Lima Barreto foi um autor ousado. Em 1911, lançou em folhetim uma história que criticava os políticos nacionais, os funcionários públicos federais, a sociedade burguesa da época, o espírito patriota dos brasileiros, os ideais republicanos, e, principalmente, o Brasil do final do século XIX e do início do século XX. "Triste Fim de Policarpo Quaresma" (Paulus) foi publicado em livro em 1915, mas seu enredo ainda é atualíssimo. Foi este romance da fase Pré-Modernista que li no último final de semana. Ao concluí-lo, senti que estava diante do retrato do Brasil e do Rio de Janeiro dos dias de hoje. Até mesmo as intrigas políticas e a divisão ideológica que racharam nosso país em 2016 estão ali descritas. Incrível!
"Triste Fim de Policarpo Quaresma" trata da vida de um homem apaixonadamente patriota. Policarpo Quaresma é provavelmente o protagonista literário que mais tenha amado o Brasil. Apelidada de Major (não tinha esta patente de fato, sendo um funcionário público convencional), a personagem vivia de enaltecer seu país e acreditava verdadeiramente que morava no melhor lugar no mundo. Em sua crença cega, nossos rios eram os maiores, nossas terras eram as mais produtivas, nosso povo o mais capacitado, nossa natureza a mais exuberante, nossas cidades as mais bonitas...
Esta visão ufanista trouxe muitos problemas a Quaresma. Ele era visto por todos como excêntrico e amalucado. Apreciador das coisas brasileiras, valorizava tudo aquilo que fosse genuinamente nacional e desprezava o que fosse estrangeiro. Por isso, passou a estudar o nosso folclore e a língua tupi-guarani (em sua visão, este era o idioma genuinamente brasileiro). Policarpo chegava a se comportar às vezes como os tupinambás, tribo indígena que habitava o Brasil no período Pré-colonial. Uma cena em que ele entra chorando na casa da afilhada é sensacional. A moça imaginava que o pior tenha acontecido para o padrinho derramar tantas lágrimas. Perguntado por que agia daquela maneira, o protagonista foi enfático: aquele gesto era sinal de alegria. Afinal, os tupinambás, ao reencontrarem pessoas queridas, choravam.
"Triste Fim de Policarpo Quaresma" é dividido em três partes. Na primeira, o protagonista morava no Rio de Janeiro e trabalhava como funcionário público. Nesta fase, vendo as vantagens e a importância de um estilo de vida genuinamente nacional, ele tentou fazer uma reforma cultural no país. Enviou um ofício para o presidente Floriano Peixoto apresentando sua proposta. Rapidamente, o patriotismo de Quaresma tornou-se alvo da zombaria de todos no Rio de Janeiro, sendo assunto nos jornais. Suas ideias e manias fizeram com que Policarpo fosse demitido do emprego e internado em uma clínica psiquiatra. Para a sociedade, ele estava louco.
A segunda fase do romance inicia-se quando Policarpo Quaresma sai do hospício e se muda para o interior do Rio de Janeiro. Uma vez morando na zona rural, ele dedica-se a provar que a solução do Brasil está na agricultura. Gastando todas suas energias e dinheiro, ele investe no sonho de tornar seu sítio um grande produtor de alimentos. Empolgado com esta ideia, envia para o Marechal Floriano Peixoto um artigo no qual propõe uma Reforma Agrícola no país. Obviamente é outra vez ignorado.
Na última fase da trama, Policarpo retorna para o Rio de Janeiro para defender o presidente de uma rebelião que acontecia na capital (Revolta da Armada). Patriota, ele não admitia que alguém impedisse que Floriano Peixoto fosse tirado do comando do Brasil. Além de defender o marechal, Quaresma apresentou ao presidente uma proposta de Reforma Política para melhorar as engrenagens do trabalho governamental. Não é preciso dizer o que aconteceu com suas ideias.
Um dos principais representantes do movimento Pré-Modernista, "Triste Fim de Policarpo Quaresma" é um livro muito interessante. Ele possui pontos que marcaram a literatura de Lima Barreto. O estilo da narrativa é informal e possui uma linguagem despojada. Frases e expressões usadas no dia a dia daquela época são incorporadas ao discurso. Trata-se de uma narrativa que mistura o coloquialismo da linguagem oral das ruas com o estilo dinâmico do jornalismo.
Além disso, o romance apresenta com clareza a realidade do país entre o final do século XIX e o começo do século XX. Ali estão o início da formação das favelas nos morros cariocas, as injustiças sociais, os preconceitos raciais de uma nação recém- abolicionista, as críticas aos valores burgueses e o princípio de um movimento feminista.
Os pontos altos do livro estão em sua forte ironia e na construção primorosa do seu protagonista. Há cenas e, principalmente, várias personagens em que Lima Barreto provoca a sociedade da época. A coleção de irônicas é vasta: um médico que só obtém prestígio ao escrever obviedades porque usa uma linguagem pomposa e de difícil compreensão; um importante general do exército que nunca foi a uma batalha; o almirante que nunca teve um navio; o presidente, símbolo maior do funcionalismo público, é preguiçoso e incompetente; e para completar, a afilhada de Policarpo, Olga, é uma mulher que não acredita no casamento e não se empolga com o seu matrimônio. É ou não é uma bofetada na cara da sociedade da época?!
Policarpo Quaresma é uma personagem carismática, caricata e engraçadíssima. Suas crenças e seus comportamentos divertem o leitor. Sua ingenuidade e sua visão irreal da vida o transformam em um Dom Quixote tupiniquim. Assim como o protagonista de Cervantes, Policarpo também possui o seu Sancho Pança (é o negro Anastácio). Impossível não rir com as ações e os pensamentos de Quaresma.
O ponto negativo do livro está em focar desnecessariamente em algumas personagens secundárias. Por mais irônicas e interessantes que elas sejam, há um excesso de linhas dedicadas aos aspectos menores de suas vidas. Ao invés de concentrar mais nas trapalhadas de Policarpo Quaresma, Lima Barreto acaba preferindo detalhar, por exemplo, as agonias da família Albernaz com sua filha Ismênia. Achei pobre e desnecessária esta parte.
Outro aspeto que incomoda um pouco a leitura é o excesso de descrições feitas pelo autor. As ações das personagens são sempre pontuadas com muitos detalhes do cenário e de componentes insignificantes da trama. De uma forma, esta característica se assemelha um pouco com os romances românticos em que se fala muito para dizer pouco.
Lima Barreto foi um autor engajado socialmente e politicamente ativo. Comunista, ele gostava de denunciar as injustiças sociais e criticar a sociedade burguesa. "Triste Fim de Policarpo Quaresma" é sua obra mais irônica e contundente. Ao lê-la, percebe-se que o Brasil não mudou muito nos últimos 100 anos. Os problemas parecem os mesmos e o comportamento das pessoas se repete infinitamente ao longo do tempo. Este é um livro para ler, pensar e, por que não, rir das nossas próprias desgraças.
Não é à toa que esta história seja ainda tão atual. Depois de um ano complicado politicamente como foi este de 2016 no Brasil, não poderia haver um livro mais apropriado para se ler em dezembro.
"Triste Fim de Policarpo Quaresma" foi transformado em filme em 1998, em uma versão totalmente diferente do romance original de Lima Barreto. Por exemplo, no longa-metragem, o protagonista tem um romance com sua afilhada e acaba sendo fuzilado no final. Estes pontos não existem no livro. Há seis anos, Antunes Filho também tomou a liberdade de fazer uma produção teatral com várias modificações. A peça era ótima e tinha Lee Thalor interpretando o personagem nacionalista.
Gostou deste post e do conteúdo do Blog Bonas Histórias? Se você é fã de literatura, deixe seu comentário aqui. Para acessar as demais críticas, clique em Livros. E aproveite para curtir a página do Bonas Histórias no Facebook.