Um dos meus autores preferidos é o moçambicano Mia Couto. Ele navega maravilhosamente bem pelo romance, conto, poesia, crônica, novela e até pela literatura infantil. Vamos admitir que não é normal um escritor ser bom em gêneros tão distintos. Já tinha lido cinco de suas obras: "Raiz de Orvalho e Outros Poemas" (Caminho), "O Fio das Missangas" (Companhia das Letras), "Terra Sonâmbula" (Companhia das Letras), "O Gato e o Escuro" (Companhia das Letrinhas) e "E Se Obama Fosse Africano?" (Companhia das Letras). As análises dessas obras, assim como a do autor, estão no Desafio Literário de abril de 2015.
Nesta semana, li "A Varanda do Frangipani" (Companhia das Letras). Este é o segundo romance publicado pelo autor. Ele foi publicado pela primeira vez em 1996, quatro anos após a edição do grande sucesso do autor, "Terra Sonâmbula".
A história de "A Varanda do Frangipani" se passa 20 anos após a Independência de Moçambique, ocorrida em 1992, e é protagonizada pelo falecido carpinteiro Ermelindo Mucanga (que na história é um fantasma) e pelo policial Izidine Naíta. O local desta trama é o asilo São Nicolau, que fica situado em uma antiga fortaleza colonial. Frangipani é a árvore que fica na varanda do casarão que abriga os idosos e onde está enterrado o antigo carpinteiro (daí o nome do livro).
Mucanga abre a narrativa explicando que é um fantasma que não conseguiu "dormir eternamente". Como ele não foi enterrado corretamente, acabou vagando no limbo entre o mundo dos vivos e dos mortos. Agora, contudo, as coisas parecem piorar para ele. Seu "descanso" no além-vida está prestes a ser interrompido por causa do governo independente de Moçambique, que deseja torná-lo herói nacional.
Para "morrer definitivamente", seu amigo pangolim (um tipo de tamanduá africano que teria a propriedade de frequentar ao mesmo tempo o mundo dos vivos e dos mortos) o aconselha a "morrer novamente". Para isso, ele deveria visitar o corpo de um homem que estivesse prestes a falecer. Assim, Mucanga poderia "descansar em paz" quando o corpo visitado morresse (e fosse devidamente enterrado). O corpo escolhido é de um investigador de polícia chamado Izidine Naíta. O policial visita o asilo São Nicolau, onde Mucanga está enterrado, para investigar o assassinato do diretor do asilo, Vastos Excelêncio.
Uma vez partilhando o corpo do policial, Ermelindo Mucanga volta a sentir o prazer em viver e começa a torcer pelo seu "hospedeiro". Ele se envolve com os moradores do asilo e fica intrigado com o mistério sobre a morte do diretor do lugar. Afinal, durante a investigação quase todos os personagens afirmam ser os responsáveis pela morte de Vastos Excelêncio. As únicas que não se autoacusaram foram a enfermeira Marta e a esposa do diretor, Ernestina. Todos os idosos se declaram assassinos. Navaia Caetano afirmou ter matado Vasto Excelêncio por este ter difamado um ritual religioso. Domingos Mourão, por sua vez, matou por ciúmes (estava apaixonado pela esposa de Vastos). Nhonhoso afirmou tê-lo assassinado para proteger sua amada, Marta, que fora violentada pelo diretor. E, por fim, Nãozinha disse que Excelêncio morreu após fazer sexo com ela (ela estava envolta em uma magia que provocaria a morte do primeiro homem que praticasse sexo com ela). Será que é possível todos terem matado o homem?!
"A Varanda do Frangipani" é um romance saborosíssimo, típico do autor africano. Ele é super-rápido de se ler, pois é bem pequeno (possui pouco mais de 100 páginas). Nele, é possível ver o que há de melhor na literatura de Mia Couto: narrativa com oralidade acentuada, a apresentação da cultura moçambicana, o lirismo da prosa coutiana, a escrita em tom poético e a explicação da história do seu país. Ler Mia Couto é viajar para Moçambique e conversar com seu povo.
A criação de neologismos, uma marca de Couto, aparece com vigor neste romance. Logo no início temos o termo "remorrer". Esta palavra criada pelo autor serve para designar a volta à vida do fantasma do carpinteiro Ermelindo Mucanga. Morrer é passar do mundo dos vivos para o dos mortos. "Remorrer", portanto, seria vir do mundo dos mortos para o dos vivos.
Outro aspecto forte neste livro é a narrativa fantástica. Mia Couto declara em seu livro de crônicas "E Se Obama Fosse Africano?" que sua geração de escritores africanos sofreu uma grande influencia do realismo fantástico sul-americano. Este movimento que marcou a literatura do nosso continente a partir da segunda metade do século XX (com Gabriel Garcia Marques, Manuel Scorza, Julio Cortázar, Jorge Luís Borges, Murilo Rubião, entre outros) misturava o mundo real com o imaginário e mágico. Os dois mundos conviviam corriqueiramente no cotidiano das populações locais. Em "E Se Obama Fosse Africano?", Couto afirma que se inspirou muito em Guimarães Rosa. Para o moçambicano, o autor mineiro seria um predecessor do Realismo Fantástico Sul-Americano.
A mistura acentuada do mundo real com o imaginário/mágico está presente o tempo inteiro em "A Varanda do Frangipani". Para começo de conversa, é um tanto difícil imaginar um morto assumir o corpo de um vivo. Além disso, os espíritos da natureza (seja dos homens como dos demais elementos naturais) estão o tempo inteiro interagindo com a história. A cultura africana, fortemente aparada no transcendental, também está presente acentuadamente.
No final, o leitor é agraciado com um desfecho surpreendente. Na investigação policial comandada pelo policial Izidine Naíta, temos um assassino improvável. Quem disse que apenas Agatha Christie tinha a habilidade de envolver e enganar o leitor, hein?! "A Varanda do Frangipani" é um livro gostoso para se ler neste começo de ano. Recomendo!
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