrativos diferentes (no último livro, esse recurso chega a ser ampliado para três focos). Cada capítulo é dedicado essencialmente a uma personagem. Somente lá na frente (no final do livro 1) é que as tramas aparentemente distintas irão se cruzar, fazendo sentido para o leitor e compondo uma única história.
Há também o surpreendente acréscimo de cenas, comportamentos e personagens violentos. Se nos demais livros de Murakami a principal e única violência era causada pela própria pessoa no momento de se matar (suicídio), aqui o repertório é bem mais variado. Há estupros, violência doméstica, assassinatos e torturas físicas e psicológicas. Em alguns momentos, me senti em um livro do sueco Stieg Larsson ou da francesa Régine Deforges.
Por falar em referências, também me recordei de Italo Calvino, mais precisamente do seu ótimo "Se Um Viajante Numa Noite de Inverno" (Planeta DeAgostini). O motivo foi a metalinguagem utilizada por Murakami. Dentro de seu livro, havia um escritor que produzia uma obra ficcional. No final do livro 1 da série, cheguei a cogitar que a trama de Aomame fosse na verdade o romance produzido por Tengo (essa impressão é desfeita ao longo do livro 2). Essa brincadeira entre o que é ficção e o que é ficção dentro da ficção deixa "1Q84" mais divertido. E por falar em 1984, nem preciso comentar a referência óbvia a George Orwell, né? A sociedade opressora criada pelo autor inglês é discutida ao longo da trilogia.
No restante, essa obra mantém as demais características típicas de Murakami: enredo com contornos fantásticos; protagonistas que viajam constantemente pelo país; personagens com problemas no âmbito familiar (relacionamentos traumáticos com os pais); pessoas desajustadas e incompletas que levam vidas fúteis e com rotinas monótonas; relações sentimentais pobres e perecíveis; amor platônico construído na infância; sexo casual ou extraconjugal como forma de aliviar "as necessidades da carne" (ou seja, o sexo é desvinculado do amor e das relações monogâmicas); trama com boa dose de erotismo; muitas cenas oníricas; e narrativa com pegada pop, com citação à cultura contemporânea.
Só achei três pontos negativos em "1Q84". O primeiro é a constituição falha de Tengo como personagem. Ele me parece pouco verossímil. O rapaz é ao mesmo tempo um excelente professor de matemática e um talentoso escritor. Juro que nunca vi esse tipo de combinação na vida real ou na ficção. Apesar de ser possível, ela é um tanto pitoresca. Essa característica prejudica um pouco a caracterização da personagem. Onde já se viu alguém ser gênio em campos de trabalho tão distintos?! Neste caso, Aomame é muito mais interessante. Ela é a versão feminina do típico protagonista de Murakami. A jovem é solitária, não possuindo amigos nem namorado. Introspectiva, ela age passionalmente, sacrificando sua vida pessoal em prol de sua ideologia (matar homens sádicos).
O segundo elemento que me incomodou um pouco foi a falta de explicação para alguns mistérios da trama. Boa parte das incógnitas foi sim respondida. Porém, algumas dúvidas essenciais dos livros não foram explicadas aos leitores. Por exemplo, quem é o "Povo Pequenininho"? De onde eles vieram, onde estão, como agem e o que desejam? Não encontrei respostas objetivas a isso e o autor também não pareceu preocupado em justificá-las. O tom onírico da trama e o texto subjetivo de Murakami também podem dificultar a compreensão mais concreta de alguns pontos da história.
E por fim, achei meio forçado Tengo e Aomame serem apaixonados um pelo outro depois de mais de duas décadas separados. A relação dos dois na infância foi superficial e corriqueira. Não havia motivo, portanto, para eles alimentarem um amor platônico por tanto tempo.
Apesar de alguns deslizes, "1Q84" tem mais aspectos positivos do que negativos. O ponto alto da trilogia é seu desfecho. Haruki Murakami consegue encerrar sua obra com primor. Ao mesmo tempo em que produz um final feliz (algo sempre desejado pela maioria dos leitores), o escritor japonês acrescenta boa dose de subjetividade e de reflexão à história, tornando o encerramento interpretativo.
"1Q84" é a segunda obra que mais gostei de Murakami. "Norwegian Wood" continua sendo o meu livro favorito desse autor.
Para encerrar com chave de ouro este Desafio Literário, voltarei aqui no Blog Bonas Histórias, no próximo domingo, para fazer a análise completa da literatura de Haruki Murakami. Não perca!
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