A companhia teatral LaMínima celebra, em 2017, vinte anos de sua criação. O grupo foi fundado por Domingos Montagner, ator global falecido no ano passado, e por Fernando Sampaio. A proposta da dupla sempre foi promover a arte circense de maneira inteligente e poética. Misturando teatro e circo, os artistas da trupe fazem leituras ao mesmo tempo engraçadas e dramáticas do ofício de palhaço. Os leitores mais antigos do Bonas Histórias já conhecem algumas peças da LaMínima. A última delas que analisamos aqui no blog foi "Mistero Buffo", em 2015.
Para comemorar as duas décadas da companhia e para prestar uma homenagem ao primeiro aniversário de falecimento de Montagner, a FIESP fechou uma parceira com a LaMínima. Ao longo deste ano, o braço cultural da Federação das Indústrias de São Paulo irá apresentar em suas unidades espalhadas pelo estado algumas das peças históricas do grupo. As reencenações trazem novamente as produções e as personagens do grupo circense que marcam época.
Na semana passada, assisti, no Teatro do SESI, no Centro Cultural FIESP, a primeira dessas peças. O espetáculo "Pagliacci" é, provavelmente, o melhor retrato do belo trabalho realizado pela LaMínima. A adaptação da ópera "Pagliacci" de Ruggero Leoncavallo ganha aqui um aspecto contemporâneo, uma ambientação nacional e, principalmente, uma abordagem metalinguística.
A comédia-dramática criada pela LaMínima apresenta os desafios de um fictício grupo circense para se tornar conhecido do grande público. Acostumados a se apresentar individualmente em pequenas cidades do interior do país, os artistas da companhia precisarão unir suas forças e seus talentos para chegarem ao estrelato. Entretanto, as desavenças internas e as intrigas amorosas podem colocar a empreitada de todos em risco.
A concepção de "Pagliacci" foi da dupla fundadora da companhia, Domingos Montagner e Fernando Sampaio. A produção do texto ficou a cargo de Luís Alberto de Abreu e a direção é de Chico Pelúcio. No elenco, além de Fernando Sampaio, estão Alexandre Roit, Carla Candiotto, Fernando Paz, Filipe Bregantim e Keila Bueno. Desses, eu só conhecia o trabalho dos Fernando (Sampaio e Paz).
O enredo de "Pagliacci" é totalmente metalinguístico. Trata-se de uma peça que fala da criação e da encenação de uma produção teatral pelos próprios autores no palco. O espetáculo é narrado por Peppe (Fernando Paz), um palhaço escritor. Ele recebe a incumbência do chefe da companhia circense, Canio (Alexandre Roit), para produzir algo inovador e de "bom-gosto". Para tal, deve se afastar do tom popular e cômico das encenações passadas. O que o público vê desfilar no palco é exatamente o novo trabalho escrito por Peppe.
Na fictícia peça da companhia circense, Peppe opta por contar a história do próprio grupo. O personagem principal é o chefe dos artistas. Canio é retratado como um homem egoísta, ambicioso e insensível. Em contrapartida, seu primeiro parceiro, Silvio (Fernando Sampaio), é um palhaço sonhador, ingênuo e puro. Nedda (Keila Bueno), uma bonita e talentosa artista do grupo, se casa com Canio para só depois descobrir-se apaixonada por Silvio. A relação extraconjugal no seio da companhia provoca reações distintas por parte dos demais integrantes. Enquanto Strompa (Carla Candiotto), uma artista desprezada pelo chefe, apoia a nova paixão de Nedda, Tonio (Filipe Bregantim), um ambicioso palhaço, almeja uma cruel vingança para Silvio. Por isso, ele ajuda Canio a descobrir a traição da esposa.
A beleza de "Pagliacci" está na mistura de humor e melodrama. As cenas cômicas e tristes se sucedem rapidamente, emocionando a plateia de maneira distinta. Tanto os momentos hilários quanto os instantes mais dramáticos são excelentes! O ótimo texto também confere um ar filosófico à trama. Os diálogos são muito bem construídos e externam com propriedade as inquietações íntimas das personagens.
A beleza do circo e o saudosismo dos tempos áureos dos espetáculos circenses conferem uma graça especial à história. Este é o principal mérito da peça criada por Domingos Montagner e Fernando Sampaio. Ela consegue mostrar a diversidade e a profundidade do trabalho no picadeiro. Em cima do palco, os seis atores fazem de tudo. Eles dançam, cantam, tocam diferentes instrumentos musicais e interpretam cenas dos mais diversos gêneros teatrais. Além disso, eles fazem incríveis encenações em que a mágica, o malabarismo e o equilíbrio corporal dão à tônica do espetáculo.
"Como eles conseguem fazer tudo isso ao mesmo tempo?!" é a pergunta que percorre o teatro durante a peça. A sensação da plateia é estar diante de artistas completos e de altíssimo nível. Curiosamente, essa impressão é oposta à visão preconceituosa e pejorativa que os artistas circenses possuem hoje em dia. A maioria do público contemporâneo despreza este tipo de produção, considerando-a inferior e obsoleta. Nada mais equivocado! O circo, de acordo com os integrantes da LaMínima, é algo rico, vivo e emocionante.
Se o Cirque du Soleil emociona o público com um tipo de espetáculo moderno, cosmopolita, tecnológico e universal, a LaMínima consegue o mesmo efeito emocional com um estilo de produção completamente diferente ao da companhia circense canadense. As peças teatrais do grupo nacional são mais intimistas, regionais e usam os elementos tradicionais do velho circo. Aqui a figura do palhaço no picadeiro continua rendendo ótimas histórias. "Pagliacci", portanto, é a demonstração cabal da riqueza, da diversidade e da força cômica e dramática do circo tradicional.
Ao final do espetáculo, é impossível dizer qual dos seis artistas no palco esteve melhor. Todos estão maravilhosos na interpretação de suas personagens! Apesar do ótimo desempenho de Alexandre Roit, é inegável a falta que Domingos Montagner faz. O carismático ator conseguia cativar a plateia antes mesmo de a peça começar. Nosso consolo é saber que Fernando Sampaio e seus parceiros continuam levando essa bela empreitada para frente com o mesmo entusiasmo e a mesma excelência de sempre.
A encenação de "Pagliacci" acontece de quinta a domingo no Centro Cultural da FIESP, na cidade de São Paulo (Avenida Paulista, 1.313, Bela Vista). De quinta a sábado, o horário do espetáculo é às 20h. Aos domingos, ele acontece mais cedo, às 19h. A entrada é gratuita e a distribuição de ingressos é feita na bilheteria do Centro Cultural (aberta às 13h de quinta a sábado e às 11h aos domingos). "Pagliacci" ficará em cartaz apenas até o dia 2 de julho. Ou seja, os interessados têm pouco menos de duas semanas para acompanhar essa excepcional produção da LaMínima na cidade de São Paulo.
Quem quiser conhecer mais sobre a história da LaMínima, há uma exposição acontecendo ao lado do teatro, dentro do Centro Cultural FIESP. A mostra "La Mínima 20 anos" apresenta os figurinos, as personagens e as encenações que marcaram o grupo ao longo de suas duas décadas. A exposição fica em cartaz até o dia 9 de julho e sua entrada também é gratuita.
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