Neste final de semana, li “Os Subterrâneos” (L&PM Pocket), o terceiro romance de Jack Kerouac, o escritor norte-americano considerado o maior nome da Geração Beat. Não por acaso, esse é o terceiro título do autor que comentamos no Desafio Literário deste mês. Se analisarmos o portfólio de Kerouac, além de sua trajetória de vida, “Os Subterrâneos” pode ser classificado como sua obra mais surpreendente. Ou você consegue imaginá-lo escrevendo um drama sentimental, hein? Confesso que, até então, não tinha me atentado para o fato de Kerouac ter um coração pulsante (sim, ele tinha!). Pois saiba que “Os Subterrâneos” é exatamente isso – uma trama romântica.
Porém, não vá pensar que esse livro é simplesmente uma narrativa convencional de um homem que sofre desesperadamente pelo amor de uma mulher. Nananinanão. Temos aqui uma das histórias mais densas, inovadoras, ácidas e amargas da literatura norte-americana - juro que me lembrei do angustiante “Primeiro Amor” (Nova Fronteira), clássico do irlandês Samuel Beckett escrito em 1945 que de amor não tinha quase nada. A palavra romantismo, em seu sentido convencional, passa longe (e põe longe nisso) dessa publicação de Jack Kerouac (e, de maneira geral, dos narradores-protagonistas do autor, quase sempre autobiográficos). Ou seja, esse é um romance de amor em que há mais elementos de loucura, depressão, abuso psicológico, violência moral, preconceitos sociais, dependência química e egoísmo do que sentimentos belos e nobres.
Em uma definição abrangente, “On The Road - Pé na Estrada” (L&PM Pocket) é o título mais icônico de Kerouac. “Cidade Pequena, Cidade Grande” (L&PM Editores) é a sua obra mais convencional. “Os Vagabundos Iluminados” (L&PM Pocket) é a narrativa mais interessante conceitualmente (e minha favorita!). Por sua vez, “Visões de Cody” (L&PM Editores) possui a trama com a melhor construção de personagens. E “Os Subterrâneos”, que analisamos hoje no Bonas Histórias, é a o livro mais disruptivo do escritor norte-americano, seja em relação à estética (a técnica da escrita automática atinge seu ápice nesta publicação), seja em relação ao seu conteúdo (um autor beat falando abertamente de amor – amor segundo sua concepção, que fique bem claro).
“Os Subterrâneos” foi escrito em apenas três dias e três noites, segundo Jack Kerouac. Este é, portanto, seu trabalho mais veloz – ele sempre foi reconhecido pela rapidez absurda com que produzia seus textos. Como praxe na literatura do norte-americano, esse também é um relato semi-autobiográfico. O romance aborda o relacionamento amoroso (breve, mas intenso) de Kerouac com Alene Lee, uma nova-iorquina negra. Os dois se conheceram no Verão de 1953, quando ela trabalhava digitando os manuscritos de William Burroughs e Allen Ginsberg, dois autores da Geração Beat amigos de Jack, e quando ele aguardava uma resposta positiva das editoras para a publicação de “On The Road”. O primeiro encontro de Kerouac e Lee foi no apartamento de Ginsberg, em Nova York. Segundo Jack, foi paixão à primeira vista.
Publicado em 1958, um ano após “On The Road” ser lançado e alguns meses antes de “Os Vagabundos Iluminados” ganhar as livrarias, “Os Subterrâneos” é o livro mais polêmico de Jack Kerouac. Se o escritor foi bombardeado pelos budistas pela forma equivocada (leia-se erotização das sessões religiosas em grupo que acabavam sempre em orgias) com a qual descreveu a crença oriental em “Os Vagabundos Iluminados”, em “Os Subterrâneos” as críticas recaíram sobre o texto que quase sempre flerta com o racismo, com o machismo/misoginia e a homofobia. Nos dias de hoje, com certeza esse livro jamais seria publicado (ou teria muitíssima dificuldade para ganhar as prateleiras das principais livrarias do planeta). Curiosamente, para o editor da época, questões como racismo, misoginia e homofobia não eram problemas tão grandes assim. Uma das poucas mudanças que ele solicitou para o autor foi transferir a trama de Nova York para São Francisco (ah, tá!).
Para se ter uma ideia do quão delicado é o relato despudorado e politicamente incorreto do narrador-protagonista da obra, essa história foi adaptada para o cinema em 1960. Contudo, para escapar das críticas e das polêmicas, o cineasta Ranald MacDougall trocou o perfil da protagonista feminina da trama. Assim, saía de cena a mocinha negra de Nova York e entrava em ação uma jovem branca de origem francesa (interpretada por Leslie Caron). Coisas de Hollywood, meu caro!
Por isso, eu vou logo avisando: é preciso estômago forte para encarar essa narrativa. Se eu fiquei incomodado com a rebeldia desmedida de Joe, Francis, Peter e Elisabeth Martin em “Cidade Pequena, Cidade Grande” (L&PM Pocket), com a infantilidade de Sal Paradise e Dean Moriarty em “On The Road” e com o vazio interior de Raymond Smith em “Os Vagabundos Iluminados”, em “Os Subterrâneos” eu fiquei enojado com o comportamento e as crenças de Leo Percepied. Ele é um psicopata egocêntrico e hedonista que não tem a mínima capacidade de se relacionar com uma mulher.
Se o conteúdo de “Os Subterrâneos” é questionável (para usarmos um eufemismo), por outro lado a estética utilizada para a construção deste romance é espetacular. Até então, Jack Kerouac não tinha ousado tanto na técnica da escrita automática (em “On The Road”, ele estava aprendendo a usá-la). Como resultado, temos uma narrativa multifacetada que mistura diferentes vozes (Leo Percepied, sua namorada Mardou Fox e os amigos do casal), planos (realidade, pensamentos e sonhos das personagens) e épocas (presente, passado e, em alguns casos, futuro) em um texto que exige muito dos leitores.
A história ficcional de “Os Subterrâneos” é narrada em primeira pessoa por Leo Percepied, um escritor iniciante de 30 anos de idade. Como parece óbvio, ele é o alter ego de Jack Kerouac. Amargurado pelas constantes recusas das editoras em aceitar seus livros e pela miséria que o ronda (ele não é chegado ao trabalho convencional), Leo mora com a mãe em São Francisco. Como válvula de escape para suas incontáveis frustrações, ele mergulha em homéricas bebedeiras e no consumo desenfreado de drogas com os amigos.
O livro começa, em uma noite de Verão de 1953, na Montgomery Street, em frente ao bar Black Mask. O local é o ponto de encontro dos Subterrâneos, grupo de hipsters que aspiram se tornar artistas relevantes (algo que até aquele momento está muito longe de acontecer). A galerinha papo-cabeça e estilão descolado se encontra regularmente para beber (todas), consumir drogas (de todos os tipos) e azarar (o sexo é livre). O nome do grupelho deve-se à condição de outsiders de seus integrantes – eles vivem na camada mais baixa da sociedade norte-americana e no fundo do poço da cultura do seu país. Nota-se, logo de cara, um apurado senso de humor - foram eles que se autointitularam de Os Subterrâneos.
Nesse encontro, Leo Percepied conhece Mardou Fox, uma negra dez anos mais jovem do que ele. Ela é muito amiga de Julien Alexander, um dos melhores amigos de Leo. Impressionado pela beleza estonteante da moça, que estava sentada no para-lama de um carro e conversava seriamente com Ross Wallenstein, amigo de Julien, o narrador não consegue mais tirá-la da cabeça. Seu primeiro pensamento é: “Preciso transar com aquela mulher”. Logo em seguida, o escritor se questiona: “Ah olha aquela menina que eu preciso transar, será que ela transa com esses caras (?)”.
Leo tenta uma aproximação com Mardou naquela noite, mas não consegue ser bem-sucedido. Há muita gente ali e ela parece pouco interessada nele. Mais tarde, durante a madrugada, a galerinha ruma para a casa de Larry O'Hara, um dos integrantes dos Subterrâneos, para continuar a bebedeira e puxar um fumo. Aí o escritor consegue, enfim, conversar um pouco com Mardou. Ele fica completamente apaixonado por ela, mas não rola nada naquele dia. Leo está chapado demais, e a moça parece mais interessada em outros rapazes. Dessa forma, nos dias seguintes, Percepied tem várias fantasias sexuais com ela.
Foi apenas no encontro seguinte dos amigos que Leo e Mardou se entenderam. Depois de uma festinha animada na casa de Adam Moorad, outra figurinha carimbada do grupo de literatos beats, o casal vai para o apartamento dela para transar torridamente. É o início do namoro de Leo Percepied e Mardou Fox. Em pouquíssimos dias, os dois se tornam inseparáveis. Nenhum deles consegue mais viver longe do outro. Por mais que fazem o tipo “sou independente e não vou ficar caidinho por ninguém”, a dupla sucumbe as imposições do coração.
Entretanto, por mais apaixonado que esteja, Percepied não consegue levar aquele relacionamento muito bem. São vários os fatores que explicam sua insegurança: Mardou é negra (lembremos que nos Estados Unidos da década de 1950, o racismo e a segregação racial estavam regulamentados nas leis), faz tratamento psiquiátrico (o que para Leo provava que a moça era uma louca varrida), é pobre (assim como ele), já tinha ido para cama com vários amigos dele (o que despertava um ciúme doentio em Leo) e se diz independente (um sacrilégio na visão machista dos homens da Geração Beat).
Por outro lado, Leo Percepied nunca tinha se sentido tão atraído por alguém. Estar ao lado de Mardou Fox era uma experiência única. Além de muito bonita, ela era carinhosa, inteligente e paciente com as bebedeiras intermináveis do namorado. Vale a pena citar que, na maioria das vezes, Leo não abria mão da companhia de seus amigos bebuns e drogados noite à dentro, o que alimentava certo rumor sobre sua homossexualidade.
São essas contradições (elementos que atraem Percepied para manter o namoro com Fox e os elementos que o fazem terminá-lo) que configuram o conflito central deste livro. Para agravar mais a situação, temos a suspeita da formação de um triângulo amoroso: Yuri, amigo de Leo, torna-se cada vez mais próximo de Mardou. Conseguirá Percepied largar a esbórnia que é sua vida para ficar ao lado da mulher da sua vida?!
“Os Subterrâneos” é um romance enxuto. Ele possui 144 páginas e está dividido em apenas dois capítulos. O capítulo inicial é sobre a primeira semana de namoro do casal de protagonistas. A segunda parte é sobre a continuidade desse relacionamento marcado por várias brigas e idas-e-vindas. Levei pouco mais de quatro horas para concluir essa leitura. Li a obra inteira no último sábado. Com duas ou três paradinhas no meio do caminho, comecei a leitura de manhã e a terminei no início da noite. Pela sua extensão diminuta e pelo drama compacto, não é errado classificar esta obra também como uma novela (preferi chamá-la de romance pois foi assim que sua editora e seu autor definiram).
O que chama logo de cara a atenção do leitor em “Os Subterrâneos” é o estilo ousado do texto de Jack Kerouac. Temos nesse livro frases longuíssimas, parágrafos quilométricos, pontuações caóticas, o uso excessivo de gírias, a forte oralidade, a invenção de algumas palavras e a mistura de prosa com poesia (prosa poética). Além disso, a narrativa mistura vários planos (o real, o onírico e o mental/psicológico), discursos (ora é o narrador quem fala, ora são as demais personagens que se expressam) e períodos de tempo (passado, presente e futuro). E isso tudo vem junto, muitas vezes embolado na mesma frase: pensamentos e memórias do narrador, relatos do que acontece de verdade em cena, conversas com Mardou, narração do que aconteceu com ela lá atrás, pensamentos da moça, etc. É ou não é uma overdose de vozes e situações embaralhadas, hein? É como se o narrador relatasse sua história como ela veio em sua cabeça (fluxo de consciência). A experiência pode ser um pouco difícil de acompanhar no começo, mas é simplesmente sensacional.
Em meio às agruras sentimentais de Leo Percepied e Mardou Fox, temos um contexto (cenário) riquíssimo. Assistimos aos bastidores da formação da Geração Beat: com detalhes picantes de quem ficou com quem, das fofocas da época, das influências literárias desses autores, das rivalidades pessoais e profissionais entre eles e do estilo de vida que tinham). Ao mesmo tempo, acompanhamos a efervescência musical dos Estados Unidos na década de 1950. Não por acaso, temos uma forte intertextualidade literária e musical neste romance.
A cultura hippie também é retratada com tintas fortes: uso abusivo do álcool e das drogas (em níveis até então inéditos na própria literatura de Jack Kerouac), sexo livre (erotização acentuada), misticismo, anticonsumismo/anticapitalismo, busca pela liberdade existencial (daí a vontade de pegar a estrada o tempo inteiro e de viver de maneira nômade), repúdio ao casamento e aos relacionamentos amorosos convencionais, importância maior dos amigos/comunidade alternativa do que da família e flerte com o anarquismo. Só é possível entender os conflitos afetivo-psicológicos de Leo (ficar ou não ficar com Mardou?) se você compreender o ambiente e as crenças da personagem. O interessante em “Os Subterrâneos” é que a cultura hippie ficou apenas no contexto da trama e não foi alçada ao papel de protagonista, como ocorreu em “On The Road”, por exemplo. Além disso, esse é um dos poucos livros de Kerouac que não é um road story (acredite se quiser, mas Leo Percepied não realizou nenhuma viagem ao longo de quase 150 páginas!).
Por falar em ambiente e no contexto narrativo, o racismo é peça fundamental nesse drama. Não apenas os Estados Unidos eram uma nação segregada racialmente como o narrador-protagonista de “Os Subterrâneos” também era um homem muito preconceituoso. Além de racista, ele era misógino e homofóbico. Isso fica claro no próprio discurso de Leo Percepied. Há passagens assustadoramente preconceituosas e indelicadas (muitas de cunho sexual sobre a namorada negra). Se ele falava dessa maneira da mulher que amava, fiquei imaginando o que ele não falava das outras pessoas...
Por isso, saiba que “Os Subterrâneos” é capaz de chocar os leitores. Nesse sentido, Percepied age mais como um anti-herói do que como um herói convencional. Ao final da leitura, fiquei me questionando se Mardou Fox era mesmo desequilibrada psicologicamente, como foi retratada ao longo de toda a obra, ou se era seu namorado um louco tão depravado que a via equivocadamente dessa maneira. Juro que me inclinei mais para a segunda opção.
De qualquer maneira, a Mardou Fox é uma ótima personagem. Ao mesmo tempo em que é bonita, inteligente, séria, carinhosa, honesta e paciente, Mardou é descrita como transloucada, pobre, ingênua, insegura, pouco confiável e (aí vai um spoiler, cuidado!) capaz de trair o namorado. A combinação das características desses dois protagonistas (o vagabundo insensível e a louca sentimental) é o que movimenta a trama de “Os Subterrâneos”.
Esse livro de Jack Kerouac lembra muito os romances que canalizam o pior lado dos homens e das mulheres, apesar de aspirarem falar de seus amores. Além do já citado “Primeiro Amor”, de Samuel Beckett, lembro de cabeça de “Memórias do Subsolo” (Editora 34), de Fiódor Dostoiévski, “Complexo de Portnoy” (Companhia das Letras), de Philip Roth, “A Filha Perdida” (Intrínseca), de Elena Ferrante, e “Dom Casmurro” (Ática), de Machado de Assis. Todos esses títulos navegam no pior do que há nos corações humanos.
Mesmo com todas as polêmicas que possui e mesmo tendo sido escrito tão rapidamente (normalmente um convite para a baixa qualidade), “Os Subterrâneos” é melhor do que “On The Road” e “Cidade Pequena, Cidade Grande”, os trabalhos anteriores de Jack Kerouac. Esse terceiro romance do autor beat indicava o amadurecimento de sua prosa e o enriquecimento estético e narrativo de seu texto literário.
O Desafio Literário de abril irá prosseguir no próximo sábado, dia 18, com o post sobre “Os Vagabundos Iluminados” (L&PM Pocket), o quarto romance de Jack Kerouac. Curiosamente, o livro “Os Vagabundos Iluminados” também foi publicado em 1958, mesmo ano do lançamento de “Os Subterrâneos”. Não perca os novos capítulos da investigação sobre a literatura de Jack Kerouac no Bonas Histórias.
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