"Memórias Póstumas de Brás Cubas" (Martin Claret) é a principal obra de Machado de Assis. Publicado inicialmente em folhetins pelos jornais em 1880, o romance se transformou em um livro já no ano seguinte. Sua importância histórica está no fato de ter representado a introdução do Realismo no Brasil. O valor literário, por sua vez, está nas várias inovações formais, estilísticas e temáticas promovidas por Machado.
O jornal Folha de São Paulo classificou "Memórias Póstumas de Brás Cubas" como sendo o terceiro principal romance brasileiro da nossa história. A maioria dos acadêmicos e dos críticos literários, contudo, o coloca na primeira posição. A revista Bravo, em 2008, apontou o romance machadiano de 1881 como pertencente à lista das 100 obras essenciais da literatura mundial, posicionando-o na quinquagésima nona posição entre os clássicos (é o único livro brasileiro neste grupo).
A história de "Memórias Póstumas" é sobre Brás Cubas, um burguês do século XIX que passou a vida inteira sem realizar qualquer grande feito que merecesse um elogio. Ele jamais trabalhou, consumindo a herança paterna em uma vida fútil, não se casou e não teve filhos. Estes pontos, por sinal, são citados com orgulho pela personagem principal. Brás Cubas conta, em primeira pessoa, sua trajetória depois de morto. Por isso, trata-se de um livro de memórias. O romance inicia-se com o protagonista descrevendo seu enterro e comentando sobre as poucos pessoas que foram se despedir dele.
Em seguida, a história volta para quando a personagem era uma criança. A partir daí, ele narra sua vida em ordem cronológica, em tom de retrospectiva. Brás conta as travessuras de sua infância mimada, o primeiro amor, a viagem para Portugal para fazer faculdade e sua volta ao Rio de Janeiro depois de formado. Outra vez no Brasil, vê o falecimento da mãe, tenta um noivado de conveniência com Virgínia (filha de um figurão do Segundo Reinado), ambiciona se tornar político e vê seus sonhos se frustrarem com o casamento de Virgínia com Lobo Neves, que ficou também com sua vaga na política.
Com a morte do pai, têm início as brigas com a irmã Sabrina pela fortuna da família, o caso extraconjugal com Virgínia e as conversar filosóficas com o amigo Quincas Borbas. A chegada da velhice motiva Brás a uma nova tentativa de casamento com a jovem Elália, impedida pela morte precoce da moça por febre amarela. Antes de sua morte, o protagonista ainda tenta inventar, sem sucesso, um emplastro que curaria todas as doenças do mundo. Ironicamente, ele morre antes de conseguir tal feito.
"Memórias Póstumas" marca uma significativa mudança estilística de Machado de Assis. Ele abandona definitivamente a narração linear e objetiva e a visão de mundo romântica que marcaram seus primeiros romances. O escritor carioca passa a produzir uma narrativa entrecortada e subjetiva, com forte cunho psicológico, típicas do movimento realista. Sua visão de mundo é mais pragmática, abordando a sociedade da época e suas personagens com pessimismo e indiferença.
Como elemento extra, há altas doses de ironia. Machado de Assis mostra todo o seu talento literário ao destilar um doce veneno em suas palavras. A ironia está presente do início ao fim do romance. A abertura de "Memórias Póstumas" é brilhante. Brás Cubas dedicou sua obra "ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver". Ainda na parte inicial, declarou sobre uma das pessoas que foram ao seu enterro: "Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei". Quando precisa explicar o quanto sua primeira namorada o amou, o narrador foi taxativo: "Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis". O que dizer, então, da última frase do livro, que conclui o pensamento do protagonista: "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria".
Além da visão negativa da vida, como a última frase do romance explicita bem, "Memórias Póstumas" traz como protagonista o primeiro anti-herói brasileiro. Brás Cubas é o típico burguês fútil, interesseiro e nada bondoso. Ele cria lanços pessoais unicamente por interesses financeiros e sociais. Até mesmo a paixão por Virgínia não é algo que vem do seu coração. Trata-se de uma aventura extraconjugal que o diverte e o entretém, fazendo o tempo passar de maneira mais agradável.
Curiosamente, Brás Cubas não é exceção na sociedade fluminense da segunda metade do século XIX. A sociedade como um todo está corrompida e vive de aparências. Esta é a conclusão que chegamos ao ler o romance realista de Machado. Dois personagens mostram isso de maneira bem nítida.
A primeira é Dona Plácida, uma senhora religiosa que tinha grande consideração por Virgínia. Ela fazia tudo que julgava certo, seguindo os preceitos da sua religião e da ética burguesa. Por isso, foi inicialmente contra a traição de Virgínia com Brás Cubas. Aquilo não estava certo, pensava a senhora. Porém, quando os amantes passaram a dar dinheiro e uma casa confortável para Dona Plácida em troca do seu silêncio, ela aceitou naturamente o romance dos dois. Ou seja, o dinheiro é capaz de comprar até a ética das pessoas.
O segundo personagem é Prudêncio, o filho de um escravo da família Cubas. O rapaz sofreu todo tipo de violência e humilhação na infância. Brás usava o moleque como seu brinquedo pessoal, tratando-o como um mero objeto. Quando adulto, Prudêncio conseguiu sua alforria. O que ele fez, então? Comprou um escravo e se tornou ainda mais tirano e violento do que Brás foi com ele. Em praça pública, Prudêncio batia e humilhava seu escravo.
Outro aspecto que precisa ser destacado nesta obra e que marca o novo estilo concebido por Machado de Assis é a conversa aberta entre narrador e leitor. O tempo inteiro, o protagonista (que narra sua vida em primeira pessoa) dirige-se diretamente a pessoa que lê o romance como se ambos estivessem conversando. Este recurso permite uma maior intimidade entre os dois lados, além de representar a possibilidade de mais divagações e reflexões por parte de Brás Cubas. Assim, a narrativa torna-se entrecortada, misturando fatos narrados e a exposição de pensamentos da personagem principal.
Estas conversas insistentes entre narrador e leitor também têm o efeito de transformar a narrativa em um texto metalinguístico. Ironicamente, Machado de Assis passa a comentar e criticar a postura de quem escreve e de quem lê o romance. Não são raras às vezes em que autor e leitor são elogiados ou criticados por suas posturas no processo de produção-leitura da obra.
A influência de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" se estende até os dias atuais. Não é errado afirmar que autores contemporâneos utilizam até hoje os recursos literários e estilísticos desenvolvidos por Machado de Assis no século XIX. Os escritores modernistas e do Realismo Fantástico sul-americano, de certa maneira, também se valeram das ousadias narrativas e da complexidade psicológica das tramas machadianas. Vale lembrar que quem conta a história é um personagem que já morreu. Além disso, no meio da trama há cenas como o sonho em que Brás Cubas, montado em um hipopótamo, se encontra com Pandora, a representante da natureza.
A história de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" foi, ao longo dos anos, encenada nos palcos de teatros do Brasil e, em 2001, virou filme. Dirigido por André Klotzel (dos premiados "Reflexões de um Liquidificador" de 2010 e "A Marvada Carne" de 1985) e com Reginaldo Faria como Brás Cubas, o longa-metragem recebeu cinco Kikitos de Ouro no Festival de Gramado em 2002, sendo eleito pelo júri como o melhor filme daquele ano. .
Este é realmente um livro espetacular. Além de sentirmos prazer pela leitura em si, acabamos sendo tragados pela magia desta história que combina ironia ácida com um pessimismo assustador. E olha que quem está dizendo isso é um leitor que leu esta obra por onze vezes em sua vida e, mesmo assim, poderia recomeçá-la outra vez agora mesmo.
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