Qual o maior romance da língua portuguesa? Esta é uma boa questão para ser discutida. A epopeia "Os Lusíadas" de Luís Vaz de Camões é sempre apontada unanimemente como sendo a principal obra poética da nossa língua. Isso não tem discussão. A polêmica gira em torno das histórias em prosa. Qual seria o principal romance escrito em português?
A Universidade de Coimbra listou, há alguns anos, os dez melhores romances da língua portuguesa. Após longa pesquisa sobre o tema, os estudiosos foram categóricos em apontar "Amor de Perdição" de Camilo Castelo Branco como sendo o número um. Em seguida aparecem "Aparição" de Vergílio Ferreira (segundo colocado) e "Dom Casmurro" de Machado de Assis (em terceiro). Completam a lista: "O Delfim" de José Cardoso Pires (quarto), "Esteiros" de Soeiro Pereira Gomes (quinto), "Memorial do Convento" de José Saramago (sexto), "Os Maias" de Eça de Queiroz (sétimo), "A Sibila" de Agustina Besse-Luís (oitavo), "Sinais de Fogo" de Jorge de Sena (novo) e "Terra Sonâmbula" de Mia Couto (décimo colocado).
"Será que "Amor de Perdição" (Ática) é tão bom assim?", perguntei para mim mesmo no começo deste ano. Para tirar à prova, nada melhor do que reler esta obra. Foi o que fiz neste último final de semana. Aproveitei à tarde de domingo para mergulhar no romance ultrarromântico de Camilo Castelo Branco.
Esse livro foi lançado em 1861 e teve como inspiração fatos reais ocorridos com um tio do próprio autor, que fora preso por homicídio. O sucesso do romance foi imediato, alçando Castelo Branco ao posto de um dos mais populares autores da sua época e um dos principais escritores do Romantismo português.
A história de "Amor de Perdição" trata da paixão impossível de três jovens de Viseu, cidade lusitana que fica no centro do país ibérico. Simão Botelho, filho de Domingos Botelho, possui dezoito anos e é um rapaz arruaceiro e pouco adepto aos estudos. Ele se apaixonada por Teresa Albuquerque, filha de Tadeu Albuquerque, que também tem dezoito anos. A paixão entre eles causa repulsa nas duas famílias. Os Botelho e os Albuquerque são famílias que se odeiam. Os pais de Simão e Teresa não autorizam o relacionamento.
Para aplacar os sentimentos dos filhos, cada um dos pais toma medidas radicais para impedir aquele romance. Tadeu insiste que a filha se case com um primo dela, Baltasar Coutinho. Com a recusa da moça, Tadeu Albuquerque a manda para um convento da cidade. Domingos Botelho, por sua vez, envia seu filho para estudar em Coimbra. Simão se torna um dedicado estudante na universidade. Ele sonha em se formar e em dar uma vida confortável a sua amada. Os jovens enamorados trocam cartas apaixonadas e alimentam a esperança de um dia ficarem juntos.
Contudo, ao descobrir os planos do sogro de casar Teresa, Simão viaja clandestinamente para Viseu. Lá é auxiliado por um ferreiro amigo do seu pai, João da Cruz. João e sua filha são gratos a Domingos Botelho por sua postura benevolente no passado e não medem esforços para ajudar um integrante da sua família.
Mariana, filha de João da Cruz, tem vinte e seis anos e se apaixonada por Simão. Por não ser burguesa, a moça não se vê à altura (em termos sociais) de Simão e, assim, não tenta conquistá-lo (seu amor é apenas platônico). Ela aceita ser a serviçal do rapaz, partilhando a rotina com ele (ela se satisfaz em ficar junto do jovem). Ela o ama tanto que aceita sua condição "inferior" e, apesar de intimamente torcer contra a união de Simão e Teresa, o ajuda sempre que possível para realizar o sonho dele em viver com a amada.
A vida de todos sofre uma grande transformação quando Simão mata, em uma briga, Baltasar Coutinho, primo de Teresa. O assassinato provoca a prisão de Simão e o enclausuramento de Teresa se intensifica. Ela é mandada para um convento em Porto.
"Amor de Perdição" é um típico romance da segunda geração do Romantismo, chamada de Mal do Século ou Byroniana. Nela, temos a temática de amores impossíveis, a morte como solução para a desilusão amorosa, personagens ultrarromânticos e passionais (que sofrem desproporcionalmente pela ausência do amado ou da amada) e enredos trágicos. Aqui a passionalidade está sempre à flor da pele.
Quando analisada hoje, a trama parece pueril e exagerada. Três jovens preferem morrer por não poderem viver com quem amam. De certa forma, ou eles são imaturos ou são profundamente mimados. Contudo, é preciso entender o contexto social do século XIX para compreender este tipo de trama e de literatura.
A vida burguesa, principalmente as das mulheres, era de certa forma entediante. As damas não trabalhavam fora da residência e ficavam o dia inteiro em casa aguardando a chegado dos homens (maridos, filhos, irmãos). A rotina doméstica consumia muitas horas do dia. Apesar disso, não havia muito o que as mulheres pudessem fazer no lar. As ricas famílias burguesas tinha um exército de empregados (na Europa) e de escravos (no Brasil). Além disso, a sociedade da época era patriarcal (a voz de decisão e de comando era dos homens). Cabiam às mulheres obedecê-los (inclusive em questões de amor e de casamento).
Nesta época, o matrimônio era um importante recurso de mobilidade social e de conchavos políticos. Neste cenário, as mulheres encontraram na literatura e nos romances românticos formas de escaparem (escapismo) da realidade vigente. Os amores e as paixões impossíveis das personagens dos romances eram parte do sonho das mulheres burguesas (muitas não se casavam por amor e sim por imposição ou conveniência). A partir desta realidade, fazia todo o sentido escrever histórias ultrarromânticas que aflorassem os sentimentos das mulheres burguesas.
Ao ler a obra, lembrei muito das tragédias shakespearianas. Camilo Castelo Branco consegue produzir uma narrativa, ao mesmo tempo, passional e crítica. No meio da história, o autor comenta suas impressões sobre a trama e faz juízo de valor sobre os personagens envolvidos. Apesar de retardar um pouco o caminhar da história, esses comentários críticos engrandecem ainda mais a obra.
A composição das personagens é excelente. Há basicamente três núcleos dramáticos. A função desses três núcleos é mostrar as três pontas do triângulo amoroso formado por Simão, Teresa e Mariana. Cada núcleo representava uma das famílias envolvidas na trama de amor. O protagonista no núcleo dos Botelho era Simão, enquanto seu pai (Domingos) era o antagonista. O protagonista no núcleo dos Albuquerque é Teresa, enquanto seu pai, Tadeu, é o principal antagonista. Baltasar Coutinho, primo de Teresa e sobrinho de Tadeu, pode também ser considerado um antagonista por se opor a união entre Simão e Teresa. O protagonista do núcleo do João da Cruz é Mariana, filha de João. Ela procura (assim como seu pai) ajudar Simão, apesar de ser apaixonada por ele.
"Amor de Perdição" é um romance digno para figurar na lista da Universidade de Coimbra. Só permaneço em dúvida se a primeira posição é mesmo merecida ou se foi exagerada. Em minha opinião, "Dom Casmurro" e "Memórias Póstumas de Brás Cubas", ambos livros realistas de Machado de Assis, por exemplo, são muito superiores à criação literária de Castelo Branco. Apesar de manter meus questionamentos a este respeito, fiquei com a certeza de que "Amor de Perdição" é realmente uma das dez melhores narrativas portuguesas em prosa da história.
Gostou deste post e do conteúdo do Blog Bonas Histórias? Se você é fã de literatura, deixe seu comentário aqui. Para acessar as demais críticas, clique em Livros. E aproveite para curtir a página do Bonas Histórias no Facebook.