Começarei a análise das obras de Mia Couto pelos contos. E o principal livro do autor moçambicano neste gênero é "O Fio das Missangas" (Companhia das Letras). Publicado originalmente em 2004, esta obra tem uma leitura rápida. Li o livro em apenas duas noites (dava para ter lido em uma tacada só). Achei sensacional seu conteúdo, de uma beleza e de uma singularidade incomparáveis.
"O Fio das Missangas" tem 29 contos. Suas histórias são bem pequenas, com três ou quatro páginas em média cada. Os contos são poéticos, com um lirismo acentuado. Há vários trechos nos quais a prosa se mistura com a poesia e com a rima ("O gesto contido, o olhar regrado, o silêncio esmerado. Até o seu sentar-se era educado"; e "E, agora, pronto: ponho ponto. Nem me alongo para não esticar o engano"). A linguagem é simples, fazendo referência ao modo como os moçambicanos falam no dia a dia em seus povoados. Ler os diálogos e os pensamentos das personagens é, de certa maneira, viajar para a África. Mia Couto utiliza-se de muitos neologismos ("zaranzeando", "pressentimental" e "talvezmente", por exemplo) nas suas narrativas, permitindo uma saudável comparação com o brasileiro Guimarães Rosa, que se utilizava maravilhosamente bem desse recurso linguístico.
A sensação ao ler "O Fio das Missangas" é estar em algumas das músicas de Chico Buarque. Foi assim que me senti enquanto virava as páginas desta obra. Assim como o compositor brasileiro se especializou em cantar sob o ponto de vista feminino, Mia Couto, neste livro, mergulha no universo feminino, dando voz as suas conterrâneas. O ponto de vista da maioria dos contos (o eu lírico das histórias) é das próprias mulheres, que narram suas vidas e suas angústias em primeira pessoa e de forma reflexiva.
A temática principal de "O Fio das Missangas" é a opressão praticada contra a mulher pela sociedade machista e patriarcal moçambicana. Assim, temos relatos de abandono, de violência física e de desprezo praticados pelos homens a suas esposas, filhas, irmãs, vizinhas e conhecidas. A vida das mulheres se torna fonte de martírio, dores, desilusões, solidão e culpa. Nesse contexto, amores, desencontros, a passagem do tempo, lembranças do passado e sonhos são os assuntos da maioria das histórias.
Nos contos narrados pelos homens, é possível perceber que eles foram criados para desprezar e anular as mulheres. Eles são descritos como dominadores, insensíveis, amigos apenas de outros homens, violentos, desumanos e apaixonados pelas suas vontades carnais e pelo futebol. De certa forma, a culpa não é só deles e sim do ambiente no qual estão inseridos. Há, por exemplo, um conto ("O Fio e As Missangas") no qual o filho é incentivado pela mãe a trair a esposa e a se "deitar" com todas as mulheres possíveis. Em outra história ("O Nome Gordo de Isodorangela"), um menino é estimulado pelo pai e pela família rica do patrão do pai a cortejar uma menina gorda (filha do patrão) que ele não gostava, simplesmente por interesse das famílias.
As histórias são normalmente tristes, chocantes e com final surpreendente, fantasioso e/ou trágico. Para amenizar, o escritor utiliza sua sensibilidade para contar os episódios com lirismo, comparando as damas aos objetos descartáveis do dia a dia, como saias velhas, cestos de comida e fios de missangas. A forma poética de Mia Couto escrever transforma o tom sombrio dos seus contos em algo belo e agradável. Nesse sentido, ele se parece um pouco com Gabriel Garcia Marques, de "Cem Anos de Solidão" (há muita fantasia e várias passagens surreais nos contos de Couto) e com Woody Allen (muitos contos de Mia possuem finais trágico-cômicos).
Como cenário, temos também uma sociedade com outros preconceitos além do machismo. Há o preconceito racial contra os negros ("Eu tinha a raça errada"; "Ainda lhe veio à cabeça responder: preto não pensa, patrão"; e "Nós, sendo mulatos, tínhamos sorte em receber as simpatias do chefe" ) e social contra os pobres ("Sonhe com cuidado, Mariazita. Não esqueça você é pobre. E um pobre não sonha tudo, nem sonha depressa").
Confira o enredo de alguns contos: três moças solitárias são forçadas pelo pai a ficar presas em casa para cuidar do lar e dele ("As três irmãs"); mulher oprimida pelo marido se sente aliviada quando ele morre ("O cesto"); esposa é visitada pelo marido apenas uma vez por ano, no Natal, não recebendo carinho nem ajuda financeira para criar os filhos ("Na tal noite"); mulher assassina o marido por ele não dar atenção a ela ("Meia culpa, meia própria culpa"); mulher é espancada em casa sistematicamente pelo marido ("Os olhos dos mortos"); avó decide viajar para a cidade com o neto para fazer a comida dele e arrumar sua cama, mesmo ele ficando hospedado em um hotel ("A avó, a cidade e o semáforo); e moça virgem finge ter ficado grávida para proteger a mãe que gerou um bebê fora do casamento ("Maria Pedra no cruzar dos caminhos").
Ao final do livro, acho que compreendi a intenção do autor em nomear essa obra com o título dado. O colar de missangas pode ser comparado à importância (ou falta dela) da mulher na sociedade moçambicana e, ao mesmo tempo, serve de base para a construção dos contos desse livro. Afinal, qual a importância de um colar de missangas? Para os homens de uma comunidade patriarcal e machista, esse item não possui valor nenhum (assim como as mulheres não tem muito valor para eles). O colar é uma mercadoria barata, simples e descartável (é dessa forma como os homens tratam também suas damas). Conforme diz uma das personagens masculinas (do conto "O Fio e as Missangas"): "A vida é um colar. Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas, as missangas...".
Além disso, a estrutura do livro se parece com um colar. Sendo os fios os homens (dá a liga) e as missangas as mulheres (estão lá para enfeitar), na comparação feita pela personagem da coletânea, os contos são divididos para harmonizar e formar o objeto. As histórias das mulheres são intercaladas pelas dos homens (assim como um colar é intercalado por fios e pedrinhas).
Gostei muito deste livro. Acho que comecei com o pé direito a análise das obras de Mia Couto. Agora vou partir para o romance. Em alguns dias vou comentar "Terra Sonâmbula" (Companhia das Letras), obra de 1992. Mas primeiro eu preciso comprá-la. Onde tem uma livraria aqui por perto?
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