Nesta semana, reli um livro espetacular de Erico Veríssimo: "Um Certo Capitão Rodrigo" (Companhia das Letras). Esta história integra a série "O Tempo e o Vento", obra-prima do autor gaúcho e, de maneira mais geral, do Modernismo brasileiro.
Erico (pai de Luis Fernando Veríssimo, excelente cronista, contista e comediante contemporâneo) lançou, entre 1949 e 1961, sete livros que narram a saga do povo do Rio Grande do Sul. "O Continente - volume 1", "O Continente - volume 2", "O Retrato - volume 1", "O Retrato - volume 2", "O Arquipélago - volume 1", "O Arquipélago - volume 2" e "O Arquipélago - volume 3" formam a série completa. Apesar de estar fragmentado em vários livros, "O Tempo e o Vento" é considerado uma trilogia por ser constituído de três partes distintas: "O Continente", "O Retrato" e "O Arquipélago".
Estes livros retratam a ocupação e as disputas pela terra na região Sul do país durante os séculos XVIII, XIX e XX. O foco narrativo é a vida dos integrantes de diferentes gerações de duas famílias, os Terra e os Cambará. Como cenário, temos os acontecimentos políticos, as guerras e os dramas sociais dos gaúchos entre o período mais conturbado da colonização portuguesa e espanhola e o final do Estado Novo.
A trama de "Um Certo Capitão Rodrigo" foi extraída de um dos sete capítulos do "O Continente", a primeira parte da saga. Este é o trecho mais famoso e importante de "O Tempo e o Vento". Como os capítulos de "O Continente" (assim como ocorre com as duas outras partes da trilogia de Veríssimo) podem ser lidos separadamente, as editoras brasileiras resolveram transformar "Um Certo Capitão Rodrigo" em um livro independente. A decisão foi acertada. Afinal, depois de degustar as 184 páginas desta publicação, o leitor fica com vontade de ler a série completa. Foi o que aconteceu comigo há cerca de seis anos. "Um Certo Capitão Rodrigo" é, portanto, a isca perfeita para mergulharmos na grande obra de Veríssimo.
Este livro/capítulo começa com a chegada do Capitão Rodrigo Cambará ao fictício povoado de Santa Fé, no interior gaúcho. É o ano de 1828. O combatente, depois de mais de uma década de ininterruptas guerras contra os espanhóis pelas fronteiras do país, resolve se fixar naquela pacata localidade. Ele rapidamente gosta do lugar e manifesta sua intenção de morar ali para sempre. Contudo, os moradores de Santa Fé não gostam nada daquela decisão de Rodrigo. O forasteiro é visto como um vadio, boêmio, encrenqueiro, mulherengo e uma pessoa que não se importa em passar o dia todo jogando cartas e bebendo. Para os habitantes do povoado, aquele é um lugar de gente de família e trabalhadora. A crença geral é que a presença do capitão só trará aborrecimentos e problemas a todos.
Apesar dos protestos e das ameaças, Rodrigo Cambará aluga um quarto e fica morando em Santa Fé. Logo de cara, ele se apaixona por uma moça de uma família simples do povoado, Bibiana Terra. Pela primeira vez na vida, o capitão pensa em casamento. Além da oposição dos pais da jovem, Rodrigo precisará encarar a fúria do Coronel Ricardo Amaral Neto, rico proprietário da região. O mandachuva do lugar tem um filho, Bento, que também é apaixonado por Bibiana. O interesse do forasteiro pela moça desperta o ódio em Bento. A disputa pela mão de Bibiana levará seus pretendentes a um duelo armado. O combinado é que o vencedor da disputa, feita exclusivamente com armas brancas, poderá se casar com Bibiana Terra. O destino do perdedor, por outro lado, deverá ser uma estadia eterna a sete metros embaixo do solo.
O que torna "Um Certo Capitão Rodrigo" tão cativante é a combinação de personagens carismáticos e contraditórios, cenas memoráveis, uma excelente ambientação do período histórico e uma trama recheada de momentos distintos e impactantes.
Neste livro/capítulo, não é apenas o Capitão Cambará que possui uma personalidade forte e controversa. Todos os principais envolvidos nesta história são retratados de maneira intensa e polêmica. Se Rodrigo possui vários defeitos aos olhos dos moradores de Santa Fé, ele também possui muitas qualidades, ganhando a confiança e o respeito de todos (inclusive do padre). O mesmo ocorre com Bibiana Terra. A moça é, ao mesmo tempo, convicta de suas decisões e de seu papel como mulher, mas também é conformada com seu destino e com a situação da sua vida e do seu casamento. De certa forma, ela não faz nada para mudar sua realidade. Todos os personagens são, assim, contraditórios. O pai de Bibiana, Pedro Terra, é um homem honesto, sério e trabalhador, porém triste, introspectivo e resoluto (é o oposto de Rodrigo). O Coronel Ricardo Amaral Neto é desonesto, violento e ambicioso, porém é cumpridor da sua palavra.
A cena inicial de "Um Certo Capitão Rodrigo" é maravilhosa (e por que não perfeita!). O encontro entre o recém-chegado capitão e Juvenal Terra, irmão de Bibiana, no bar em Santa Fé é um daqueles momentos sublimes da literatura. Em poucas palavras, Erico Veríssimo consegue construir um retrato dos personagens e do cenário no qual sua trama será ambientada. Os diálogos também são incríveis. É impossível parar a leitura no meio desta cena. Outro instante marcante do livro/capítulo é o duelo entre o forasteiro e Bento Amaral pelo coração (ou seria pela mão?) de Bibiana Terra. Ali estão todos os elementos de uma narrativa memorável: humor, emoção, surpresa, reviravolta, ação e drama. Não estranhe se você, leitor, perder o fôlego durante a leitura desta parte. Outra cena sublime (e emocionante) é quando Rodrigo, consumido pelo vício da bebida e do jogo, tarda em visitar a filha doente em casa.
A ambientação do período histórico (estamos na primeira metade do século XIX, quando o Brasil acabou de passar pelo processo de independência de Portugal) se dá pelos contos de guerra que Rodrigo Cambará narra aos seus amigos e pelas agitações políticas que a cidade de Santa Fé passa. Ler qualquer parte de "O Tempo e O Vento" é mergulhar na história do Brasil e, principalmente, do Rio Grande do Sul. Quem gosta de conhecer os grandes acontecimentos do passado ficará hipnotizado com os detalhes históricos transmitidos aqui por Erico Veríssimo. O tempo inteiro, ele altera o foco da trama entre o microcosmo (vida particular dos personagens) e o macrocosmo (situação geral do país, da província e do povoado que afeta a todos). O mesmo expediente, por exemplo, foi utilizado, depois, por Jorge Amado em "Gabriela, Cravo e Canela" (Companhia das Letras). A diferença é que o panorama político-social da obra do baiano era a região sul do seu estado natal.
Outro componente importante de "Um Certo Capitão Rodrigo" é a coleção de situações diferentes vividas pelo protagonista durante a narrativa. Apesar de esta história ser curta (é possível lê-la em um dia), ela possui momentos dramáticos bem distintos. A trama pode ser dividida em quatro partes. A primeira é constituída pela chegada de Rodrigo a Santa Fé. Neste instante, ele se apaixona por Bibiana Terra e enfrenta Bento Amaral em uma sangrenta disputa pelo privilégio de se casar com a moça. A segunda parte é a mais breve de todas: o casamento de Rodrigo e Bibiana e a lua de mel da dupla. As poucas páginas dedicadas a esta seção têm uma explicação lógica. Qual é a graça da felicidade das personagens principais, hein? Neste sentido, Veríssimo se assemelha a Tolstói. No terceiro momento, vemos a tristeza e a depressão do Capitão Cambará com a vida monótona em Santa Fé. E para terminar, na quarta e última parte, temos o renascimento do velho Rodrigo, quando ele parte animado para uma nova guerra que estourou na província. Estas mudanças de situação tornam a narrativa mais intensa, divertida e com um ritmo muito acelerado.
"Um Certo Capitão Rodrigo" é daquele tipo de livro que é difícil encontrar um defeito ou algo para se criticar. Juro que não encontrei nenhum elemento que não fosse sublime. Nem podemos reclamar do fato de querermos mais quando chegamos à última página. Afinal, esta é apenas uma parte de uma longa série. Há muito mais história sobre os Terra e os Cambará para lermos.
Erico Veríssimo é um dos grandes escritores do modernismo brasileiro. "O Tempo e o Vento" é um dos melhores exemplares do que o Regionalismo nacional produziu nas primeiras décadas do século XX. Veríssimo está para a literatura gaúcha assim como João Guimarães Rosa está para a mineira, Graciliano Ramos e Raquel de Queiroz estão para a nordestina e Monteiro Lobato está para a do interior de São Paulo. Conhecer estes autores é se aprofundar na investigação sobre nossa própria identidade.
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