Nesses dias que antecedem o Natal, estava em casa com vontade de ler algo diferente. Meu primeiro pensamento foi ir à livraria mais próxima e comprar uma novidade. Contudo, uma rápida olhadela pela janela envidraçada me fez mudar de planos. A forte chuva que caía lá fora me dizia para ficar em minha residência (confortavelmente e, principalmente, seco). A cidade de São Paulo no verão tem essa particularidade. Sem outra alternativa, rumei, como um alcoólatra atrás de um novo gole, para a estante do meu quarto em busca de algo que não tivesse lido. Não encontrei nenhuma publicação virgem aos meus olhos. Mesmo assim, um livro chamou minha atenção. De alguma forma, imaginei que ele gritasse pedindo um pouco de consideração da minha parte. Justo! Só quem é bibliófilo conseguirá me entender nesse momento esquisito (e, por que não, um tanto constrangedor).
“O Videogame do Rei” (Record), novela de Ricardo Silvestrin, é o título em questão. Eu o havia lido há quatro ou cinco anos e, curiosamente, agora não me recordava em nada do seu enredo. Vou logo avisando que isso não é comum. Por quê? A obra seria fraquinha (pouquíssimo marcante) ou eu que a tinha lido sem muita atenção?! Essas dúvidas atiçaram minha curiosidade. E em frações de segundos, eu atendi aos apelos insistentes da escandalosa (e carente) brochura. Enquanto o mundo desabava lá fora, eu estava esticado no sofá da sala com o livro de Silvestrin em mãos. Diferentemente do meu antigo hábito, decidi relê-lo. Por que não lhe dar uma segunda chance, hein?
Publicado em 2009, “O Videogame do Rei” é o décimo quarto livro da carreira de escritor de Ricardo Silvestrin. Seu portfólio literário é constituído essencialmente por antologias de poemas, coletâneas de contos e obras infantis. Jornalista gaúcho de 53 anos, Ricardo é colunista do jornal Zero Hora e apresentador do programa “Transmissão de Pensamento” na rádio Ipanema FM. Para completar, ele também é músico, integrando a banda os PoEts (espetacular este nome!).
Como escritor, Silvestrin conquistou três vezes o Prêmio Açorianos, concedido anualmente pela Prefeitura de Porto Alegre aos destaques no cenário cultural gaúcho. Nessas oportunidades, ele ganhou a honraria duas vezes como poeta - “Palavra Mágica” (Massao Ohno), em 1995, e "O Menos Vendido" (Nankin), em 2007 -, e uma vez como escritor infantil - “Pequenas Observações Sobre a Vida em Outros Planetas” (Projeto), em 1998. Em outras duas edições, Ricardo levou o Prêmio Açorianos como editor literário (em 2005) e destaque da mídia (em 2008). Nada mau, né?
As principais obras literárias de Silvestrin são, até agora, a coletânea de contos “Play” (Record) e o livro de poesia "O Menos Vendido". Ambos receberam muitos elogios da crítica e conquistaram importantes prêmios literários no cenário nacional. Por sua vez, “O Videogame do Rei” é a primeira (e, até este momento, única) investida do autor na narrativa mais longa. Alguns a classificam como romance. Eu a vejo mais como uma novela.
O enredo de “O Videogame do Rei” se passa em um futuro próximo em um país não identificado. Nesse lugar, a República foi substituída pela Monarquia há alguns anos. Para escolher o novo mandatário (Rei), o povo foi chamado às urnas. O eleito foi um simples professor de filosofia. Casado com uma socióloga, ele tinha uma visão humanista e plural do mundo. Foi isso o que fez os eleitores escolherem seu nome para governar a nação.
Contudo, uma vez no papel de monarca, o antigo professor passou a desenvolver tecnologias que priorizavam o extermínio dos inimigos nas guerras. Era o próprio Rei o encarregado de matar seus adversários por meio de um joystick aplicado ao trono e uma tela que mostrava o que acontecia fora do palácio. Além disso, o governante desenvolveu um sistema que concedia várias vidas para seus súditos. Ele fez isso para que pudesse, através do aperto de um botão, explodir aqueles que cometessem algum erro. Se a pessoa dinamitada tivesse mais vidas à sua disposição, ela regeneraria automaticamente. Caso contrário, morria definitivamente. Ou seja, a nação passou a ser governada como se fosse um grande videogame.
Contrária à nova realidade imposta aos cidadãos, a Rainha, que no passado fora uma atuante socióloga, passou a escrever um blog criticando o Rei e, principalmente, os homens por suas posturas bélicas. Mesmo amando muito o marido, ela mostrava-se indignada com as decisões do cônjuge no âmbito político. Em sua visão, um mundo mais feminista era a solução para os principais problemas da humanidade. O blog da Rainha era acompanhado pela maioria das mulheres do reino.
A vida no palácio real seguia normalmente até o dia em que a cabeça do Rei teve um curto-circuito. Ele ficou simplesmente paralisado (em um estado vegetativo). Sem saber o que fazer (se os médicos reiniciassem a mente do monarca, ele poderia voltar a viver normalmente, mas também havia a possibilidade de ele morrer), a Rainha convocou os principais cientistas do país. Ninguém era capaz de dar um parecer seguro sobre como resolver o problema da saúde do Rei.
Diante dessa indefinição, a Rainha foi obrigada a assumir o poder. A expectativa da nação era o que esta mulher faria ao assumir o trono. Ela, enfim, aplicaria seu ideal feminista e revolucionaria a nação?
Como é típico das novelas (elas são narrativas de tamanho mediano), “O Videogame do Rei” possui poucas páginas, 141, e apresenta uma leitura extremamente rápida. É possível concluir esta obra em pouco mais de três horas. Foi o tempo mais ou menos que gastei na última segunda-feira à tarde. Li o livro inteiro em uma batida só.
Este livro de Ricardo Silvestrin tem uma proposta interessante: debater a questão da violência humana por meio de uma ficção científica. Não é errado vermos esta obra como uma distopia. O autor enriquece esse debate ao inserir a compulsão (ou seria o hábito) dos jovens pela brincadeira do videogame. Para completar o caldo multitemático, há ainda uma forte discussão sobre as diferenças dos gêneros sexuais e a questão sobre os sistemas políticos. Espetacular (e corajosa) essa mistura de conceitos.
Outro ponto que merece elogio é o humor da trama. “O Videogame do Rei” possui um texto leve e bem-humorado. Sivestrin consegue criar uma realidade paralela que mexe com a curiosidade do leitor. Além disso, o cenário inusitado é o que move o conflito para um desfecho dramático.
Gostei também da construção das personagens. A história não gira em torno apenas do Rei e da Rainha. Há algumas personagens secundárias no seio do povo, que comentam os acontecimentos no palácio e dão a dimensão humana para as ações dos governantes.
Entretanto, uma coisa é a proposta literária do autor e outra, completamente diferente, é sua execução nas páginas do livro. Falo isso porque achei esta novela muito infantilizada. Sabe aquela obra com uma pretensão de soar inteligente e cult, mas que acaba parecendo literatura infanto-juvenil? Pois é mais ou menos assim que “O Videogame do Rei” me pareceu.
A maioria dos seus debates soa preconceituosa e pobre intelectualmente. Por mais que seu autor tenha almejado produzir uma narrativa de cunho filosófico e existencialista, ele acabou entregando um texto recheado de clichês e de pouca serventia. A própria discussão entre machismo e feminismo soa tola e reduzida às aparências imediatas. Sinceramente, não gostei nem um pouco desta novela. Comparado aos ótimos trabalhos de Ricardo Silvestrin na poesia, nos contos e na literatura infantil, “O Videogame do Rei” é uma de suas produções mais fracas. É uma pena!
Ao recolocar o livro na estante do meu quarto, um pensamento me atingiu como uma flecha. Será que daqui quatro ou cinco anos, eu me lembrarei desta novela? Duvido! Na certa, esquecerei desta trama em alguns meses. Isso prova o quanto ela deixa a desejar. Deve ter sido por causa disso que não recordava nada do que havia lido na primeira leitura. Se o livro fosse bom (e marcante), isso não teria acontecido.
Enquanto reflito sobre isso, olho pela janela e descubro que a chuva passou. São Pedro parece que resolveu tirar uma folguinha. Acho que agora já posso ir à livraria. O que irei encontrar de novidade por lá? Em um próximo post comento minhas descobertas. A gente se vê aqui no Bonas Histórias! Até mais!
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