Neste final de semana, li "Através do Espelho" (Companhia das Letras), novela do norueguês Jostein Gaarder. Mundialmente conhecido como o autor do best-seller "O Mundo de Sofia" (Companhia das Letras), Gaarder mistura em sua literatura filosofia e religião. Em muitos momentos, é possível comparar seu estilo ao do brasileiro Paulo Coelho. Apesar de seu receituário ficcional ser um tanto questionável, o fato é que Jostein Gaarder tornou-se o escritor norueguês mais vendido na década de 1990. "Através do Espelho" segue o padrão narrativo do autor: uma menina à beira da morte e um anjo conversam sobre filosofia e religião; a dupla tenta entender como funciona o mundo e qual a lógica por trás da criação divina.
Publicado em 1993, "Através do Espelho" conquistou o Prêmio Norwegian Booksellers como o melhor livro ficcional norueguês daquele ano. Lançado dois anos após "O Mundo de Sofia", esta obra surfou no sucesso do principal best-seller de Gaarder e foi vendida em dezenas de país. No Brasil, a novela foi editada no final da década de 1990, alcançando relativo êxito comercial. Uma adaptação cinematográfica dessa história chegou aos cinemas escandinavos em 2008. A produção conquistou o Prêmio Amanda de melhor filme norueguês infantil da temporada.
O enredo de "Através do Espelho" se passa essencialmente no quarto de Cecília Skotbu. A menina sofre de câncer terminal e não consegue mais sair da cama. A família optou por seguir o tratamento em casa ao invés do hospital. Assim, a garota pode compartilhar suas últimas semanas de vida com os parentes próximos: os pais, os avós e o irmão caçula, Lars.
Quando a trama inicia-se, é época de Natal. Em sua cama, Cecília ouve os festejos tradicionais em sua casa. Os familiares revezam-se para ficar com a menina no quarto. De presente, Cecília pediu um esqui e um tobogã. Mesmo não conseguindo andar, ela espera poder usar esses brinquedos no próximo inverno, quando já estiver curada.
Certa noite, Cecília desperta e vê um menino sem cabelo ao lado de sua cama. Ariel é o nome do rapazinho. Ele se identifica como um anjo que veio do céu para fazer companhia para a garota. Os dois começam a conversar sobre a vida e o mundo. Rapidamente, tornam-se amigos. Ninguém mais na casa consegue ver Ariel, apenas Cecília. O anjo só aparece quando não há ninguém por perto da menina doente.
Nessas conversas, Ariel e Cecília Skotbu falam de religião, de Deus, da vida e das características conflitantes de seres humanos e dos anjos. Cada um tenta explicar como é sua existência. Enquanto Ariel não consegue ter sentimentos nem sensações, mas é eterno, Cecília usufrui de uma enxurrada de sentimentos e sensações, mas padece dos efeitos da sua finitude.
"Através do Espelho" é um livro curto (possui apenas 141 páginas) e de leitura extremamente rápida (conclui a novela inteira na tarde de sábado). Sua linguagem simples e o constante diálogo entre os dois protagonistas ajudam o leitor a percorrer velozmente as páginas. Apesar de tratar de temas religiosos e filosóficos, o que temos aqui são discussões rasas, sem grandes complexidades.
Sinceramente, fiquei decepcionado com esta obra. Achei a novela de Jostein Gaarder muito infantil. As discussões travadas na trama são enfadonhas e tolas. O mundo retratado segue a concepção católica, sendo mais uma ferramenta de evangelização do público do que um debate filosófico que enriqueça os leitores.
Para piorar, o anjo e a menina são personagens pouco verossímeis. Ariel diz não saber como o mundo físico funciona, desejando a ajuda de Cecília para compreender como é a vida de um ser humano. Porém, o anjo já existe a milhares de anos (é, afinal de contas, eterno, né?). Por que ele ainda não tinha tido essa preocupação? Por que só agora quer aprender? Depois de tanto tempo, ele não sabe muita coisa. Ou Ariel é burro ou é preguiçoso. Ao mesmo tempo em que diz não saber aspectos básicos do mundo, ele ensina várias coisas pretensamente profundas para Cecília. Como isso é possível?! Ou ele sabe ou não sabe.
Cecília, por sua vez, é uma menina ingênua e sonhadora. Porém, em alguns momentos, ela faz reflexões como se fosse uma pessoa adulta, conversando com o anjo como se fosse alguém muito experiente. Não vejo lógica nenhuma nisso. Ou ela é uma menina ingênua ou é alguém com um olhar perspicaz da realidade humana. Não dá para ser as duas coisas ao mesmo tempo.
Antes de chegar à metade do livro, você já entendeu o destino da menina e a função do anjo nesta história. Não há qualquer surpresa até o desfecho. Isso talvez seja a questão mais decepcionante da obra. Além de lermos uma coletânea de filosofia barata e de conceitos de porta de bar, ainda acabamos sem qualquer novidade de ordem narrativa.
Outra coisa que não gostei foi do estilo da narração dos diálogos. As personagens falam obviedades, mas estão o tempo inteiro se surpreendendo com o que o outro diz. Como assim? O autor gosta de explicar as reações de Cecília e Ariel, mesmo sendo desnecessárias. Se isso ocorresse em uma ou outra página, tudo bem. O problema é que essa dinâmica segue por toda a novela. Uma marcação melhor dos diálogos reduziria essa trama em certa de 10% a 15%. Ou seja, lemos muita coisa redundante ou desnecessária. Na certa, um leitor médio irá se incomodar com a falta de fluidez dos diálogos.
Como literatura infantil ou infanto-juvenil, "Através do Espelho" pode até ter alguma graça. Porém, se você for um leitor minimamente crítico e com uma bagagem elementar de literatura e de filosofia, com certeza irá ficar arrependido de ter iniciado esta leitura. Gaarder tem seu valor como escritor, mas ninguém me tira da cabeça que esta novela foi escrita sem muito cuidado. A sensação é que ela foi feita às pressas e lançada no mercado editorial para angariar os fãs de "O Mundo de Sofia". Aí não dá para engolir, né?
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