Em dezembro de 1991, Isabel Allende já era uma das principais escritoras sul-americanas. Seus quatro primeiros romances, “A Casa dos Espíritos” (Bertrand Brasil), de 1982, “De Amor e de Sombra” (Bertrand Brasil), de 1984, “Eva Luna” (Bertrand Brasil), de 1987, e “O Plano Infinito” (Bertrand Brasil), de 1991, tinham sido lançados com êxito em vários países da Europa, da América do Norte e da América do Sul. Morando nos Estados Unidos desde 1988 com o segundo marido, um advogado norte-americano, a autora chilena levava uma vida, enfim, tranquila. A situação parecia ter entrado nos eixos depois de tempos de intermináveis complicações.
Vale lembrar que o inferno astral de Isabel começou justamente com a decretação do golpe militar no Chile, em setembro de 1973. Sobrinha de Salvador Allende e jornalista combativa, ela foi perseguida pelo governo de Augusto Pinochet. Não foram poucas as ameaças de morte que recebeu. Assustada, Isabel Allende teve de se exilar com a família por 13 anos na Venezuela. Em Caracas, viveu certo ostracismo profissional e grandes dificuldades financeiras. Contudo, o período de vacas magras terminaria quando ela se lançou no universo da ficção. Nove anos após sua estreia nos romances, Allende já tinha se consolidado como uma das escritoras mais populares da literatura contemporânea de língua espanhola. Este cenário idílico, quase um conto de fadas, sofreria um sobressalto na virada do ano de 1991 para 1992.
Enquanto viajava pelo mundo para divulgar seu último trabalho ficcional, “O Plano Infinito”, livro recém-publicado, Isabel recebeu uma notícia trágica. Sua filha Paula, então com 28 anos, foi parar na U.T.I. por causa de uma crise neurológica. O que desencadeou este quadro médico extremamente delicado foi a porfiria, uma doença hereditária. Sem pestanejar, a escritora largou seus afazeres profissionais e rumou para Madrid, onde Paula morava e onde estava internada. Para a surpresa de Isabel e de seus parentes mais próximos, o estado clínico da moça piorou abruptamente e ela entrou em coma. Começava, assim, o longo calvário da família, que esperava o restabelecimento completo da adoentada. Porém, Paula não apresentou melhoras significativas por semanas e meses. Sem alternativa, coube a Isabel Allende ficar ao lado da filha no hospital, torcendo pela sua recuperação.
Vendo o desespero e a prostração da escritora, a agente literária de Allende, Carmen Balcells, teve uma ideia. Depois de entregar um bloco de folhas à Isabel, ela disse: “Toma, escreve e desabafa, se não o fizeres morres de angústia, minha pobrezinha”. À princípio, Isabel recusou. “Onde já se viu ficar escrevendo enquanto a filha está inconsciente na U.T.I.?”, deve ter pensado. Contudo, Carnem insistiu: “Escreva uma carta à Paula... Há de ajudá-la a saber o que aconteceu durante este tempo em que está adormecida”. Convencida de que a prática da escrita poderia aliviar um pouco aquele longo pesadelo, Isabel Allende iniciou o texto dirigido à filha. Nele, a escritora narrava em tom de confidências a sua trajetória pessoal e profissional. Além disso, aproveitou para recapitular a saga de sua família, desde a chegada de um marinheiro basco ao Chile no início do século XIX.
Nascia, desta forma, “Paula” (Bertrand Brasil), a quinta narrativa longa e o sétimo livro de Allende – além dos quatro romances já citados, ela também tinha publicado duas coletâneas de contos: “La Gorda de Porcelana” (sem edição em língua portuguesa), de 1984, e “Contos de Eva Luna” (Bertrand Brasil), de 1989. Diferentemente de todas as suas obras anteriores, que eram histórias ficcionais, “Paula” deve ser classificado como uma narrativa não ficcional (há quem equivocadamente o veja como um romance).
Publicado em 1995, “Paula” é o primeiro livro de memórias de Isabel Allende. Nele, a chilena narra tanto o drama da filha em coma quanto a sua autobiografia e a biografia de seus antepassados. Além disso, a autora confidencia detalhes de sua produção ficcional – quando e por que decidiu escrever; quais as suas inspirações para as histórias contadas; e de onde vem a inspiração para a criação de suas personagens. Quem gosta da literatura de Allende e deseja conhecer os pormenores da sua trajetória pessoal, familiar e profissional, esta leitura é imperdível.
Exatamente por isso, incluí “Paula” no Desafio Literário de outubro. Esta publicação é o terceiro dos seis livros de Isabel Allende que vamos analisar no Bonas Histórias ao longo deste mês. Na lista de obras selecionadas da autora, temos quatro romances, “A Casa dos Espíritos”, “Eva Luna”, “Zorro – Começa a Lenda” (Bertrand Brasil) e “O Jogo de Ripper” (Bertrand Brasil), e dois títulos não ficcionais, “Paula” e “Meu País Inventado” (Bertrand Brasil). De certa maneira, Allende retoma o relato sobre sua trajetória de vida, contada em “Paula”, em “Meu País Inventado”. Se em “Paula” a escritora narra seu passado e de seus familiares para a filha doente (em um texto mais intimista e emocionante), em “Meu País Inventado” ela o faz para os leitores (em um livro de memórias mais convencional).
“Paula” tem 464 páginas. Ele está dividido em três partes: Parte I (dezembro de 1991 a maio de 1992), Parte II (maio de 1992 a dezembro de 1992) e Epílogo (Natal de 1992). Precisei de dois dias para concluir esta leitura. Comecei a ler a obra no sábado de manhã e terminei seu conteúdo no domingo à tarde. Devo ter levado ao todo entre dez e onze horas para ir de sua primeira à última página.
A primeira questão que chama a atenção em “Paula” é a existência de uma narrativa dupla. Presente e passado caminham de mãos dadas o tempo inteiro. Em primeiro plano, temos o drama da autora com sua filha. Esta parte da trama se passa no tempo presente. Paula, uma jovem de 28 anos, bonita, saudável, inteligente, engajada socialmente e com um casamento feliz, vai parar do dia para a noite em uma U.T.I. Por causa da porfiria, ela entra em coma. Totalmente inconsciente, a moça passa um longo período postada em uma cama hospitalar, para agonia da mãe e de seus familiares. Veja, a seguir, três trechos do livro que escancaram essa primeira face da narrativa de Isabel Allende:
“Para onde vais, Paula? Como serás ao acordar? Serás a mesma mulher ou deveremos aprender a conhecer-nos como duas estranhas? Terás memória ou terei de contar-te pacientemente os vinte e oito anos da tua vida e os quarenta e nove da minha? Deus guarde a sua menina, sussurrava-me com dificuldade Don Manuel, o doente que ocupava a cama ao teu lado. É um velho camponês, operado várias vezes ao estômago, a lutar ainda contra a ruína e a morte. Deus guarde a sua menina, disse-me também ontem uma mulher jovem com um bebê ao colo, que tivera conhecimento do teu caso e acorrera ao hospital para me incutir esperança. Sofreu um ataque de porfiria há dois anos e ficou em coma mais de um mês, levou um ano a voltar à normalidade e tem de fazer tratamentos durante o resto da vida, mas já trabalha, casou e teve um menino. Garantiu-me que o estado de coma é como dormir sem sonhos, um misterioso parêntese. Não chore mais, minha senhora, a sua filha não sente nada, vai sair daqui pelo seu pé e depois não se lembrará do que lhe aconteceu (...)”.
“Todas as manhãs percorro os corredores do sexto andar à caça do especialista para indagar novos pormenores. Esse homem tem a tua vida nas suas mãos e eu não confio nele; passa como uma corrente de ar, distraído e apressado, dando-me nebulosas explicações sobre enzimas e cópias de artigos sobre a tua doença que eu tento ler, mas não entendo nada. Parece mais interessado em alinhavar as estatísticas do seu computador e as fórmulas do seu laboratório do que no teu corpo crucificado pousado nesta cama. É assim esta enfermidade, uns recuperam da crise em pouco tempo e outros levam semanas na terapia intensiva; antes os pacientes pura e simplesmente morriam, mas agora podemos conservá-los vivos até o metabolismo funcionar de novo, diz-me ele sem me olhar nos olhos. Bem, se assim é, só nos resta aguardar. Se tu resistes, Paula, eu também (...)”.
“Penso na minha bisavó, na minha avó clarividente, na minha mãe, em ti e na minha neta que há de nascer em maio, uma firme cadeia feminina que remonta à primeira mulher, a mãe universal. Devo mobilizar essas forças nutritivas para a tua salvação. Não sei como alcançar-te, chamo por ti, mas não me ouves, por isso te escrevo. A ideia de encher estas páginas não foi minha, há várias semanas que não tomo iniciativas. Mal teve conhecimento da tua doença, a minha agente veio dar-me apoio. Como primeira medida arrastou-nos, à minha mãe e a mim, para um restaurante onde nos ofereceu um leitão assado e uma garrafa de vinho de Rioja, que nos caíram como pedras no estômago, mas que também tiveram a virtude de nos devolver o riso; depois surpreendeu-nos no hotel com dúzias de rosas vermelhas, torrões de Alicante e um salsichão de aspecto obsceno - o mesmo que ainda nos serve para as sopas de lentilhas - e colocou no meu colo uma resma de papel amarelo com linhas. “Toma, escreva e desabafa, se não o fizeres morres de angústia (...)”.
Em segundo plano, temos a trajetória pessoal e familiar da autora. Esta é a parte do livro trazida diretamente do passado. Isabel conta para a filha adormecida a sua autobiografia e a história de vida de seus antepassados. O foco prioritário é o clã materno. Nesta face da narrativa, mergulhamos nas intimidades da escritora (do nascimento ao período atual, passando pela infância, juventude e amadurecimento) e das pessoas que foram mais importantes para ela (a avó, o avô, a mãe, o padrasto, o primeiro marido, os dois filhos, o segundo marido, o tio Salvador Allende, os amigos mais próximos...). Veja, a seguir, três passagens de “Paula” que apresentam fatos, figuras e lembranças de um tempo longínquo:
“Ouve, Paula, vou contar-te uma história para que, quando acordares, não te sintas perdida. A lenda da família começa em princípios do século passado, quando um robusto marinheiro basco desembarcou nas costas do Chile, com a cabeça perdida em projetos de grandeza e protegido pelo relicário de sua mãe pendurado ao pescoço, mas para que voltar tanto atrás, basta dizer que a sua descendência formou uma estirpe de mulheres impetuosas e homens de braços fortes para o trabalho e corações sentimentais. Alguns, de caráter irascível morreram a babar-se, mas talvez o motivo não fosse a raiva, como proclamaram as más-línguas, mas sim alguma peste local. Compraram terrenos férteis nas vizinhanças da capital que, com o tempo, aumentaram de valor, refinaram, ergueram construções com parques e arvoredos, casaram as filhas com crioulos ricos, educaram os filhos em severos colégios religiosos, e assim, no correr dos anos, integraram-se numa orgulhosa aristocracia de caudilhos que perdurou por mais de um século, até que o vendaval do modernismo a substituiu no poder por tecnocratas e comerciantes. Um deles era o meu avô (...)”.
“Quando acordares teremos meses, anos talvez para colar os pedaços quebrados do teu passado, ou melhor ainda, poderemos inventar as tuas recordações à medida das tuas fantasias; por agora falarei de mim e de outros membros desta família a que ambas pertencemos, mas não me peças exatidão porque vão me escapulir erros, muita coisa me esquece ou se distorce, não fixo lugares, datas nem nomes, porém nunca me escapa uma boa história. Sentada ao teu lado observando a tela com as linhas luminosas que assinalam os batimentos do teu coração, tento comunicar contigo seguindo os métodos mágicos da minha avó. Se ela estivesse aqui podia transmitir-te as minhas mensagens e ajudar-me a agarrar-te a este mundo. Empreendeste uma estranha viagem através dos meandros da inconsciência. Para que tantas palavras se me não podes ouvir? Para que estas páginas que talvez nunca venhas a ler? A minha vida faz-se ao contá-la e a minha memória fixa-se com a escrita; o que não ponho em palavras no papel, o tempo apaga-o” (...).
“Apesar de ter vindo ao mundo em Lima, sou chilena; venho de “uma vasta pétala de mar e vinho e neve”, tal como Pablo Neruda definiu o meu país, e de lá és tu também, Paula, embora tenhas a marca inegável de Caracas, onde cresceste. Custa-te um pouco a entender a nossa mentalidade do Sul. No Chile, somos determinados pela presença eterna das montanhas, que nos separam do resto do continente, e pela sensação de precariedade, inevitável numa região de catástrofes geológicas e políticas. Tudo treme sob os nossos pés, não conhecemos segurança, se nos perguntam como estamos, respondemos “sem novidade”, ou “mais ou menos”; movemo-nos de uma incerteza para outra, caminhamos cautelosos numa região de claros-escuros, nada é preciso, não gostamos de enfrentamentos, preferimos negociar. Quando as circunstâncias nos forçam a extremos, acordam os nossos piores instintos e a história dá uma reviravolta trágica, porque os mesmos homens que na vida quotidiana parecem mansos, ao contarem com a impunidade e um bom pretexto costumam converter-se em feras sanguinárias. Mas em tempos normais os chilenos são sóbrios, circunspectos, ajuizados e têm pavor de chamar a atenção, o que para eles é sinônimo de ser ridículo. Por essa razão sempre fui um pesadelo para a família” (...).
Neste mergulho ao passado, conhecemos também as particularidades da produção literária da autora. Há passagens saborosíssimas em “Paula”, como a superstição sobre a data exata de quando começar a escrever um livro, a forma como escolheu o título de seu primeiro romance e a entrevista marcante que Isabel Allende fez com Pablo Neruda. Confira:
“Hoje é 8 de janeiro de 1992. Num dia como o de hoje, há onze anos, comecei em Caracas uma carta para me despedir do meu avô que agonizava com um século de luta aos ombros. Os seus ossos rijos continuavam a resistir, embora há muito ele se preparava para seguir a Vovó, que lhe fazia sinais da passagem. Eu não podia regressar ao Chile e não convinha incomodá-lo pelo telefone que tanto o aborrecia, para lhe dizer que partisse tranquilo porque nada se perderia do tesouro de anedotas que me contara ao longo da nossa amizade, eu nada esquecera. Pouco depois o velho morreu, mas o conto tinha-me agarrado e não consegui parar, outras vozes falavam através de mim, escrevia em transe, com a sensação de ir desfiando um novelo de lã, e com a mesma urgência com que escrevo agora. Ao cabo de um ano tinham-se juntado quinhentas páginas num caderno e compreendi que aquilo já não era uma carta, então anunciei timidamente à família que tinha escrito um livro. Qual é o título? perguntou a minha mãe. Fizemos uma lista de nomes, mas não conseguimos chegar a um acordo e por fim tu, Paula, atiraste uma moeda ao ar para decidir. Assim nasceu e foi batizado o meu primeiro romance, A Casa dos Espíritos, e eu iniciei no vício incurável de contar histórias. Esse livro salvou-me a vida. A escrita é uma longa introspecção, é uma viagem até às cavernas mais obscuras da consciência, uma lenta meditação. Escrevo às cegas no silêncio e pelo caminho descubro partículas de verdade, pequenos cristais que cabem na palma da mão e justificam a minha passagem por este mundo. Também em 8 de janeiro iniciei o meu segundo romance e a partir de então já não me atrevi a mudar aquela data afortunada, em parte por superstição, mas também por disciplina; comecei todos os meus livros em um dia 8 de janeiro (...)”.
“No Inverno de 1973, Pablo Neruda convidou-me a ir visitá-lo na Isla Negra. O poeta estava doente, deixou o seu lugar na Embaixada de Paris e instalou-se no Chile na sua casa da costa, onde ditava as suas memórias e escrevia os seus últimos versos contemplando o mar. Preparei-me muito para esse encontro, comprei um gravador novo, fiz uma lista de perguntas, reli parte da sua obra e algumas biografias, mandei fazer uma revisão do motor do meu velho Citroën para que não me falhasse em tão delicada missão (...). Pablo Neruda com um poncho pelos ombros e uma boina a coroar a sua grande cabeça de gárgula, recebeu-me sem formalismos, dizendo que o divertiam os meus artigos de humor, às vezes tirava fotocópias e mandava-as aos amigos (...). Riu-se ele – Você deve ser a pior jornalista deste país, filha. É incapaz de ser objetiva, coloca-se no centro de tudo, e suspeito que mente bastante e quando não tem uma notícia, inventa-a. Por que não se dedica antes a escrever romances? Em literatura esses defeitos são virtudes. Enquanto estou a te contar isto, a Aurélia preparasse para recitar uma poesia composta especialmente para ti, Paula. Pedi-lhe que não o fizesse porque os versos dela desmoralizam-me, mas ela insiste. Não confia nos médicos, acha que não vais recuperar (...)”.
Nota-se que, muitas vezes, as duas faces desta narrativa dupla (passado e presente) vem misturadas (como nas últimas frases do trecho anterior). Cabe ao leitor distinguir o que ocorre no presente e o que ocorreu no passado. Em algumas partes do texto de “Paula”, demora um pouquinho para entendermos se um fato aconteceu lá atrás ou se está acontecendo agora. Contudo, essa característica da narrativa não atrapalha em nada a leitura nem a experiência literária. Pelo contrário, tal expediente estilístico dá mais beleza ao texto de Isabel Allende e confere mais verossimilhança à conversa com a filha.
Curiosamente, a trajetória pessoal e familiar de Isabel Allende está intimamente ligada aos principais acontecimentos políticos do Chile. Assim, por mais que não queira falar de história e de questões macroambientais, a escritora tece um belo retrato do passado recente de seu país. O capítulo dedicado ao relato da invasão dos militares ao Palácio de La Moneda, onde Salvador Allende se recusava a sair, é de tirar o fôlego. Quem ainda hoje defende golpes militares e a decretação de ditaduras na América do Sul, deveria ler atentamente este livro. A visão da escritora sobre a história recente do Chile é forte, emocionante e impecável.
A grande surpresa de “Paula” fica quanto a inserção de passagens de realismo fantástico no texto não ficcional. Muito interessante isto! Isabel Allende segue o padrão de seus romances e tece relatos em que fantasmas se comunicam com os vivos, é possível prever o futuro, sonhos tem a capacidade de servir de conversas telepáticas, pessoas conseguem mover objetos com a mente e o universo dos vivos e o plano dos mortos estão em constante interação. Ela chega a dizer que seu romance de estreia teria contado com a ajuda de seus avós já falecidos. E os poderes paranormais de Clara Del Valle Trueba, sua personagem ficcional mais famosa, eram habilidades reais de sua avó materna.
Por falar nisso, um dos aspectos que mais gostei em “Paula” foi a associação direta de personagens e fatos dos romances de Allende com episódios e pessoas reais da biografia da escritora. Por exemplo, com a leitura deste livro, descobrimos que várias personagens de “A Casa dos Espíritos” foram inspiradas em pessoas da família de Isabel. Inclusive, as figuras mais interessantes do livro apresentam características muito parecidas às dos parentes da chilena (além de Clara Del Valle Trueba, Esteban Trueba, Rosa Del Valle, conde de Satigny e Ama possuem versões de carne e osso). Quando analisamos “De Amor e de Sombra”, o enredo deste romance foi inspirado em episódios reais ocorridos na Colômbia, no Chile e na Argentina nas décadas de 1970 e 1980. E a parte da narrativa de Rolf Carlé, de “Eva Luna”, também é verídica. Ela foi contada em um bar por um alemão, quando a escritora estava viajando pela Europa para divulgar seus livros. Ou seja, um dos grandes talentos de Allende é transformar aspectos da realidade em textos e personagens da ficção.
A trajetória de vida da autora é de tirar o fôlego. Ela nasceu em Lima, quando seu pai, Tomás Allende, trabalhava como diplomata na embaixada chilena do Peru. Bissexual, Tomás se envolveu em alguns escândalos sexuais ruidosos e abandonou a esposa e os filhos ainda pequenos. Assim, Isabel voltou, aos três anos de idade, à Santiago, onde viveu na casa dos avôs maternos por oito anos. Quando a mãe se casou novamente com outro diplomata chileno, as jornadas pelo exterior foram retomadas. Ao lado de sua família, a futura escritora morou um ano em La Paz, na Bolívia, e três anos em Beirute, no Líbano.
Já adolescente, Isabel voltou a residir em Santiago e começou a trabalhar como jornalista. Repórter de televisão, colunista de revista e editora, além de se arriscar como dramaturga, a jovem se tornou conhecida em seu país. Contudo, o Golpe Militar de 1973, atrapalhou seus planos. Os militares passaram a perseguir os amigos, os familiares e os apoiadores de Salvador Allende, o presidente socialista que fora deposto/assassinado. Por ser sobrinha de Salvador e por ter se caracterizado como uma jornalista atuante em seu país, Isabel recebeu ameaças de morte.
Assustada, ela se exilou na Venezuela, com o marido e os dois filhos pequenos. Na capital venezuelana, onde viveu por treze anos, Isabel Allende até tentou continuar trabalhando como jornalista, mas os serviços nesta área eram escassos e mal pagos. Assim, ela começou a trabalhar em um colégio. Se de dia ela tinha um emprego comum, a noite ela passou a escrever ficção. Surgia, desta maneira, uma das escritoras mais criativas da atualidade. Rapidamente, seus romances caíram no gosto do público e da crítica literária. Em junho de 1987, ela se separou do primeiro marido e já no ano seguinte se mudou para os Estados Unidos, onde passou a viver ao lado do segundo esposo.
É esta a história que acompanhamos em “Paula”. Isabel Allende é tão sincera e ousada em seu relato que não se intimida nem mesmo quando conta seus casos de infidelidade conjugal (algo que normalmente as pessoas tentam esconder, até mesmo de suas autobiografias). Com Allende não existe meias-verdades. Ela coloca o dedo nas feridas, doa a quem doer.
Juntamente com sua narrativa em primeira pessoa, também assistimos à admiração da escritora por Pablo Neruda e Gabriel García Márquez, dois dos quatro autores sul-americanos que venceram o Prêmio Nobel de Literatura, e por “Mil e Uma Noites”, que leu, ainda na infância, escondida do padrasto e da mãe.
A ambientação de “Paula” é muito parecida à dos romances de Isabel Allende. Neste livro, temos dramas familiares, intrigas conjugais, muita violência, machismo, radicalização política e intermináveis crises financeiras. Ao mesmo tempo, as personagens femininas, que monopolizam o protagonismo da narrativa do início ao fim, são figuras fortíssimas e corajosas.
O único ponto negativo de “Paula” está em seu desfecho. Considerei a parte final um tanto arrastada. O leitor já entende o que irá acontecer, mas ainda sim a escritora insiste em prosseguir no suspense (o que irá acontecer com Paula?). Uma edição que cortasse uma ou duas dezenas de páginas do desenlace não faria mal à obra.
“Paula” é um livro muito bonito e emocionante. Confesso que não cheguei a derramar lágrimas durante esta leitura (algo que acontece quando a história é realmente triste). Por mais sensível e intimista que este drama pareça, fiquei muito mais impressionado com o passado difícil de Isabel Allende do que com a tragédia que acometeu sua filha. Entretanto, não duvido que haja leitores que derrubem uma enxurrada de lágrimas.
Dando prosseguimento ao Desafio Literário de outubro, o próximo trabalho de Isabel Allende que será analisado no Bonas Histórias é "Meu País Inventado" (Bertrand Brasil), o segundo livro de memórias da escritora chilena. Publicado em 2003, esta obra é uma autobiografia alternativa (menos formal/não convencional) de Allende. “Paula”, neste caso, representa o título de memórias mais básico (mais formal/convencional). O post com os comentários sobre “Meu País Inventado” estará disponível no próximo sábado, dia 17. Boa leitura a todos!
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