Gravada em 1947, essa dupla de canções do compositor gaúcho está entre os clássicos da música popular brasileira.
Lupicínio Rodrigues foi um dos mais prolíficos e talentosos compositores brasileiros da metade do século XX. Gaúcho de Porto Alegre, Lupe, como o músico era chamado desde a infância, compôs principalmente marchinhas de carnaval e sambas-canção. Ele também é o autor do hino do seu clube do coração, o Grêmio. Os famosos versos "Até a pé, nós iremos/ para o que der e vier/ Mas o certo é que nós estaremos/ com o Grêmio, onde o Grêmio estiver" têm como origem uma greve de ônibus na capital gaúcha na época da criação do hino.
Entretanto, a especialidade de Lupicínio eram canções melancólicas que contavam histórias frustradas de amor. A inspiração do cantor eram suas intermináveis desilusões amorosas: traições e abandonos das mulheres amadas eram uma constante em sua vida. O músico vivia tanto na fossa que foi ele quem criou o termo "dor de cotovelo", prática usada pelos homens de colocar esta parte do braço no balcão do bar para lamentar suas amarguras sentimentais. Em 1973, um ano antes de falecer, em uma entrevista para a revista Pasquim, ele disse: "Tive muitas namoradas na minha vida. Umas me fizeram bem, outras me fizeram mal. As que me fizeram mal foram as que mais dinheiro me deram, porque as me fizeram bem eu esqueci".
O repertório musical de Lupicínio Rodrigues tem aproximadamente 150 canções gravadas, além de outras 100 músicas à espera de aproveitamento. Deste conjunto enorme de belas composições, os destaques são "Vingança", "Nervos de Aço" e "Felicidade". O trio de obras-primas do gaúcho está entre as melhores da história da música brasileira. Apesar de "Vingança" ser apontada como a melhor, "Nervos de Aço" e "Felicidade" representaram um momento especial na vida do músico, pois foram gravadas ao mesmo tempo, em 1947. Ou seja, aquele ano foi um período dourado, musicalmente falando, para Lupicínio, apesar de ter representado muitos dissabores sentimentais. Há setenta anos, surgiam duas das mais importantes canções brasileiras de todos os tempos.
"Nervos de Aço", como não poderia ser diferente em se tratando de uma composição de Lupicínio, fala de uma das muitas dores de cotovelo do autor. Esta, contudo, foi a sua primeira grande desilusão amorosa. Iná foi a primeira namorada séria do jovem Lupicínio. A moça morava em Santa Maria, cidade onde o futuro músico servia como cabo do Exército. Os dois namoraram por cinco anos e chegaram a ficar noivos. Cansada de esperar que Lupicínio largasse a boemia e a pedisse em casamento, Iná decidiu terminar o relacionamento. Ela prometeu a Lupicínio, enquanto discutiam o rompimento, que iria se casar com o primeiro homem que visse, não se importando se fosse sofrer no futuro. Algum tempo depois, Lupicínio a encontrou em uma festa. Ela já estava casada.
Veja, a seguir, a letra da música e a ouça na voz de Francisco Alves, o mais famoso intérprete desta canção. Esta versão é a original de 1947:
Nervos de Aço (Lupicínio Rodrigues - 1947):
Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?
Ter loucura por uma mulher.
E depois encontrar esse amor, meu senhor,
Nos braços de outro qualquer.
Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?
E por ele quase morrer.
E depois encontrá-lo em um braço,
Que nem um pedaço do meu pode ser.
Há pessoas com nervos de aço,
Sem sangue nas veias e sem coração.
Mas não sei se passando o que eu passo
Talvez não lhes venha qualquer reação.
Eu não sei se o que trago no peito
É ciúme, é despeito, amizade ou horror.
Eu só sei é que quando a vejo
Me dá um desejo de morte ou de dor.
Francisco Alves, chamado de "Rei da Voz", gravou outras célebres criações de Lupicínio Rodrigues. "Esses Moços" e "Cadeira Vazia" foram grandes sucessos na década de 1950. Em 1973, Paulinho da Viola regravou "Nervos de Aço". Esta versão é diferente da de Francisco Alves, por ser mais intimista e passional, sendo mais parecida com a forma como Lupicínio a cantava. Repare, no vídeo abaixo, o depoimento inicial de Paulinho da Viola sobre o motivo de cantar esta canção de um jeito triste e melancólico.
Há doze anos, esta música voltou a ser lembrada pelos brasileiros. O motivo é um tanto pitoresco. Em 2005, Roberto Jefferson, um político corrupto da base partidária do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi pego com a mão na botija (ou seria no dinheiro?) em um vídeo que rodou o país. Mais tarde, ele seria denunciado na CPI dos Correios, escândalo que desencadeou o Mensalão. Por causa das acusações, Jefferson precisou ficar um período recluso em seu apartamento em Brasília. Enquanto a imprensa ficava no lado de fora da residência esperando uma declaração do político, ele cantava "Nervos de Aço" para todos ouvirem. Seu desempenho musical era depois mostrado nos telejornais noturnos do país inteiro. Ao menos bom gosto musical, ele tinha. O sucesso de sua interpretação foi tão grande na época, que Jefferson foi convidado para cantar no programa do Jô Soares. E ele foi! Coisas de Brasil.
"Nervos de Aço" fala de um triângulo amoroso (não tem nada a ver com política, tá?). O homem apaixonado e abandonado possui sentimentos contraditórios pela antiga amada. Em um primeiro momento, ele se ressente pelo fim da relação e por vê-la nos braços de outro. Aparentemente, o término do relacionamento não havia sido superado por ele. Depois, no segundo momento, o eu lírico da canção lança-se em um sentimentalismo mais passional e contraditório. Ele não consegue explicar exatamente o que sente pela mulher: um misto de desprezo, raiva e, até, amor.
No mesmo ano de 1947, o grupo Quintandinha Serenaders, pouco lembrado hoje em dia, gravou "Felicidade". Apesar do título, a música possui o mesmo apelo melancólico e triste que marcou as obras de Lupicínio. Isso fica evidente desde os primeiros versos: "Felicidade foi-se embora/ E a saudade no meu peito ainda mora/ E é por isso que eu gosto lá de fora/ Porque sei que a falsidade não vigora".
A diferença desta música é que a tristeza é mais generalizada. Ela não é provocada apenas por uma única desilusão amorosa, mas por todos os aspectos provenientes do coração. Tudo é motivo para lamentação e dor quando o assunto é sentimento amoroso. Tudo! A impressão que se tem é que o próprio coração humano é fonte inesgotável de melancolia e tristeza para seu proprietário.
Veja, a seguir, a letra desta canção e confira também a interpretação do próprio Lupicínio. Note que, nesta versão, não se canta todos os versos da música (apenas a parte mais famosa). Além disso, é possível ver o quão difícil é cantar esta letra. Ela foi feita com saltos de uma oitava, exigindo grande atenção do cantor na hora de sua execução.
Felicidade (Lupicínio Rodrigues - 1947):
Felicidade foi-se embora
E a saudade no meu peito ainda mora
E é por isso que eu gosto lá de fora
Porque sei que a falsidade não vigora
Lá onde eu moro tem muita mulher bonita
Que usa vestido sem cinta e tem na boca um coração
Cá na cidade se vê tanta falsidade
Que a mulher faz tatuagem até mesmo na pensão
Felicidade foi-se embora
E a saudade no meu peito ainda mora
E é por isso que eu gosto lá de fora
Porque sei que a falsidade não vigora
A minha casa fica lá detrás do mundo
Mas eu vou num segundo quando começo a cantar
E o pensamento parece uma coisa à toa
Mas como é que a gente voa quando começa a pensar
Felicidade foi-se embora
E a saudade no meu peito ainda mora
E é por isso que eu gosto lá de fora
Porque sei que a falsidade não vigora
Na minha casa tem um cavalo tortilho
Que é irmão do que é filho daquele que o Juca tem
Quando eu agarro seus arreiros e o encilho
Sou pior que limpa-trilho e corro na frente do trem.
Felicidade foi-se embora
E a saudade no meu peito ainda mora
E é por isso que eu gosto lá de fora
Porque sei que a falsidade não vigora.
Depois de terem ficado muitos anos esquecidas, as músicas de Lupicínio Rodrigues voltaram a ser regravadas pelos cantores tropicalistas entre o final da década de 1960 e o início dos anos de 1970. Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa eram fãs assumidos do músico gaúcho. Paulinho da Viola também sempre externou sua admiração. Não foi à toa que todos estouraram nas rádios do país com as antigas criações de Lupe.
Para completar este interessante debate sobre Lupicínio Rodrigues, só faltou mesmo falarmos de "Vingança", sua maior obra musical. Como o assunto sobre esta música é rico e muito amplo, é melhor deixarmos a história desta canção para um futuro post. Afinal, vale a pena conversarmos à parte sobre "Vingança", esta incrível criação sobre traição e retaliação amorosa.
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