O ano de 2016 não foi fácil para Chico Buarque. O músico carioca sofreu por causa da extrema polarização política que o Brasil passou durante o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. A mudança à direita do pensamento nacional levou muitos reacionários a condenarem todos àqueles que pensavam de maneira diferente. Ser de esquerda no país nos dias de hoje não é algo tão bem quisto como já foi.
Assim, nos últimos meses, muita gente deixou de falar das obras de Chico Buarque para tratar apenas de sua ideologia. Se há algumas décadas o compositor de olhos azuis era ídolo nacional por combater a ditadura militar com sua voz e suas letras, atualmente ele é visto por uma direita mais radical como inimigo do povo. Nada mais idiota! Não se pode rotular ninguém por sua crença ideológica nem menosprezar seu trabalho artístico por conta de sua convicção política. O respeito pela pluralidade de opiniões e o direito a expressão devem vir antes de qualquer coisa em uma democracia plena.
Ciente do seu papel e de sua imagem pública, Chico Buarque manteve uma postura corajosa e coerente à sua história. Diante das perseguições tão implacáveis da mídia, ele não mudou sua opinião, reafirmando sua convicção esquerdista. Este comportamento enfureceu ainda mais os reacionários, que elevaram o tom das críticas ao músico. Na Avenida Paulista, por exemplo, um banner gigante de Chico apareceu pichado nas vésperas da cassação de Dilma pelo Senado. Essa cena seria impensada há alguns anos.
Por isso, gostaria de tratar aqui do aniversário de 40 anos de duas obras-primas do compositor carioca. Infelizmente, este assunto ficou esquecido ao longo do complicado e do tumultuado ano de 2016. Em 1976, Chico Buarque compôs "O que Será", ao lado de Milton Nascimento, e "Olhos nos Olhos". As duas canções são apontadas como clássicos da nossa música. A revista Bravo elegeu-as, em 2008, como sendo, respectivamente, a septuagésima quinta e octogésima sétima melhores canções da nossa história.
"O que Será" é fruto da parceria musical entre Chico Buarque e Milton Nascimento. A letra polêmica deixou os profissionais dos órgãos de repressão e de censura da ditadura militar com os cabelos em pé. Eles não conseguiam identificar o teor da letra e o mistério por trás da pergunta que se repetia durante a canção.
"O que Será" foi criada especialmente para o filme "Dona Flor e Seus Dois Maridos", de Bruno Barreto. Para se adequar à narrativa do longa-metragem, ela foi desdobrada em três partes: "Abertura", "À Flor da Pele" e "À Flor da Terra". Cada uma destas partes pode ser executada de forma independente. Assim, elas não são apenas partes de uma grande música como também são versões distintas de uma mesma composição. No filme, a música é cantada por Simone, mas a versão mais celebrada é aquela interpretada pela dupla de compositores no álbum de Chico Buarque chamado "Meus Caros Amigos", de 1993.
O que dá charme a esta música é sua letra misteriosa. "O que será" é uma pergunta que permanece não respondida durante toda a canção. "O que será que será/ Que andam suspirando pelas alcovas/ Que andam sussurrando em versos e trovas/ Que andam combinando no breu das tocas/ Que anda na cabeça, anda nas bocas...". A interpretação mais lógica é que se trata do sexo. Contudo, na época da ditadura, os militares procuravam outras significações mais subversivas para o mistério.
Veja a letra de "À Flor da Terra", a parte da canção que ficou mais conhecida pelo público:
"O que Será - À Flor da Terra" (1976) - Chico Buarque e Milton Nascimento
O que será, que será?
Que andam suspirando pelas alcovas
Que andam sussurrando em versos e trovas
Que andam combinando no breu das tocas
Que anda nas cabeças, anda nas bocas
Que andam acendendo velas nos becos
Que estão falando alto pelos botecos
E gritam nos mercados que com certeza
Está na natureza
Será, que será?
O que não tem certeza nem nunca terá
O que não tem conserto nem nunca terá
O que não tem tamanho
O que será, que será?
Que vive nas ideias desses amantes
Que cantam os poetas mais delirantes
Que juram os profetas embriagados
Que está na romaria dos mutilados
Que está na fantasia dos infelizes
Que está no dia a dia das meretrizes
No plano dos bandidos, dos desvalidos
Em todos os sentidos
Será, que será?
O que não tem decência nem nunca terá
O que não tem censura nem nunca terá
O que não faz sentido
O que será, que será?
Que todos os avisos não vão evitar
Por que todos os risos vão desafiar
Por que todos os sinos irão repicar
Por que todos os hinos irão consagrar
E todos os meninos vão desembestar
E todos os destinos irão se encontrar
E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá
Olhando aquele inferno vai abençoar
O que não tem governo nem nunca terá
O que não tem vergonha nem nunca terá
O que não tem juízo
O que será, que será?
Que todos os avisos não vão evitar
Por que todos os risos vão desafiar
Por que todos os sinos irão repicar
Por que todos os hinos irão consagrar
E todos os meninos vão desembestar
E todos os destinos irão se encontrar
E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá
Olhando aquele inferno vai abençoar
O que não tem governo nem nunca terá
O que não tem vergonha nem nunca terá
O que não tem juízo
Ouça a interpretação de seus autores:
No mesmo ano de 1976, Chico Buarque produziu "Olhos nos Olhos". Esta é um das típicas produções buarquianas feitas com o eu lírico feminino. Nesta canção, uma mulher abandonada diz para o antigo amado não voltar, pois agora ela já está "refeita". A vontade de se mostrar feliz é tanta que coloca uma dúvida no ouvinte: ela está sendo sincera ou ainda ama o homem que a abandonou no passado. Esse efeito é produzido pela letra irônica e dúbia.
"Olhos nos Olhos" foi imortalizada na voz de Maria Bethânia. A baiana gravou a canção ainda em 1976 em seu álbum "Pássaro Proibido". O sucesso foi retumbante.
Veja a letra desta música:
"Olhos nos Olhos" (1976) - Chico Buarque
Quando você me deixou, meu bem
Me disse pra ser feliz e passar bem
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci
Mas depois, como era de costume, obedeci
Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer
Olhos nos olhos, quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais
E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mais nem porquê
E tantas águas rolaram
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você
Quando talvez precisar de mim
Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim
Olhos nos olhos, quero ver o que você diz
Quero ver como suporta me ver tão feliz
Ouça a interpretação de Maria Bethânia. O vídeo é da década de 1970:
Chico Buarque é um mito. Seu trabalho musical é brilhante, sendo comparável, em minha opinião, apenas ao de Tom Jobim. Por isso, vamos deixá-lo ter suas crenças políticas e aproveitar suas composições. Se você não gostar de visão política de Buarque, apenas não ouça suas opiniões nesta área. Porém, não deixe de ouvir suas músicas. Simples assim!
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