Hermann Hesse é o escritor alemão naturalizado suíço que conquistou o Prêmio Nobel de Literatura de 1946. As obras de Hesse marcaram sua geração. O principal livro de sua autoria foi "O Lobo da Estepe" (Best Seller), publicado em 1927 e considerado até hoje como um dos principais representantes da literatura alemã de todos os tempos. "Sidarta" (Best Seller), de 1922, "Narciso e Goldmund" (Best Seller), de 1930, e "O Jogo das Contas de Vidro" (Best Seller), de 1943, também são considerados obras-primas do germano-suíço.
No caminho até a sua maturidade artística, Hermann Hesse publicou, em 1919, "Demian" (Record). Este livro foi um divisor de águas na carreira do autor. A marcante obra é considerada o primeiro clássico de Hesse. O principal mérito de "Demian" está em quebrar o padrão da estrutura narrativa até então utilizado pelo escritor em suas novelas e em seus romances. Neste livro, temos um mergulho profundo no interior da mente do protagonista, a exposição aberta das emoções e dúvidas do narrador, um debate franco sobre religião e misticismo e a incorporação de elementos autobiográficos à trama. Estas inovações fizeram de Hermann Hesse o grande autor alemão da primeira metade do século XX.
"Demian" tem 196 páginas e é dividido em 8 capítulos. Neste romance, conhecemos o relato em primeira pessoa do jovem Emil Sinclair, o protagonista da história. Criado em um lar abastado, o garoto é cercado de amor, carinho e mimos pelos pais e pelas irmãs. A família também respeita os valores da religião católica, sendo referência moral na sua cidade. Apesar da vida aparentemente perfeita, Sinclair vive uma grande inquietação interna. Ele se identifica mais com os aspectos sombrios e repugnantes da vida humana do que com os elementos belos e morais propagados pelos pais. Esta propensão ao errado o angustia de tal maneira que ele se considera uma pessoa deslocada da sociedade. Este inconformismo surge na infância e se acentua na adolescência, períodos abrangidos pelo livro.
Para a personagem principal, o mundo é dividido em duas partes distintas: um é formado pela luz, pela claridade, pela limpeza, pelo amor e pela moralidade (sua casa é o principal exemplo desta imagem); o outro é constituído pela escuridão, pelo obscuro, pela sujeira, pela selvageria e pela amoralidade (as ruas da cidade no período da noite representam com propriedade este aspecto). De alguma forma, é o segundo mundo que o atraia de maneira sedutora.
Sinclair só conseguirá compreender os motivos dos seus sentimentos quando conhece Max Demian, um colega mais velho de escola. Diferente dos demais alunos do colégio, Demian mostra-se muito maduro e conhecedor dos segredos do mundo imaterial. Após salvar Sinclair das ameaças de um garoto mais velho, Max Demian se torna referência para o protagonista. É ele quem irá apresentar a Sinclair uma nova filosofia de vida e novos componentes religiosos. Segundo esta concepção, as duas principais mensagens que norteiam a vida humana no planeta são: (1) Quem quiser nascer tem que destruir o mundo ao seu redor; e (2) O verdadeiro Deus une, ao mesmo tempo, o bom e o ruim, o amor e o pecado e a alegria e a tristeza em um único corpo. Esta entidade superior é, na realidade, a união do Deus católico com o demônio cristão.
A filosofia do amigo faz sentido para Demian que passa a segui-la intuitivamente. Em plena adolescência, o protagonista percorre um caminho perigoso em busca da sua real identidade. Sem perceber, ele é atraído por um grupo religioso secreto que possui uma visão alternativa de mundo, da humanidade e de Deus.
Gostei muito de "Demian". É possível lê-lo em duas ou três noites. Foi o que fiz neste final de semana. Este livro é uma viagem em direção aos mais íntimos lugares da mente do personagem-narrador. Emil Sinclair escancara para o leitor suas dúvidas, suas angústias, seus medos e seus desejos mais pessoais, sem receio de parecer errado ou ridículo. Impossível não se simpatizar com ele, apesar dos tons sombrios que se passam em sua psique.
Esta obra reflete também a tendência de introduzir na ficção elementos da doutrina freudiana. Heisse sempre demonstrou sua admiração pelas ideias do psicanalista alemão que foi seu contemporâneo. Não é coincidência, portanto, o grande número de sonhos e o predomínio de um ambiente onírico durante toda a trama. Também não é por acaso a vontade do narrador em fazer sexo com a mãe do grande amigo (deixando claro, de algum modo, uma variação do Complexo de Édipo).
Um aspecto fundamental para se compreender este romance está no conhecimento da vida de Hermann Hesse. Este é talvez o livro mais autobiográfico do autor. Não é errado afirmarmos que Emil Sinclair representa o escritor na época da sua infância e juventude (assim como Harry Haller, de "O Lobo da Estepe", é ele na maturidade). As semelhanças entre autor e personagem são incontestáveis: os pais religiosos, a vida que seguia para a carreira no monastério e se desvirtuou completamente, a fixação pela imagem da mãe, o interesse genuíno pelo misticismo e pela espiritualidade, a aversão à guerra e o inconformismo pela uniformização da vida na sociedade católica.
"Demian" é uma mistura de Charles Dickens (no sentido de se aprofundar no universo infanto-juvenil), Paulo Coelho (na busca pela compreensão da religiosidade e do misticismo), Dan Browm (em retratar os mistérios de uma seita religiosa pouco conhecida) e Machado de Assis (debate aberto das neuras do narrador-personagem).
Os únicos pontos que podem incomodar um pouco os leitores mais novos (e mais ansiosos) são o ritmo cadenciado da narrativa e a preferência pela reflexão à narração dos fatos. O charme e o ambiente misterioso da trama, em minha opinião, se fazem exatamente por estes dois elementos. Contudo, admito, eles deixam o romance com um ritmo mais lento e introspectivo, algo que sei que desagrada boa parte dos leitores desejosos por ação, ação e ação o tempo inteiro.
Os leitores do Blog Bonas Histórias que são cinéfilos podem, ao ver o nome deste livro, lembrar-se da personagem principal do longa-metragem "A Profecia" (The Omen: 1976). Demian era o nome do filho do diabo, criado por Robert Thorn (interpretado por Gregory Peck) e pela esposa, Katherine Thorn (Lee Remick) como seu legítimo filho. Sim, a lembrança é válida. O menino Demian na produção cinematográfica foi assim chamado por causa do personagem homônimo do romance de Hermann Hesse. Trata-se, portanto, de uma referência direta à obra do germano-suíço.
Se você quiser se aprofundar nas obras de Hermann Hesse, este gênio do século XX, aconselho a leitura de "O Lobo da Estepe" na sequência de "Demian". De certa forma, estas histórias se complementam. Gosto de pensar que Harry Haller é Emil Sinclair em uma etapa de vida mais madura.
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