Esta é a primeira crônica da série “Eu e o Mundo”, coletânea de textos que será apresentada aqui na coluna Contos & Crônicas até dezembro do próximo ano. Afinal de contas, o Bonas Histórias não abre espaço apenas para as análises de livros, filmes, peças de teatro, exposições e outros gêneros artísticos. O blog também é lugar para debatermos os mais variados assuntos sobre a vida, tema norteador desta série. E hoje, quero discutir algo que mexeu de mais comigo neste finalzinho de ano. E, curiosamente, inauguro os textos de “Eu e o Mundo” tratando de algo que é exatamente o oposto de quando falamos em vida...
Passei nos últimos dias de novembro por mais uma experiência de luto. Dessa vez, foi o falecimento de minha avó paterna. Ela era a minha única avó ainda viva. A mãe da minha mãe havia falecido há um ano, enquanto meus avôs morreram quando eu era criança. E por que estou falando sobre isso? Porque me senti mal por não ter chorado durante o velório e o enterro dela. No meio do derramamento interminável de lágrimas dos amigos e dos familiares, eu permanecia imune à tristeza coletiva. Meu coração, de alguma forma, não estava de luto. Eu não apenas não chorava como não conseguia enxergar uma tragédia naquele acontecimento.
Fiz uma retrospectiva do mesmo evento, ocorrido um ano antes com a minha outra avó, e percebi, surpreendido, ter me comportado da mesma forma naquela oportunidade. O que será que estava acontecendo comigo? Eu sempre fora um chorão, de me emocionar fácil com as coisas alegres e tristes da vida. Por que não estava em prantos como todos? Eu nem estava amargurado com aquele episódio fúnebre. Não teria amado minha avó suficientemente para poder derramar um rio de lágrimas em seu enterro?! Seria eu um psicopata insensível, imune à dor e à tristeza de um ente querido?
"É uma perda irreparável", disse uma tia ao lado do caixão. "Ela sempre teve uma saúde de ferro, poderia ter vivido mais", falou uma prima. "Eu não a via fazia tanto tempo" desabafou um tio, talvez arrependido por não tê-la visitado com mais regularidade nos últimos anos. Aqueles três comentários me chamaram a atenção no velório. Infelizmente (ou seria felizmente) eu não concordava com nenhum deles.
Naquele instante descobri: não estava penalizado como os meus familiares com os acontecimentos da véspera simplesmente por não enxergar as coisas da mesma forma como eles. Esse era o segredo do meu comportamento estranho e surpreendente. Minha visão até pode ser analisada como uma atitude fria e insensível por quem não me conhece. Antes de ser acusado injustamente, me deixe justificar todo o processo.
Primeiro, eu não via a morte da minha avó como uma "perda". Ela já tinha mais de noventa anos e era natural, uma hora ou outra, o seu falecimento. A mulher vive por quase um século, constrói uma família grande e feliz, realiza muitas coisas e permanece independente e lúcida até o final da vida. Essa trajetória não pode ser considerada como uma "perda". Ela foi um "ganho" para a nossa família e para quem a conheceu. Eu não vejo a morte dela como um aspecto negativo e sim como o encerramento de uma jornada feliz por este mundo. Ao ver sua história em retrospectiva, fiquei com mais vontade de comemorar a vida longa e produtiva da minha avó do que lamentar seu luto. Se pudesse daria uma festa para ela ao invés de colocá-la no meio de um monte de flores e de pessoas chorando.
Outra curiosidade da minha avó é o fato dela jamais ter ido para um hospital ou ter ficado seriamente doente. No máximo, ela pegou um resfriado aqui e uma gripe ali. "Ela sempre teve uma saúde de ferro, poderia ter vivido mais" foi algo dito por quase todos no enterro. Eu não concordei com aquela observação. O que eles queriam? Que a mulher, antes de morrer, tivesse sofrido com alguma doença grave e passado por limitações físicas e/ou mentais por alguns meses ou anos? Felizmente, ela faleceu após ter vivido com uma boa saúde e sem sofrimento. Eu não concordo com a opinião de que devemos viver mais, independentemente da qualidade de vida. Eu não queria a morte da minha avó, mas não lamentei sua retirada de cena em ótimas condições. Feliz da pessoa que deixa este mundo com idade avançada sem sofrer as intempéries típicas da passagem do tempo.
E por fim, diferentemente da maioria dos presentes no velório e no enterro, eu não estava há muito tempo sem ver minha avó. "Eu não a via fazia tanto tempo" diziam muitos dos familiares e amigos. Eu estava tranquilo comigo mesmo porque a via regularmente. Eu me programei, há mais de quinze anos, de visitá-la ao menos uma vez por semana (nas manhãzinhas de sábado). Era um dos momentos prediletos da minha rotina semanal. Ao visitá-la, tomava café com ela, comia algum bolo caseiro feito pela dona da casa, conversávamos sobre a vida e sobre o passado. Como é bom ouvir as histórias antigas. Sempre gostei disso e minha avó me proporcionava ótimos "causos". Acho que aproveitei muito a companhia daquela mulher. Quando garoto, passava minhas férias e muitos finais de semana na casa dela. Quando adulto, podia conversar animadamente com ela na mesa do café da manhã e provar as delícias feitas por ela naquele fogão antigo.
Eu não fiquei triste. Pelo contrário. Fiquei feliz por ter conhecido e convivido tanto tempo ao lado daquela figura tão especial que chegava a ter nome de santa. Com um sorriso no canto da boca, me despedi sem uma lágrima de tristeza no rosto. Podem me chamar de insensível ou de maldoso. Eu sei que, nas últimas três décadas, ninguém aproveitou tanto a companhia de minha avó como eu. E por isso mesmo me despeço dela com a alma lavada e agradecida por tudo o que ela fez por mim e pela minha família
Tristeza? No meu coração eu não tenho espaço para esse sentimento, pelo menos quando o assunto é a minha avó. “Bom descanso, Dona Santa! Foi um prazer conhecê-la e uma felicidade inenarrável poder conviver com a senhora por tantos anos. Obrigado por tudo e descanse em paz”, essas foram as últimas palavras ditas baixinho por mim quando o caixão baixou no jazigo. Esse foi o meu adeus para ela. Um adeus com um sorriso no rosto
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