A obra mais famosa de Italo Calvino é "Cidades Invisíveis" (Companhia das Letras), de 1972. Entretanto, o escritor italiano ficou internacionalmente conhecido muito antes da criação da clássica história entre Marco Polo e Kublai Khan. Na década de 1950, Calvino publicou três novelas que integram a trilogia "Nossos Antepassados". Fazem parte desta coletânea "O Visconde Partido ao Meio" (Companhia de Bolso) de 1952, "O Barão nas Árvores" (Companhia das Letras), de 1957 e "O Cavaleiro Inexistente" (Companhia das Letras) de 1959.
Essas novelas podem ser lidas independentemente uma das outras, pois possuem tramas distintas. Suas semelhanças e suas complementaridades estão na temática e na mensagem transmitida. Ao abordar personagens nobres do período medieval italiano (viscondes, barões e cavaleiros), o autor trata das fraquezas da alma humana e das injustiças sociais. Ao olhar para o passado, consegue-se descrever com propriedade as dificuldades atuais do homem moderno, um indivíduo alienado, dividido e incompleto.
Para conhecer mais desta incrível trilogia, li a primeira parte de "Nossos Antepassados" neste feriado de 15 de novembro. "O Visconde Partido ao Meio" é um livro enxuto. A edição de bolso que tenho em casa, de 2011, tem pouco mais de 100 páginas. Ou seja, dá para lê-la em uma única tarde. Foi o que fiz nesta terça-feira fria e chuvosa de São Paulo.
Nesta trama, conhecemos o Visconde Medardo di Terralba, membro de uma das mais nobres famílias da República de Gênova. Ainda muito jovem, ele é enviado ao oriente para combater os turcos na guerra religiosa travada pelos cristãos. Ao chegar ao campo de batalha, o Visconde di Terralba é nomeado tenente pelo imperador, encantado com a presença de um nobre italiano em suas forças. Já no dia seguinte, sem qualquer experiência bélica, Medardo é mandado para a linha de frente do conflito. No meio da carnificina humana, ele é ferido por um turco. Um tiro de canhão o corta verticalmente, arrancando-lhe metade do corpo.
Sem a parte esquerda, que fica atirada no campo de batalha, o visconde é tratado pelos médicos cristão e se salva milagrosamente. Ninguém entende como um homem pode sobreviver sem metade do corpo. Uma vez salvo, Medardo é enviado de volta para sua terra natal.
Ao chegar em Terralba, o visconde retoma o exercício do poder local. Agora ele se mostra maligno com seus súditos. Além de praticar maldades deliberadas com as pessoas, ele encontra prazer em maltratar animais, destruir a natureza e queimar construções. Medardo torna-se um sádico, insensível aos sentimentos humanos e à compaixão pelos outros.
Morando sozinho em seu castelo, o Visconde Medardo di Terralba decide, certo dia, se apaixonar. O alvo da investida do nobre é uma camponesa pura e simples chamada Pâmela. Temendo a crueldade daquele homem, Pâmela recusa o casamento. Entretanto, após a divulgação da decisão da moça, a população de Terralba começa a presenciar episódios de bondade e de generosidade do visconde. Ninguém entende o que está acontecendo com ele. Às vezes, o nobre se mostra muito bondoso e, em outros momentos, mantém a maldade que o caracterizou nos últimos tempos.
O narrador da história é um sobrinho bastardo de Medardo. Ainda criança, o jovem conta o que aconteceu em sua cidade com a volta do tio da guerra sangrenta. Tudo se passa a partir do seu ponto de vista, ainda infantil e puro.
"O Visconde Partido ao Meio" é uma novela ao mesmo tempo profunda e irônica. O bom humor está presente nas cenas fantásticas que Calvino retrata com leveza e astúcia. O campo de batalha é, por exemplo, um cenário extremamente cruel e sanguinolento. Apesar disso, ele é descrito com um humor escrachado que provoca sorrisos no leitor.
O conteúdo da narrativa nos leva a algumas boas reflexões. Por exemplo, o visconde não é a única personagem dividida e incompleta da história. Várias personagens da trama, apesar de fisicamente inteiras, são tão ou mais fragmentadas psicologicamente do que o protagonista. Neste sentido, destaque para o comportamento da mocinha. Pâmela é muitíssimo parecida ao homem que renega, mesmo tendo uma repulsão à figura dele.
Falar de bem e de mal é complexo e relativo. Como mostra esta novela, até mesmo aqueles que se propõem a ajudar e que fazem tudo corretamente podem, indiretamente, prejudicar os outros. Prova disso é o impacto negativo que as ações do visconde bonzinho provocaram na comunidade leprosa. Por outro lado, a maldade pode ser encarada como algo relativo e, por vezes, necessário. A vida na família huguenote escancara isso.
Um ponto interessante de "O Visconde Partido ao Meio" é sua linguagem simples e acessível. É possível ler sua história sem nenhuma dificuldade. A proposta do autor, muito provavelmente, é deixar o texto simples para que o leitor possa analisar a profundidade das palavras e dos conceitos debatidos na trama. Este é aquele livro que pode gerar horas e horas de discussão se for lido com atenção e houver alguém para debatê-lo.
Apesar de possuir um desenrolar e um desfecho previsíveis (no meio do livro é possível saber qual é a resposta para seu principal mistério e o que irá acontecer para solucionar a questão), "O Visconde Partido ao Meio" é uma ótima novela. Sua temática é universal e suas reflexões são atemporais. Em um mundo moderno em que o homem é cada vez mais fragmentado, incompleto e alienado, é legal ler uma alegoria fantástica que trata deste tema na Idade Média. Com sutileza, Italo Calvino aborda um problema atual com a sutileza de um gênio da literatura. A cada obra que leio deste autor, fico mais e mais impressionado com sua excelência. Este italiano é um monstro da literatura mundial!
O Desafio Literário de novembro continuará, no dia 21, com o post sobre “Palomar” (Companhia das Letras), o quarto livro de Italo Calvino que o Blog Bonas Histórias analisará neste mês. Não perca os próximos passos do estudo de um dos principais escritores italianos do século XX.
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