Li, ontem à noite, a terceira obra de Pablo Neruda do Desafio Literário deste mês. “Cem Sonetos de Amor” é o principal livro da carreira do poeta chileno. Publicada originalmente em 1959, a coletânea de poemas amorosos tornou-se uma peça da cultura ocidental. Alguns dos seus versos foram musicalizados por Peter Lieberson e outros foram citados pelo protagonista no filme “Patch Adams – O Amor é Contagioso” (Patch Adams: 1998) para demonstrar o amor que sentia pela mulher desejada.
“Cem Sonetos de Amor” é dedicado a Matilde Urrutia, a terceira e última esposa do Nobel de Literatura. Matilde, uma soprano chilena, conheceu o poeta quando ele morava no México e trabalhava como diplomata. Nessa fase, ele era casado com Delia. Nem mesmo o matrimônio dele impediu os dois de iniciarem um tórrido romance. A relação extraconjugal se transformou em casamento quando ambos voltaram para o Chile. O túmulo do casal está até hoje na casa de Isla Negra, morada onde viveram entre 1966 e 1973 (ano na morte do poeta).
O livro é dividido em quatro partes: "Manhã", "Meio Dia", "Tarde" e "Noite". Em cada etapa, Pablo Neruda caracteriza seu amor por Matilde de uma maneira diferente. A obra possui as características típicas do autor: criação de neologismos, comparação dos sentimentos e dos atos humanos com os acontecimentos da natureza, linguagem erótica e passionalidade exacerbada.
Apesar de na edição aportuguesada os versos parecerem sem metrificação e as rimas livres, isso não acontece na versão original, escrita em espanhol. Nela, Pablo Neruda produziu os catorze versos alejandrinos (dois quartetos e dois tercetos) com rimas consoantes (a,b,a,b). A nomeação dos sonetos é feita em numeração romana (I, II, III, IV...).
"Manhã" é a parte mais extensa, com 32 sonetos (quase um terço da obra). Nela, vemos o relato do autor da fase inicial da sua paixão. Assim como a primeira parte do dia é cercada de expectativas e desejos, seu amor por Matilde é, nesse momento, intenso e carnal. Esta é a parte mais erótica do livro, quando os corpos de ambos não se desgrudam. A necessidade dos dois amantes estarem junto é quase uma necessidade fisiológica e uma extensão dos acontecimentos da natureza.
Veja três sonetos dessa parte do livro:
XI
“Tenho fome de tua boca, de tua voz, de teu pelo,
e pelas ruas vou sem nutrir-me, calado,
não me sustenta o pão, a aurora me desequilibra,
busco o som líquido de teus pés no dia.
Estou faminto de teu riso resvalado,
de tuas mãos cor de furioso celeiro,
tenho fome de pálida pedra de tuas unhas,
quero comer tua pele como uma intacta amêndoa.
Quero comer o raio queimado em tua beleza,
O nariz soberano do arrogante rosto,
quero comer a sombra fugaz de tuas pestanas
e faminto venho e vou olfateando o crepúsculo
buscando-te, buscando teu coração ardente
como uma punha na solidão de Quitratúe”.
XVII
“Não te amo como se fosse rosa de sal, topázio
ou flecha de cravos que propagam fogo:
te amo como se amam certas coisas obscuras,
secretamente, entre a sombra e a alma.
Te amo como a planta que não floresce e leva
dentro de si, oculta, a luz daquelas flores,
e graça a teu amor vive escuro em meu corpo
o apertado aroma que ascendeu da terra.
Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,
te amo diretamente sem problema nem orgulho:
assim te amo porque não sei amar de outra maneira,
senão assim deste modo em que não sou nem és
tão perto que tua mão sobre meu peito é minha
tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho”.
XXV
“Antes de amar-te, amor, nada era meu:
vacilei pelas ruas e as coisas:
nada contava nem tinha nome:
o mundo era do ar que esperava.
E conheci salões cinzentos.
túneis habitados pela lua,
hangares cruéis que se despediam,
perguntas que insistiam na areia.
Tudo estava vazio, morto e mudo,
caído, abandonado e decaído,
tudo era inalienavelmente alheio,
tudo era dos outros e de ninguém,
até que tua beleza e tua pobreza
de dádivas encheram o outono”.
"Meio dia" é a fase em que os amantes estão extenuados pelo sexo e pela paixão intensa e, por isso, acabam se dobrando à rotina da casa e da união matrimonial. Esta é a parte mais breve do livro, com apenas 21 sonetos. Neste momento, presenciamos o sossego dos corpos e o estabelecimento da harmonia do convício diário a dois. Os simples gestos como preparar a refeição, deitar-se para ler algo ou apreciar uma paisagem ganham a conotação de uma ternura conjugal. A vida acaba abraçando o amor dos amantes e a paixão carnal se transmuta em atos cotidianos simples.
A seguir, vão três sonetos do "Meio dia":
XXXVIII
“Tua casa ressoa como um trem ao meio dia,
zumbem as vespas, cantam as caçarolas,
a cascata enumera os feitos do orvalho
teu riso desenvolve seu trinar de palmeira.
A luz azul do muro conversa com a pedra,
chega como um pastor silvando um telegrama
e, entre as duas figueiras de voz verde,
Homero sobe com sapatos sigilosos.
Somente aqui a cidade não tem voz nem pranto,
nem sem-fim, nem sonatas, nem lábios, nem buzinas
mas um discurso de cascata e de leões,
e tu que sobes, cantas, corres, caminhas, desces,
plantas, coses, cozinhas, pregas, escreves, voltas
ou te foste e se sabe que começou o inverno”.
XLIV
“Saberás que não te amo e que te amo
posto que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem uma metade de frio.
Eu te amo para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo todavia.
Te amo e não te amo como se tivesse
em minhas mãos as chaves da fortuna
e um incerto destino desditoso.
Meu amor em duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quanto não te amo
e por isso te amo quando te amo”.
LIII
“Aqui está o pão, o vinho, a mesa, a morada:
o ofício do homem, a mulher e a vida:
a este lugar corria a paz vertiginosa,
por esta luz ardeu a comum queimadura.
Honra a tuas duas mãos que voam preparando
os brancos resultados do canto e a cozinha,
salve! A inteireza de teus pés corredores,
viva! A bailarina que baila com a escova.
Aqueles bruscos rios com águas e ameaças,
aquele atormentado pavilhão da espuma,
aqueles incendiários favos e recifes
são hoje este repouso de teu sangue no meu,
este leito estrelado e azul como a noite
esta simplicidade sem fim da ternura”.
"Tarde" tem 25 sonetos. Nela, percebemos um pouco a mudança do espírito do poeta. Nem tudo é alegria e felicidade no relacionamento do casal. A chegada da noite (maturidade) torna os amantes mais sábios e menos passionais. O amor continua existindo, contudo, ele não é aquele sentimento avassalador e imperativo. As dificuldades do cotidiano e a chegada da idade (doenças) trazem obstáculos que os amantes conseguem superar pois continuam nutrindo um amor genuíno e sincero um pelo outro.
Veja três sonetos dessa terceira etapa da obra:
LV
"Espinhos, vidros rotos, enfermidades, pranto
assediam dia e noite o mel dos felizes
e não serve a torre, nem a viagem nem os muros:
a desventura atravessa a paz dos adormecidos,
a dor sobe e desce e acerca suas colheres
e não há homem sem este movimento,
não há natalício, não há teto nem cercado:
há que tomar em conta este atributo.
E no amor que valem tampouco olhos fechados,
profundos leitos longe do pestilente ferido,
ou do que passo a passo conquista sua bandeira.
Porque a vida pega como cólera ou rio
e abre um túnel sangrento por onde nos vigiam
os olhos de uma imensa família de dores".
LXI
"Trouxe o amor sua cauda de dores,
seu longo raio estático de espinhos,
e fechamos os olhos porque nada,
para que nenhuma ferida nos separe.
Não é culpa de teus olhos este pranto:
tuas mãos não cravam esta espada:
não buscaram teus pés este caminho:
chegou teu coração o mel sombrio.
Quando o amor como uma intensa onda
nos estrelou contra a pedra dura,
nos amassou com uma só farinha,
caiu a dor sobre outro doce rosto
e assim na luz da estação aberta
se consagrou a primavera ferida".
LXXI
"De pena em pena cruza suas ilhas o amor
e estabelece raízes que logo roga o pranto,
e ninguém pode, ninguém pode evadir os passos
do coração que corre calado e carniceiro.
Assim tudo e eu buscamos um vazio, outro planeta
onde não tocasse o sal tua cabeleira,
onde não crescem dores por minha culpa,
onde viva pão sem agonia.
Um planeta enredado por distância e folhagens,
um páramo, uma pedra cruel e desabitada,
com nossas próprias mão fazer um ninho duro.
Queríamos, sem dano nem ferida nem palavra,
e não foi assim o amor, senão uma cidade louca
onde as pessoas empalidecem nas sacadas".
A quarta e última parte do livro "Cem Sonetos de Amor" é a "Noite". "Noite", com seus 22 sonetos, pode ser compreendida, neste contexto, como fim da vida ou como o término do amor do casal depois de muitos anos juntos. Com a proximidade da morte ou com o enfraquecimento acentuado dos sentimentos do poeta, a relação dos amantes se transforma sensivelmente. Com certeza, essa é a parte mais sombria do livro, com elementos mórbidos e angustiantes. É muito difícil acreditar que o amor exposto na fase inicial do livro (em "Manhã") pode ter se transmutado em algo frio, mesquinho e racional. Ao mesmo tempo, é somente nesse estágio da vida em que se pode saber se este amor será eterno (persistindo mesmo após a morte) ou efêmero.
LXXXI
"Já és minha. Repousa com teu sonho em meu sonho.
Amor, dor, trabalhos, devem dormir agora.
Gira a noite sobre suas invisíveis rodas
e junto a mim és pura como o âmbar dormido.
Nenhuma mais, amor, dormirá com meus sonhos.
Irás, iremos juntos pelas águas do tempo.
Nenhuma viajará pelas sombras comigo,
só tu, sempre viva, sempre sol, sempre lua.
Já tuas mãos abriram os punhos delicados
e deixaram cair suaves sinais sem rumos
teus olhos se fecharam como duas asas cinzas,
enquanto eu sigo a água que levas e me leva:
a noite, o mundo, o vento enovelam seu destino,
e já não sou sem ti senão apenas teu sonho".
LXXXIX
"Quando eu morrer quero tuas mãos em meus olhos:
quero a luz e o trigo de tuas mãos amadas
passar uma vez mais sobre mim seu viço:
sentir a suavidade que mudou meu destino.
Quero que vivas enquanto eu, adormecido, te espero,
quero que teus ouvidos sigam ouvindo o vento,
que cheires o amor do mar que amamos juntos
e que sigas pisando a areia que pisamos.
Quero que o que amo continue vivo
e a ti amei e cantei sobre todas as coisas,
por isso segue tu florescendo, florida,
para que alcances tudo o que meu amor te ordena,
para que passeie minha sombra por teu pelo,
para que assim conheçam a razão de meu canto".
XCIII
"Se alguma vez teu peito de detém,
se algo deixa de andar por tuas veias,
e tua voz em tua boca se vai sem ser palavra,
se tuas mãos se esquecem de voar e dormem,
Matilde, meu amor, deixa teus lábios entreabertos
porque esse último beijo deve durar comigo,
deve ficar imóvel para sempre em tua boca
para que assim também me acompanhe em minha morte.
Morrerei beijando tua louca boca fria,
abraçando o cacho perdido de teu corpo,
e buscando a luz de teus olhos fechados.
E assim quando a terra receber nosso abraço
iremos confundidos numa única morte
a viver para sempre de um beijo a eternidade".
"Cem Sonetos de Amor" é um livro espetacular. Se não for a melhor obra poética que já li, deve figurar entre as melhores. Para a leitura ficar ainda mais interessante, é legal fazê-la sem muitas interrupções. Com a mensagem é única (retratar a mutação do amor ao longo do tempo), é necessário ler os sonetos de forma sequencial, principalmente dentro de cada fase ("Manhã", "Meio Dia", "Tarde" e "Noite").
Gostei muito dessa publicação. Aqui está o melhor de Pablo Neruda!
Na próxima quinta-feira, dia 21, o Desafio Literário prossegue com suas análises. Será a vez de comentarmos o livro "Canto Geral", o quarto de Pablo Neruda deste estudo promovido pelo Blog Bonas Histórias. Não perca!
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