Na segunda semana de junho, fui ao Reserva Cultural para conferir a estreia de "Neve Negra" (Nieve Negra: 2016) nos cinemas brasileiros. Esta produção argentina foi a mais cara do país vizinho no ano passado. A direção ficou a cargo de Martin Hodara, jovem diretor em sua primeira empreitada em um longa-metragem. Até então, ele só havia trabalhado como assistente de direção. O elenco foi formado por grandes nomes do cinema argentino. Ricardo Darín, figura maior dos filmes portenhos, teve a companhia de Leonardo Sbaraglia, Laia Costa e Federico Luppi, ótimos e experientes atores. O bom roteiro é de Leonel D'Agostino, de "Cromo", uma série de suspense bem-sucedida da televisão argentina.
O que chama a atenção logo de cara neste filme é sua peculiaridade. Não estamos diante de uma comédia passada em Buenos Aires nem de um drama histórico envolvendo o conturbado período da ditadura militar. "Neve Negra" foge do padrão dos sucessos mais recentes do cinema argentino ao apostar em um suspense ambientado na bela e misteriosa Patagônia. Neste sentido, esse lançamento está mais para "O Médico Alemão" (Wakolda: 2013) do que para "Um Conto Chinês" (Un Cuento Chino: 2011) ou "Relatos Selvagens" (Relatos Salvajes: 2014). Portanto, esqueça um pouco a pegada de "O Cidadão Ilustre" (El Ciudadano Ilustre: 2016), "O Crítico" (El Crítico: 2013), “O Clã” (El Clan: 2015) ou "Las Insoladas" (Las Insoladas: 2014). "Neve Negra" é diferente.
No enredo deste longa-metragem, Marcos (interpretado por Leonardo Sbaraglia) volta à Argentina depois de muitos anos morando na Espanha. O motivo da viagem é o falecimento do pai. Em seu retorno à terra natal, Marcos traz junto sua esposa espanhola, Laura (Laia Costa), que está grávida. A moça irá conhecer a família do marido pela primeira vez.
Ao chegar à Argentina, Marcos fica sabendo pelo advogado do pai (Federico Luppi) de duas novidades. A primeira é que o falecido lhe deixou uma carta além do testamento. Nela, o pai expressa o desejo de ter suas cinzas depositadas em sua antiga propriedade na Patagônia. A família de Marcos é natural da região mais fria e distante do território argentino. Fora ali que o patriarca criara sozinho seus quatro filhos. Sua esposa (a mãe de Marcos e dos irmãos) falecera quando as crianças eram ainda pequenininhas.
Além disso, o advogado informa com entusiasmo que a propriedade na Patagônia recebeu uma proposta milionária de compra. Um grupo canadense ofereceu alguns milhares de dólares pela fazenda. Porém, para conseguir vendê-la, Marcos precisará da anuência dos seus dois irmãos ainda vivos (o caçula morreu tragicamente na infância). Sabrina (Dolores Fonzi), a irmã, vive há muitos anos em um manicômio, perturbada pelas lembranças da morte do irmão. Ela não será um obstáculo para a venda. O problema é Salvador (Ricardo Darin), o irmão mais velho. Ele é o único que ainda mora na fazenda na Patagônica e dificilmente aceitará deixar a propriedade. Além disso, ele odeia Marcos, com quem não fala há quase duas décadas.
O encontro dos irmãos na deserta e fria Patagônia se mostrará explosivo. A reunião entre a dupla irá suscitar antigos traumas familiares até então adormecidos na alma desses homens. A morte do irmão caçula é uma questão não resolvida para Marcos e Salvador. A tragédia ocorrida na adolescência de ambos precipitou a destruição da família e voltará à tona, levantando velhas rivalidades e ódios. A disputa violenta entre os irmãos será presenciada apenas por Laura, que pouco poderá fazer já que está grávida e precisa cuidar do filho que carrega junto a si.
"Neve Negra" é um ótimo thriller. O clima de suspense é construído pela indefinição de quem é o vilão na trama daquela perturbada família. Os acontecimentos de outrora são pouco a pouco revelados para o espectador. Por isso, não é possível saber o que levou as personagens às suas difíceis decisões do passado e aos seus comportamentos estranhos do presente. As revelações surgem, magistralmente, apenas nas últimas cenas. Aí, é hora de se segurar na poltrona da sala de cinema. Apesar das revelações não serem muito inovadoras, elas continuam sendo polêmicas e chocantes.
Outros elementos que aumentam a dose de suspense são a paisagem árida e fria da Patagônia e o jogo de luzes provocado pelas ousadas câmeras do filme. O isolamento, o gelo e o cenário selvagem da região mais inóspita da Argentina colaboram para tornar tudo mais tenso e complicado para as personagens. Uma reunião de dois homens que se odeiam em uma pequena casinha distante da sociedade não tem como acabar bem. Além disso, a fotografia com elementos do estilo noir dá o tom do filme do começo ao fim. A escuridão na maioria das cenas confere um aspecto de maior vilania às personagens. Uma simples refeição filmada com sombras transforma o cenário em um típico filme de terror.
A trilha sonora também merece destaque. Produzida por Zacarías M. de la Riva, as músicas (e muitas vezes a ausência delas) ajudam na construção do clima tenso e de suspense. A fotografia do filme também merece destaque. O frio da paisagem é tão intenso que provoca certo calafrio na plateia. Ou seja, leve uma blusa para a sessão de cinema porque você pode sair resfriado de lá...
A atuação dos atores também é algo a ser elogiada. Ricardo Darin, em um papel diferente do que ele está habituado a contracenar, está mais uma vez perfeito. Ao lado dele, Leonardo Sbaraglia e Laia Costa mostram ser também muito talentosos. Em uma produção em que a interpretação dos atores era fundamental para conferir a dramaticidade necessária à história, a escolha do elenco se mostrou acertadíssima.
O desfecho é o ponto alto do longa-metragem. A sequência final serve, ao mesmo tempo, para elucidar o mistério e para dar um tapa na cara do espectador que não imaginou aquele desenlace. Para completar, a última cena permite múltiplas interpretações. O olhar diretamente para a câmera feito pela personagem interpretada por Laia Costa indica muito de sua personalidade, até então camuflada diante da overdose de intrigas dos homens da família do marido.
O único ponto que pode incomodar um pouco a plateia é o ritmo lento do filme em alguns momentos. Como a tensão muitas vezes é de ordem psicológica e não tanto factual, o espectador corre o risco de ficar com sono se não estiver totalmente envolvido com os acontecimentos da telona.
"Neve Negra" não é o melhor filme argentino em cartaz no momento. Para mim, "O Cidadão Ilustre" (El Ciudadano Ilustre: 2016) é insuperável neste quesito. A produção do jovem Martin Hodara também não é o melhor suspense em cartaz nos cinemas brasileiros. O norte-americano "Corra!" (Get Out: 2017), por exemplo, é muito superior. Porém, essas constatações não tiram os méritos desse lançamento. "Neve Negra" é um bom thriller e consegue cativar o público.
Em questão de suspense e de mistério ou pensando nos elementos narrativos e de cenário, o novo filme de Ricardo Darin é muito parecido ao seu conterrâneo "O Médico Alemão" (Wakolda: 2013), ao islandês "Ovelha Negra" (Hrútar: 2015) e aos norte-americanos "Pássaro Branco na Nevasca" (White Bird in a Blizzard: 2014) e "Os Oito Odiados" (The Hateful Eight: 2015). Quem gosta de thrillers psicológicos, intrigantes e surpreendentes irá gostar desse filme. Vale a pena dar uma passadinha no cinema para conferi-lo.
Veja o trailer de "Neve Negra":
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