Hoje conclui a leitura de "Capitães da Areia" (Companhia das Letras), a terceira obra de Jorge Amado que me propus a investigar no Desafio Literário deste mês. Este livro ficou conhecido nacionalmente em novembro de 1937, ano de seu lançamento, quando suas cópias foram queimadas nas praças de Salvador pelo governo local. As autoridades entenderam que a obra fazia apologia ao comunismo. Amado, sempre identificado com o ideal de esquerda e filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), passou, a partir de então, a ser perseguido implacavelmente pelo governo Vargas por causa de suas publicações. Na segunda metade da década de 1930, o escritor baiano lançou, além de "Capitães da Areia", "Jubiabá" e "Mar Morto", títulos cujos conteúdos eram críticas sociais.
Jorge Amado foi preso em dezembro de 1937, quando regressava da Colômbia, onde precisou ficar dois meses devido ao clima político pouco propício para ele em seu país natal. Este foi o período de instalação do Estado Novo, quando Vargas passou a governar em um regime ditatorial e a perseguir comunistas e opositores ao seu governo. Jorge, nos anos seguintes, optou por se mudar para o exterior, para viver mais tranquilo e sem o perigo de ser constantemente preso.
"Capitães da Areia" é classificado como sendo uma obra da primeira fase da carreira de Jorge Amado, quando o escritor baiano mergulhou nas críticas sociais. Assim, as histórias dessa fase são baseadas no conflito entre ricos e pobres. Entre dominadores e dominados. Entre burgueses e trabalhadores. Entre poderosos e subjugados. A culpa pelos problemas da sociedade está na avareza, na ambição e na falta de compaixão dos que ocupam o topo da pirâmide social.
O livro "Capitães da Areia" relata o drama dos meninos de rua de Salvador. Abandonados pela família e pela sociedade, o grupo de garotos liderados por Pedro Bala se une e cria suas próprias regras para sobreviver em um cenário tão hostil. Os meninos, aproximadamente cem, vivem de furtos, agressões e delitos pelas ruas da capital baiana. Suas ações são justificadas pela necessidade de sobrevivência e pela falta de ajuda. As únicas pessoas que parecem se preocupar com a situação desses menores abandonados são o padre José Pedro, o capoeirista Querido-de-Deus e o militante comunista João de Adão.
Segundo Zélia Gattai Amado, esposa do escritor, Jorge Amado teria passado alguns dias com os meninos pobres de Salvador e teria até dormido com eles em suas precárias acomodações para conhecer a realidade de suas vidas. O reflexo nesse mergulho no cotidiano desses garotos fica evidente na riqueza de detalhes da história.
Os personagens principais e os heróis da trama são crianças marginalizadas pela sociedade, algo incomum de encontrarmos na literatura nacional. Pedro Bala é o corajoso e destemido líder do grupo; Volta Seca é afilhado de Lampião e sonha em fazer parte do bando do cangaceiro; Professor (João José) é o único letrado do bando, sabendo ler e desenhar, e tem como responsabilidade elaborar os planos das ações criminosas dos Capitães da Areia; Gato é o galanteador e o conquistador de mulheres; Boa-Vida é o malandro que gosta de festas e música; Sem-Pernas é o menino coxo que se aproveita do seu defeito físico para ludibriar as pessoas; João Grande é o "negro bom", forte, corajoso e com um coração enorme; Pirulito é o único religioso do grupo, sonhando em se tornar padre quando crescer; e Dora, a única menina do bando, é a responsável por cuidar de todos como se fosse a mãe deles, apesar de ter a mesma idade da maioria.
Se os heróis do romance de Amado são as crianças abandonadas, os vilões são os policiais, as famílias ricas, os políticos, os religiosos da Igreja Católica, os comerciantes e os homens de negócio. Por causa deles, os meninos são renegados pela sociedade e acabam precisando viver de maneira degradante para sobreviver.
Isso fica claro nessa passagem da obra: "Eles furtavam, brigavam nas ruas, xingavam nomes, derrubavam negrinhas no areal, por vezes com navalhas ou punhal homens e polícias. Mas, no entanto, eram bons, uns eram amigos dos outros. Se faziam tudo aquilo é que não tinham casa, nem pai, nem mãe, a vida deles era uma vida sem ter comida certa e dormindo num casarão quase sem teto. Se não fizessem tudo aquilo morreriam de fome, porque eram raras as casas que davam de comer a um, de vestir a outro (...). O padre José Pedro dizia que a culpa era da vida e tudo fazia para remediar a vida deles, pois sabia que era a única maneira de fazer com que eles tivessem uma existência limpa. Porém uma tarde em que estava o padre e estava João de Adão, o doqueiro disse que a culpa era da sociedade mal organizada, era dos ricos... Que enquanto tudo não mudasse, os meninos não poderiam ser homens de bem. E disse que o padre José Pedro nunca poderia fazer nada por eles porque os ricos não deixariam".
Em relação ao comunismo, que na época do lançamento do livro suscitou tanta discussão, pode-se extrair esse trecho para medir a polêmica: "O padre José Pedro ia encostado à parede. O cônego dissera que ele não podia compreender os desígnios de Deus. Não tinha inteligência, estava falando igual a comunista. Era aquela palavra que mais perseguia o padre (...) O cônego sabia de tudo, era muito inteligente. Podia ouvir a voz de Deus... Estava próximo de Deus... Não foi dos alunos mais brilhantes... Tinha sido dos piores... Deus não ia falar a um padre ignorante... Ouvia João de Adão. Um comunista como João de Adão... Mas os comunistas são maus, querem acabar com tudo.... João de Adão era um homem bom... Um comunista... E Cristo? Não, não podia pensar que Cristo fosse um comunista...(...) Será que um comunista age assim? Dar um pouco de conforto àquelas pequenas almas. Salvá-las, melhorar seus destinos... Antes dali só saíam ladrões, batedores de carteira, vigaristas, os melhores eram malandros... A profissão mais digna... Queria que agora saíssem homens para trabalho, honestos, dignos...".
"Capitães da Areia" é um livro excelente, considerado por muitos como o mais influente de Jorge Amado. Esse clássico da nossa literatura aborda um tema que infelizmente continua muito atual em nossa sociedade: o abandono das crianças desfavorecidas. Os problemas relatados pelo escritor baiano continuam evidentes até hoje nas ruas das principais cidades do Brasil. A força dessa obra está no fato da denúncia social vir atrelada a uma narrativa crua, forte, detalhada e comovente. Impossível não se emocionar e não se solidarizar com essa trupe enquanto se está lendo o livro.
Além de muito polêmica, esta é a obra de maior sucesso editorial do escritor baiano. "Capitães da Areia" vendeu mais de cinco milhões de exemplares em todo o mundo, superando em vendagem "Dona Flor e Seus Dois Maridos" e "Gabriela, Cravo e Canela", livros de Jorge Amado mais conhecidos do público brasileiro.
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