É preciso ter fôlego para ler "A Dança da Morte" (Suma de Letras). Este livro de Stephen King possui mais de mil e duzentas páginas. Li esta obra no meio do ano passado e demorei quase um mês para concluí-la. Aproveitei minhas viagens de ônibus por Minas Gerais para percorrer as intermináveis páginas desta publicação.
O lançamento original de "A Dança da Morte" foi no ano de 1978, logo após a publicação de "O Iluminado" (Suma das Letras). A editora norte-americana responsável pela edição obrigou, naquela época, Stephen King a cortar mais da metade de "A Dança da Morte", para ela ficar em um tamanho mais condizente com o padrão editorial em voga. Afinal, quem seria o louco de comprar um livro com tantas páginas?! Foi com muito pesar que o escritor retirou mais de 150 mil palavras daquela versão. Apenas em 1990, King, agora um dos escritores de maior sucesso mundial e com poder para impor algumas exigências à editora, pode finalmente lançar a história exatamente como pretendia. A edição ampliada ganhou as 500 páginas que foram inicialmente suprimidas e mais algumas centenas que seu autor acrescentou na revisão. O livro ficou "mais completo" segundo a definição do seu autor. Foi esta nova versão que li e que vou comentar agora.
Aclamado por muitos como a melhor obra de Stephen King e considerado pelo próprio autor como seu livro favorito, "A Dança da Morte" é um envolvente romance pós-apocalíptico. Passada durante a década de 1980 (considerado um futuro próximo, pois o romance foi escrito no final dos anos de 1970), em um mundo devastado por uma misteriosa praga que exterminou 99,9% da população do planeta, a narrativa, dividida em três partes (O Capitão Viajante, Na Fronteira e O Confronto), descreve a batalha pela sobrevivência do grupo de pessoas que, por alguma razão, não foram infectadas pelo vírus mortal que causou a quase extinção dos seres humanos do planeta Terra.
O livro começa narrando o acidente ocorrido em uma base militar norte-americana de segurança máxima. O acidente desencadeia a proliferação de um vírus letal criado e mantido, até então, em laboratório por cientistas do governo. A praga, ao entrar em contato com as pessoas, provoca gripe e as leva a morte em poucos dias. De certa forma, ela se parece um pouco com o Ebola, que atingiu alguns países da África no ano passado.
Na história ficcional, o governo tenta esconder a gravidade da situação ao censurar as notícias. Também tenta conter a epidemia ao isolar cidades e bloquear estradas. Tudo em vão. O vírus se espalha rapidamente e em poucas semanas os Estados Unidos foi inteiramente atingido pela nova doença. Em pouco tempo, o mundo inteiro é afetado também.
A Supergripe, a Gripe Azul ou Capitão Viajante, como a doença é chamada, leva a morte de quase todos os habitantes dos Estados Unidos e dos demais países do mundo. Apenas alguns poucos sobreviventes, que possuíam alguma característica genética de resistência ao vírus mortal, passaram ilesos. Estas pessoas, sem saber no início o que fazer e como agir em um mundo quase sem seres humanos, passam a se organizar em dois grupos distintos: um formado por uma senhora extremamente velha e religiosa, a Mãe Abagail, e outro formado pelo ambicioso e misterioso Randall Flagg.
Na segunda parte do livro, os seguidores de Mãe Abagail se instalam na cidade de Boulder, no Colorado, e implementam um sistema social e político parecido com que havia antes do aparecimento da Supergripe. Os seguidores de Flagg, por sua vez, se instalam na cidade de Las Vegas e implementam uma autocracia baseada no poderio bélico e na repressão das individualidades. Ficam nítidos, neste momento, a dualidade e o maniqueísmo da história. De um lado, estão aqueles que querem o bem do mundo e das pessoas (seguidores de Abagail). Do outro lado, estão aqueles que querem o mal do mundo e o extermínio das pessoas (seguidores de Flagg).
Na terceira parte do livro, ocorre o confronto entre as duas sociedades. Cada um dos lados chega à conclusão que não é possível viver em conjunto, mesmo separados por quilômetros e quilômetros de distância. Assim, é estabelecida a guerra entre as duas comunidades. Tanto Flagg irá atacar a cidade de Boulder quanto Las Vegas será atacada pelos admiradores de Abagail.
"A Dança da Morte" não é um romance convencional. Ela é na verdade uma saga. A quantidade de personagens é absurda. O tempo inteiro está acontecendo alguma coisa com alguém. As histórias paralelas são tão interessantes quanto a trama principal.
A constituição dos personagens também merece menção elogiosa. Eles são muito bem construídos, com características diferentes e muito peculiares. A maioria deles é bem cativante e parece descrever pessoas reais. Destaque para Homem Lixo (um jovem arruaceiro que adora colocar fogo nas coisas), para Nick Andros (um adolescente surdo mudo muito inteligente), para Larry Underwood (músico famoso e insatisfeito com a vida), para Glen Bateman (professor de sociologia muito pessimista), para Frances Goldsmith (adolescente grávida) e para Stuart Redman (um ex-funcionário de uma fábrica que está há anos desempregado).
Os personagens principais da trama são Randall Flagg e Mãe Abagail. Flagg é um ser sobrenatural e de alma negra. Ele é quem comanda o grupo de pessoas localizado na cidade de Las Vegas de maneira ditatorial e de forma cruel. Mãe Abagail é uma senhora com mais de cem anos, simples, muito religiosa e com poder de entrar no sonho e na mente das pessoas. Sua forma de governar Boulder é mais democrática e humana. Flagg e Abagail são os opostos em tudo.
A narrativa do livro vai crescendo e melhorando à medida que a história vai ficando clara para o leitor. O começo, com o excesso de personagens e a morte de muitas pessoas por causa da gripe, é um tanto arrastado. Diria que a primeira parte, chamada de O Capitão Viajante, é a mais fraca da obra. A segunda, Na Fronteira, e, principalmente, a terceira partes, O Confronto, são de um ritmo alucinante. É impossível desgrudar do livro a partir de determinado ponto. Basicamente o livro demora certa de 300 páginas para embalar. Porém, depois que embala, ele se torna imperdível...
A principal característica de "A Dança da Morte" é o seu maniqueísmo. A história é sobre a luta do bem contra o mal. Mesmo com pouquíssimas pessoas no planeta (a maioria morreu por causa da Supergripe) e com excesso de recursos para todos os sobreviventes, o instinto maléfico de Flagg quer destruir a comunidade formada por Mãe Abagail. O vilão não aceita que alguém viva segundo crenças, valores e filosofia de vida diferentes dos seus princípios. Por isso, deseja a morte dos outros a qualquer custo. O pessoal de Abagail, por sua vez, precisa destruir a cidade dominada por Flagg para conseguir viver em paz.
"A Dança da Morte" tem muitas das características típicas de Stephen King. É uma obra extensa. Seu final é dramático e apoteótico. Há muitas explosões, mortes, sangue, violência e maldade. A linguagem é simples e objetiva. O enredo mistura terror, ficção científica e fantasia. A trama é bem dinâmica, prendendo a atenção do leitor a maior parte do tempo.
O que diferencia "A Dança da Morte" das obras precedentes do autor é o seu aspecto político e sua análise social. À medida que as pessoas vão morrendo, o governo até então constituído vai perdendo força, vai se definhando até desaparecer por completo. A saúde, a segurança e a educação públicas, as leis, a ordem e a civilidade desaparecem. Roubos, estupros e assassinatos passam a vigorar em uma terra sem leis. Praticamente assistimos as teorias sociais de Thomas Hobbes se materializarem. A humanidade, de certa forma, regride ao seu Estado Natural. O estabelecimento do novo Contrato Social terá características diferentes, segundo a concepção de Mãe Abagail e Randall Flagg. Interessante perceber também como seria o mundo com o fim do capitalismo. O sistema econômico, que regia a maior parte das regiões do planeta, sucumbiu diante do extermínio de grande parte da população.
"A Dança da Morte" é um livro muito, muito bom. Ao mesmo tempo em que mexe com nossas emoções, ele permite que façamos uma reflexão sobre a estrutura social e econômica de nossa sociedade. Também nos faz pensar (e temer) os avanços tecnológicos e da ciência (afinal, foi um vírus desenvolvido pelo próprio homem o causador da epidemia). Stephen King é realmente genial. Este livro é imperdível. É daquelas obras que ao acabarmos de ler, já sentimos saudades...
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