Aproveitei minha mais recente viagem a Minas Gerais para ler o sexto e último livro do Desafio Literário deste mês de junho (quem disse que não há vantagem em se viajar de ônibus, hein?). “Sob o Céu de Novgorod” (Nova Fronteira), de Régine Deforges, não faz parte da coleção “A Bicicleta Azul” (ufa!), sendo uma obra não seriada da escritora francesa. Admito que depois de ler mais de 1.200 páginas das aventuras de Léa Delmas, precisava de uma nova história para me entreter.
Publicado pela primeira vez em 1989, “Sob o Céu de Novgorod” é um romance histórico baseado em fatos reais. Aproveitando-se de acontecimentos da Idade Média, a escritora elaborou uma intrincada narrativa ficcional com algumas personalidades da corte francesa, inglesa e russa. Ou seja, ao invés de construir um romance calcado em um determinado momento histórico (como ocorreu em todos os livros de série “A Bicicleta Azul”), Régine Deforge opta, aqui, por dramatizar a vida e os sentimentos de personagens que existiram de fato. Usa-se, portanto, os trabalhos e os estudos históricos como matéria-prima para a produção de uma narrativa ficcional. Vale citar que este não foi um expediente totalmente novo no trabalho literário de Régine Deforges. Ela já havia usado essa estratégia narrativa em outras obras como, por exemplo, “A Revolta das Freiras” (Best Seller), de 1981, romance histórico ambientado no século VI. Ali, a autora misturava personalidades e fatos históricos com personagens e situações fictícias.
“Sob o Céu de Novgorod” se passa na metade do século XI. A trama aborda a vida de Ana, uma jovem princesa russa. Ela se transforma em rainha francesa, em 1051, após se casar com Henrique I, rei da França. Ana, então com 20 anos, precisa abandonar bruscamente a família, os amigos e sua vida em Novgorod, sua cidade natal, para integrar a corte do seu novo marido. Essa mudança não é fácil para ela. Acostumada a caçar, cavalgar, passear e viajar pelos campos e pelas florestas de seu país, Ana se sente enclausurada na França. A moça também estranha a pobreza da população francesa e o desprestígio das mulheres naquela sociedade.
Contudo, o que mais a incomoda é o comportamento de Henrique I. O rei é homossexual assumido e prefere a companhia dos seus valetes à da rainha. Ele só consegue fazer sexo com ela quando é excitado por seus parceiros. E Henrique I só faz isso para que Ana engravide, o que o livrará dos comentários maldosos da corte e da população.
Mesmo amada por todos no novo país, Ana se sente solitária e desprestigiada no reino francês. Nessas horas, ela se recorda com saudosismo de sua infância e de sua mocidade passadas na Rússia. Lá, ela tinha uma vida livre e, ainda por cima, era amada e amava. Sua grande paixão era Filipe, seu amigo de infância. O amor dos dois era casto e um tanto platônico. Ciente de suas responsabilidades como princesa e como uma futura rainha, Ana nunca se jogou aos braços do amado, apesar de ansiar por isso.
Proibido de viajar para a França pelos reis russos, Filipe dá um jeito de migrar para a corte francesa e ficar oculto junto à rainha, protegendo-a dos perigos iminentes. Sua estratégia de disfarce é tão boa (e heterodoxa) que nem mesmo Ana sabe de sua presença ali. O amor do rapaz é tão grande que ele aceita o papel de vassalo só para estar perto dela e garantir a proteção e a felicidade da amada.
O livro possui aproximadamente 300 páginas e é dividido em 40 capítulos. Os capítulos são curto, o que dá certo dinamismo à narrativa. A velocidade da história também é acentuada. “Sob o Céu de Novgorod” retrata um período extenso da vida de Ana, de 1051 a 1075. O texto de Régine Deforges é direto (sem rodeios) e com uma linguagem simples (acessível).
O que pode atrapalhar um pouco o leitor é o uso de alguns termos russos (devidamente explicados nas notas de rodapé) e o excesso de personagens (neste caso você terá que recorrer a sua memória). Os dois recursos são justificados. O primeiro serve para dar credibilidade à narrativa de Ana, alguém de alma russa. Já o segundo é explicado pelo excesso de mortes na segunda metade do romance. Sem não houvesse tantos personagens, o livro teria só metade de páginas. Há alguns autores, creio eu, que colocam os personagens na história já pensando em como vão mata-los. Deve ser divertido...
Para escrever esse romance, Régine Deforges precisou fazer uma grande pesquisa sobre o período medieval francês, inglês e russo, além de recorrer a especialistas e estudiosos no tema. O resultado é uma obra emocionante e muito convincente. É impossível, no meio da leitura, saber o que é ficção e o que é realidade na história descrita por Deforges.
Esse é o ponto que mais chama a atenção em “Sob o Céu de Novgorod”. Sua ambientação histórica é bem fidedigna. Tudo ali parece ancorado em estudos sérios. A vestimenta, os rituais religiosos e de coroação dos nobres, os alimentos, os hábitos cotidianos, a realidade sociocultural da época, a geografia e os personagens são descritos de maneira detalhada. Se isso pode comprometer um pouco a fluidez do texto, por outro lado, ajuda na composição do cenário.
Como um bom livro de Régine Deforges, vamos encontrar aqui uma trama construída em cima de uma mulher jovem, muito bonita e de personalidade forte. Os protagonistas da francesa são sempre do sexo feminino. Ana é destemida e caridosa. Ela possui também valores e pensamentos muito à frente do seu tempo. A novidade desse romance é a presença de um homem ultrarromântico. Fiel a valores como honra, fidelidade, coragem e abnegação, Filipe possui características de um herói à moda antiga. Ele leva uma vida em prol de sua amada, chegando a se esquecer de si próprio. Trata-se do único personagem masculino importante dos romances de Deforges com essas características.
Outros dois elementos corriqueiros nas obras de Régine Deforges e que estão presentes aqui são a violência e o erotismo. A violência às vezes beira o absurdo. Ela está presente tanto nos relatos das guerras como nas cenas cotidianas. É comum, em “Sob o Céu de Novgorod”, todo tipo de barbárie: mulheres serem estupradas, soldados pilharem casas e povoados, homens sofrerem amputações de membros do corpo e pessoas ficaram deformadas ou deficientes por causa da inveja alheia. Talvez a cena mais forte de violência do livro seja aquela em que Filipe precisa se autoimpor. É chocante o flagelo que o personagem opta por passar!
O erotismo, por sua vez, aparece nas descrições do que acontece quando os desejos sexuais dos personagens são aflorados. As cenas de sexo são de todo tipo: heterossexual, homossexual, consentido, não consentido, orgia, sodomia e até, acredite, momentos românticos a dois. Régine Deforfes, que se dedicou com afinco aos contos eróticos, evidentemente gosta dos elementos mais lascivos das suas histórias, escrevendo algumas linhas sempre que possível.
Neste ponto, é surpreendente o casamento de Ana com o conde Raul de Crépy. A rainha, uma vez viúva, aceitou as investidas de um dos maiores vilões do romance. A justificativa é hilária para uma protagonista: ela alega estar carente de afeto e precisar de um homem viril a seu lado. Depois de anos casada com um homem que a desprezava na cama, Ana encontrou alguém que a desejasse intensamente. Aos olhos de rainha, enfim ela teria um homem que a satisfaria sexualmente. Aí, não importava o quão cruel Raul era com os outros. Ele podia matar, espancar, estuprar e roubar o quanto fosse fora de casa. A esposa só via o quanto o marido era bom para ela e para seus filhos.
Este, talvez, seja um dos casais mais improváveis da literatura. A união de Ana e Raul de Crépy provoca certo mal-estar no leitor. “Como isso é possível?” é a pergunta que todos se fazem. A sensação de inconformismo só aumenta quando a protagonista afirma viver os melhores anos de sua vida com aquele homem cruel e repugnante. As maravilhas que ele faz na cama, o carinho genuíno dele para com ela e apoio financeiro de Raul às causas sociais de Ana o transformam no melhor marido do mundo aos olhos da personagem principal.
O desfecho da história é, ao mesmo tempo, bonito e triste. Ele carrega uma forte carga simbólica e poética. A cena final é uma das mais belas que li nos últimos anos. Ela tem elementos ultrarromânticos sim, mas não abre mão da realidade prática do mundo verdadeiro (algo tão característico de Deforges). Talvez Ana e Filipe sejam um dos poucos casais apaixonados da literatura mundial que não trocaram entre si um único beijo sequer durante toda a trama (pelo menos eu não lembro disso ter ocorrido). O momento mais carnal do relacionamento dos dois é justamente na morte. Impossível não se emocionar.
Gostei desse livro. Que Léa Delmas não nos ouça, mas precisava de uma história diferente. Obrigado, Régine Deforges, por ter escrito novas tramas.
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