Não é raro as pessoas deixarem uma peça teatral comentando passionalmente suas impressões a respeito da história e suas interpretações em relação ao desfecho da produção vista. Geralmente, isso ocorre entre grupos de amigos, familiares e namorados. O que é inusitado é os integrantes da plateia, mesmo não se conhecendo, quererem dividir opiniões, formando grandes rodas de discussão. Acredite: isso é possível e aconteceu! Eu fui testemunha de tal fato quando deixei o teatro do Centro Cultural Banco do Brasil nesta segunda-feira.
O público da peça "Ovono" saiu tão maravilhado do teatro que muitos não se contiveram. O café em frente à sala se tornou o centro de um acalorado debate, que depois se estendeu para a recepção do espaço e para a van que faz o transporte do público até o estacionamento e até a estação de Metrô. Ninguém se importou com o detalhe insignificante, naquele momento, que muitos não se conheciam. De repente, todos se tornam amigos de infância. Afinal, haviam presenciados juntos uma das peças teatrais mais interessantes da atualidade.
"Ovono" é uma produção futurista que mistura recursos audiovisuais com a encenação tradicional no palco. O roteiro e a direção são de Ricardo Karman. Karman ficou conhecido na cena teatral de São Paulo na década de 1990 após produzir, em parceria com Otávio Donasci, "Viagem ao Centro da Terra", em 1992, e "A Grande Viagem de Merlim", em 1996. A direção de animação e vídeo ficou a cargo de Amir Admoni e a direção do projeto multimídia foi responsabilidade de Tito Sabatini. São seis os atores de "Ovono": Gustavo Vaz, Paula Arruda, Paula Spinelli, Fábio Herford, Bruno Ribeiro e Cesar Brasil. O sexteto se reveza na interpretação dos vários personagens. Além deles, há mais algumas atrizes que aparecem em encenações gravadas em vídeos.
Nesta trama, a Terra está prestes a ser destruída. Um gigantesco osso interplanetário, cem vezes maior do que o asteroide que dizimou os dinossauros há milhões de anos, está viajando pelo espaço e sua rota de colisão encontra justamente nosso planeta. Será o fim da humanidade. Para deter tal ameaça, a presidente do Brasil marca um encontro com as líderes de todos os países do mundo (sim, o planeta é governado exclusivamente por mulheres). A proposta da nossa representante é enviar um foguete tripulado até o osso. Lá, uma bomba atômica será ativada, danificando o famigerado objeto espacial e desviando-o da sua rota original. Assim, a humanidade ficará salva.
Para a missão não falhar, decide-se pela colocação no foguete do mais perfeito cérebro artificial já criado pelo homem. Acredite: esta é uma criação brasileira, fruto do trabalhado científico liderado pelos nossos militares. Chamada de Ovono, esta máquina superdotada é a última esperança de salvação da humanidade. Ela quem terá a responsabilidade de comandar a destruição do osso. Porém, a missão corre perigo quando o computador passa a pensar de maneira autônoma, criando sentimentos e elaborando suas próprias teorias a respeito da vida.
A peça "Ovono" proporciona uma experiência inimaginável para sua plateia. Na certa, esta produção é uma das melhores peças que já assisti e a mais inovadora em cartaz neste início de ano no circuito paulistano. A união entre os recursos multimídias e a encenação dos atores no palco proporciona um ambiente futurista maravilhoso. Impossível não se sentir no final do século XXI ou mesmo em pleno século XXII.
A sincronia dos elementos multimídias com os atores no palco é perfeita. Trata-se de uma avalanche de estímulos que despertam todos os sentidos dos expectadores. Em alguns momentos, tem-se a impressão que o computador que fica no meio do palco em uma gigantesca tela arredondada é mesmo um ator. Muito comovente.
Em conjunto com os recursos tecnológicos que enriquecem a trama, a peça tem uma excelente produção cenográfica. O palco é embalado por uma redoma que faz o papel de atmosfera da Terra. Assim, temos a impressão que as personagens estão mesmo em um planeta à parte e que são observadas externamente por extraterrestres (que no caso somos nós, a plateia).
Contudo, não pense que "Ovono" é daquelas produções cênicas muito modernas e tecnológicas e sem conteúdo. Não! O texto de Ricardo Karman é impecável. Ele produz um enredo riquíssimo pontuado com diálogos brilhantes. Seu texto é ao mesmo tempo ágil, crítico, bem-humorado e marcante.
As várias referências utilizadas para a criação desta história também são explicitadas. Inspirado nas tramas de ficção científica das décadas de 1960 e 1970, principalmente "2001 - Uma Odisséia no Espaço" (2001: A Space Odyssey: 1968) e "A Profecia" (The Omen: 1976), "Ovono" cita também elementos da Bíblia, do filme "Armageddon" (1998) e da revista do Pato Donald. Repare também em várias cenas em que se fazem alusões aos acontecimentos atuais: Impeachment da presidente, avanço da ala religiosa no congresso, paranoia contra o progresso científico e até mesmo o movimento Catraca-Livre.
Para compreender a ironia fina do texto é necessário fazer paralelos com a realidade atual do nosso país e, principalmente, de nossa sociedade pretensamente progressista. Um mundo governado apenas por mulheres é muito representativo. Países trabalhando na criação de crianças-bombas indica o grau de violência que atingimos. E colocar a catraca como símbolo do diabo é de uma perspicácia impar.
Para completar, a peça ainda conta com uma atuação primorosa dos atores. Gustavo Vaz rouba a cena e mostra toda sua competência cênica. Ele chega a estar perfeito na pele de Adão e do Bispo. Paula Spinelli e Fábio Herford também estão espetaculares em seus vários papéis.
Quem for assistir à peça, repare atentamente em seu desfecho. Ele é simplesmente espetacular! As opções escolhidas pelo diretor para marcar o fim de "Ovono" são todas acertadíssimas, por mais estranhas que possam parecer, em um primeiro momento, para a plateia. Na apresentação desta segunda-feira, o público ficou pelo menos cinco minutos aguardando, em vão, alguma explicação ou conclusão. Como elas não vieram, o auditório foi invadido com as perguntas do tipo: "Acabou?", "Já podemos ir embora?" e "Os atores não vão voltar ao palco para agradecer?".
"Ovono" é uma produção que mexe com todos os estímulos dos expectadores. Há muito tempo não via uma peça tão marcante. Sua apresentação inusitada, seu texto ágil, seu tom crítico e seu ritmo amalucado (os atores saem várias vezes do palco e transitam pela plateia) irão agradar quem estiver disposto a ver novidades. É também importante possuir alguma bagagem cultural para entender as referências feitas a todo instante.
Quem for ao Centro Cultural Banco do Brasil com a expectativa de assistir a uma peça de teatro convencional poderá sair frustrado. Talvez tenha sido isso o que aconteceu com alguns expectadores na minha sessão. Uma grande quantidade de pessoas, a maioria senhores e senhoras de mais idade, preferiu deixar o teatro antes da metade. Juro que pensei: "Aonde esta gente vai? A peça está ótima!". A única explicação que encontrei é que ou eles não entenderam a pegada moderna do roteiro ou só foram lá para ver a cena inicial em que Paula Spinelli, interpretando a Eva Bíblica, fica totalmente nua em cena. Por mais gata que seja Paula Spinelli (e ela é mesmo!) e por mais excitante que seja vê-la nua (e é!), a peça é tão boa que vale a pena ficar até o final (verdade!). Esta hipótese surgiu depois que vi dois senhores (que aparentemente não se conheciam e foram sozinhos ao teatro) se sentarem na primeira fila bem enfrente aonde a atriz atuou sem roupa. Misteriosamente, eles deixaram a plateia após o término da cena inicial. Pelo visto, foram embora satisfeitos...
"Ovono" ficou em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil durante boa parte do ano passado. Devido ao seu sucesso, os organizadores resolveram estendê-lo para 2017. Entretanto, esta nova temporada irá apenas até o final de janeiro. Por isso, se você quiser ver esta peça magnífica, corra! Você tem só até o dia 30 de janeiro.
As apresentações ocorrem aos sábados (às 20h), domingos (às 19h) e segundas-feiras (às 20h). O valor do ingresso é de R$ 20,00. Como o Centro Cultural Banco do Brasil fica no centro velho de São Paulo (Rua Álvares Penteado, 112), um local um tanto sombrio para se trafegar à noite, sugiro utilizar ao final do espetáculo o serviço de van que o centro cultural disponibiliza. O veículo leva os expectadores gratuitamente até o estacionamento ou até o metrô República. É mais seguro.
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