Pablo Neruda não foi apenas um dos melhores poetas da sua geração. Foi, talvez, o mais querido escritor do seu tempo. Idolatrado em seu país e reverenciado mundialmente, o chileno ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 1971. Este foi o autor analisado em julho no Desafio Literário do Blog Bonas Histórias.
Nascido na interiorana cidade de Parral, em 1904, como Neftalí Ricardo Reyes Basoalto, o tímido rapaz sempre gostou de escrever. Iniciou sua trajetória como poeta na adolescência. Já prevendo sua futura profissão, adotou o pseudônimo de Pablo Neruda em homenagem ao escritor checo Jan Neruda.
Formado em pedagogia e francês na Universidade do Chile, o Neruda chileno manteve carreiras paralelas de diplomata e de escritor ao longo de sua vida inteira. Como cônsul chileno, morou em vários lugares do mundo: países asiáticos, Argentina, México, Espanha e França, além de ter conhecido inúmeras outras nações (União Soviética, China, Brasil, Índia, etc.). A carreira diplomática se misturou com a atuação política. Filiado ao partido comunista, Pablo Neruda foi eleito Senador da República, se tornou pré-candidato a presidente do Chile e foi um dos principais apoiadores da eleição de Salvador Allende a presidência.
Essa história de vida é muito bem retratada no livro de memórias do autor: "Confesso que Vivi" (Difel). Publicado alguns meses após a morte do escritor (de câncer na próstata em setembro de 1973), a obra se tornou um sucesso imediato após seu lançamento. Na Espanha, por exemplo, "Confesso que Vivi" foi o segundo livro mais vendido no país no ano de 1975.
O livro é memórias é incrível. A primeira sensação que tive ao ler essa obra foi: "Uau! Que vida foi essa!". Pablo Neruda esteve sempre no lugar certo e no momento exato quando a história do século XX se escrevia. Ele se reuniu com Mahatma Gandhi nos primeiros encontros de Paz do líder indiano, esteve na Espanha quando Francisco Franco deu o golpe de estado e conheceu os japoneses que armaram o ataque a Pearl Harbor. Esteve na Rússia na época da formação do movimento literário "Formalismo Russo", atuou intensamente para a eleição do primeiro presidente comunista do Chile e esteve na França durante a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Além disso, foram seus amigos Pablo Picasso, Luiz Carlos Prestes, Jorge Amado, Frederico García Lorca, entre outros. Conheceu Josef Stalin, Anastásio Somoza García, Fidel Castro, Che Guevara e mais um tanto de políticos.
A impressão que tive é que Pablo Neruda foi um Forrest Gump do seu tempo. Você se recorda do protagonista do filme "Forrest Gump - O Contador de Histórias" (Forrest Gump: 1994)? Neruda esteve indiretamente ligado aos principais acontecimentos do século XX. Era como se ele estivesse sempre na antessala onde os principais episódios ocorreram. Isso é bem legal!
Outra coisa que me chamou a atenção foi a forma descompromissada que Neruda escreve em prosa. Sua história de vida é narrada de forma gostosa, intercalando episódios relevantes, memórias de situações inusitadas e uma interpretação poética da vida. É impossível largar o livro depois que se começou a ler. A impressão que tive é que o poeta estava conversando comigo durante as 350 páginas de "Confesso que Vivi".
A outra carreira de Pablo Neruda foi como poeta. Nesta, ele começou ainda na adolescência e desde jovem ganhou o reconhecimento dos críticos e dos leitores. Após premiações na capital do país e publicações de alguns poemas nas principais revistas de prestígio nacional, o jovem poeta publicou o seu primeiro livro com apenas vinte anos. Trata-se de "Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada" (Martins). Seu conteúdo está relacionado aos primeiros amores e, por consequência, as primeiras desilusões afetivas do escritor.
Nessa publicação, Neruda relaciona o erotismo do corpo feminino aos fenômenos da natureza. O amor inocente e puro do poeta parece invocar o mundo externo em uma perfeita comunhão estética. A representação dos sentimentos das primeiras relações amorosas de Neruda surge metaforicamente encenada pela fauna e flora local.
Assim, a solidão resultante da ausência da amada é comparável ao escurecer provocado pelo crepúsculo. Os beijos e os carinhos a dois são como a produção de mel pelas abelhas. A dependência atiçada pelo amor intenso é parecida com a necessidade de ar e de alimento pelos seres vivos. A doçura das partes do corpo da mulher é tão afrodisíaca para o homem como são as flores e o néctar das plantas para os pássaros. E os momentos carnais vividos com a outra metade são tão intensos como as tempestades no mar e as agitações do céu.
Como toda poesia de amor juvenil, essas contêm o exagero e a extravagância do impulso do autor pouco contido e sem qualquer experiência de vida. Aí estão as principais qualidades e defeitos do texto. Em "Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada" temos um jovem Pablo Neruda extremamente passional e platônico. Assim, suas poesias se tornam sinceras (percebe-se que vieram dos seus mais nobres sentimentos) e imbuídas de uma força arrebatadora (como são típicas dessa idade) - essas são as qualidades. Ao mesmo tempo, elas são infantis e completamente desvinculadas da realidade - aqui estão seus defeitos.
Por isso, a melhor parte do livro surge no final. Quando o escritor toma "um pé na bunda" da sua amada, ele escreve a tal canção desesperada que complementa o título da obra. Esse desfecho tem a profundidade da primeira parte, mas possui um tom realista e concreto que a outra não tinha.
Já é possível notar em "Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada" o DNA de Pablo Neruda como poeta. Porém, para conhecermos o ápice da escrita desse autor, precisamos avançar na leitura dos livros. A fase mais madura é refletida em duas obras lançadas na década de 1950: "Canto Geral" (Bertrand Brasil) e "Cem Sonetos de Amor" (L&PM Pocket).
Em "Cem Sonetos de Amor" é possivelmente a obra do chileno que se disseminou com mais intensidade na cultura contemporânea. Publicado originalmente em 1959, a coletânea de poemas amorosos tornou-se uma peça da cultura ocidental. Seus poemas foram citados no filme "Patch Adams - O Amor é Contagioso" (Patch Adams: 1998) e foram transformados em canção por Peter Lieberson.
“Cem Sonetos de Amor” é dedicado a Matilde Urrutia, a terceira e última esposa do Nobel de Literatura. Matilde, uma soprano chilena, conheceu o poeta quando ele morava no México e trabalhava como diplomata. Nessa fase, ele era casado com Delia. Nem mesmo o matrimônio dele impediu os dois de iniciarem um tórrido romance. A relação extraconjugal se transformou em casamento quando ambos voltaram para o Chile. O túmulo do casal está até hoje na casa de Isla Negra, morada onde viveram entre 1966 e 1973 (ano na morte do poeta).
O livro é dividido em quatro partes: "Manhã", "Meio Dia", "Tarde" e "Noite". Em cada etapa, Pablo Neruda caracteriza seu amor por Matilde de uma maneira diferente. A obra possui as características típicas do autor: criação de neologismos, comparação dos sentimentos e dos atos humanos com os acontecimentos da natureza, linguagem erótica e passionalidade exacerbada.
Apesar de na edição aportuguesada os versos parecerem sem metrificação e as rimas livres, isso não acontece na versão original, escrita em espanhol. Nela, Pablo Neruda produziu os catorze versos alejandrinos (dois quartetos e dois tercetos) com rimas consoantes (a,b,a,b). A nomeação dos sonetos é feita em numeração romana (I, II, III, IV...)
"Canto Geral", por sua vez, é considerado pelo próprio autor como sendo a principal obra de sua carreira. Escrito no final da década de 1940, o livro apresenta a história do continente americano em uma perspectiva inovadora. Os versos denunciam as injustiças históricas que os países da América Latina sofreram ao longo dos séculos. Vilões e heróis são reclassificados a partir da perspectiva do poeta. Publicado oficialmente no México em 1950 e clandestinamente no Chile no mesmo ano, "Canto Geral" se transformou em um clássico da literatura hispano-americana e mundial.
"Canto Geral" é um livro distinto do portfólio de Neruda. A primeira diferença está em seu tamanho. Com mais de seiscentas páginas, essa publicação é muito grande. A outra particularidade está na temática. Ao invés de cantar em versos o mundo sentimental (seus amores e sofrimentos românticos), dessa vez Pablo compromete-se a narrar a história do continente americano. Sua poesia visa explicar os acontecimentos mais importantes ocorridos no território da América do Sul, da América Central e da América do Norte. Ele cita quase todos os países da região. Acredito que não falte nenhuma nação relevante.
Assim, "Canto Geral" é a epopeia latino-americana. Se Homero cantou as aventuras gregas da antiguidade em "Ilíada" e "Odisseia" e Camões cantou as aventuras portuguesas em "Os Lusíadas", Pablo Neruda narrou em versos a história do seu povo neste livro. A obra é uma aula de geografia e de história da América. Ali desfilam os principais personagens do continente: reis indígenas, colonizadores espanhóis, revolucionários que lutaram pela independência dos países latino-americanos, os libertadores e os ditadores nacionais. A perspectiva do autor é inovadora e com um viés esquerdista. Isso é bem interessante e fica mais evidente quando ele cita o Brasil. Os dois personagens que mereceram ser descritos foram Castro Alves e Luis Carlos Prestes. Ambos foram considerados os libertadores do Brasil. O primeiro por ser abolicionista e por produzir textos poéticos em prol dos escravos negros. O segundo por pegar em armas e lutar contra a burguesia capitalista que oprimia o povo pobre.
Em "Canto Geral", Pablo Neruda utiliza-se de rimas livres. Ele também não se preocupa com as métricas dos versos. O estilo de sua poesia é mais moderno. Isso confere certa leveza à obra. De certo modo, a forma mais descompromissada é compensada com a densidade temática.
No final da vida, Neruda ainda lançou "Ainda" (José Olympio), coleção de poemas que narram o período da sua infância e adolescência. A obra retrata o Chile que o escritor conheceu em sua infância e adolescência. Acompanhando o pai que era maquinista de trem, o jovem Neruda pode conhecer de perto, no início do século XX, as várias regiões de seu país: Temuco, Yumbel, Angol, Boroa, o vulcão Osorno e a baleeira de Quintay. Há também muitas citações à Araucânia, onde ele nasceu e cresceu.
O grande brilho desse livro está na comparação feita pelo autor. Assim como Ítalo Calvino descreveu as diferentes personalidades humanas narrando os vários tipos de cidade do mundo, em "Cidades Invisíveis" (Companhia das Letras), Pablo Neruda só consegue se caracterizar como homem e abordar sua vida e trajetória quando narra os detalhes da terra de onde veio e de onde cresceu. Assim, o deserto chileno é uma metáfora para o sentimento solitário do poeta. As geleiras nos cumes montanhosos do país, por sua vez, são semelhantes aos cabelos brancos dos homens idosos. Os vulcões são a força interna e a paixão que há dentro de cada chileno.
O livro é muito bonito. Simples, porém muito impactante. A sensação que temos ao terminar "Ainda" é que Pablo Neruda conseguiu sintetizar sua vida e sua personalidade através da narração das paisagens que conheceu durante sua infância e adolescência. A conclusão que chegamos é que o homem adulto é formado essencialmente pelas experiências vividas na juventude e por sua interação com a terra natal.
Essas foram as cinco obras que li neste mês de julho de Pablo Neruda: "Ainda", "Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada", “Cem Sonetos de Amor”, "Canto Geral" e "Confesso que Vivi".
Pablo Neruda se tornou um ícone cultural a ponto de se transformar em um personagem cinematográfico. Em 1994, o filme "O Carteiro e o Poeta" (Il Postino: 1994) narra uma história ficcional em que o poeta chileno, em exílio na Itália por razões políticas, ensina um carteiro analfabeto a escrever seus versos poéticos.
Até hoje, Pablo Neruda é cultuado no Chile e um dos escritores mais marcantes do século XX. Foi muito legal conhecer sua vida, sua carreira e suas obras. Espero que todos aqueles que me acompanharam nessa aventura poética tenham também gostado. Eu adorei!
O Desafio Literário prosseguirá em agosto com um novo autor. O foco de análise do Blog Bonas Histórias no próximo mês será o romancista norte-americano Sidney Sheldon, best-seller nas décadas de 1980 e 1990. Continue acompanhando o Desafio Literário de 2016!
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