Existem muitas definições do que é um clássico literário. Esse tema já foi debatido aqui no Bonas Histórias algumas vezes. Lembro, por exemplo, do post à respeito do livro “Por que Ler os Clássicos” (Companhia das Letras), de Italo Calvino, que falava sobre tal questão no Desafio Literário de 2016. Para mim, um livro clássico é, em poucas palavras, aquele que já sabemos boa parte de sua história antes mesmo de lê-lo. Como isso é possível? A explicação é simples: sua trama está tão disseminada em nossa cultura (se não fosse assim, não seria um clássico, né?) que sua narrativa é amplamente conhecida, até mesmo pelos não leitores. Então qual o motivo para se ler este tipo de publicação? Porque ela ainda sim nos reserva ótimas surpresas, além de ser na maioria das vezes de ótima qualidade.
Estou tratando hoje desse assunto pois li, no começo dessa semana, o livro “O Homem Invisível” (L&PM Pocket), romance do inglês H. G. Wells. Lançada originalmente no final do século XIX, esta obra é considerada um clássico da ficção científica mundial. Sua história foi, ao longo do século XX, adaptada inúmeras vezes para o cinema, para a televisão e para o teatro. Há inclusive uma versão atual desta narrativa de H. G. Wells nos cinemas. O novo filme de “O Homem Invisível” (The Invisible Man: 2020) é ambientado nos dias de hoje em Nova York. Confesso que foi ao ver o título do longa-metragem nas salas de cinema que fiquei curioso para conhecer o original da literatura. Sou daqueles que correm para ler primeiro o livro e, só então, assistem tranquilamente à reprodução cinematográfica.
Além das adaptações, esta trama também deu origem a algumas variações, como a mulher invisível, a família invisível, o cachorro invisível (sim, você leu corretamente, há uma personagem canina invisível – algo típico dos desenhos animados da década de 1970!). Duvido que alguém em pleno século XXI não tenha visto uma trama ancorada em uma pessoa, um animal ou um objeto que se torne invisível e que, a partir daí, pode agir de maneira sorrateira pela sociedade.
Ao pegar “O Homem Invisível” para ler, minha principal dúvida era: teria o romance de H. G. Wells envelhecido bem em mais de um século de sua publicação? Depois de devorá-lo em uma única noite na última segunda-feira (fui da primeira à última página em pouco mais de cinco horas), a resposta é positiva. Sim, “O Homem Invisível” é uma ótima obra de ficção científica, capaz de surpreender o leitor contemporâneo.
Publicado em capítulos em uma revista semanal inglesa em 1897, “O Homem Invisível” foi lançado em livro naquele mesmo ano com grande êxito. Nessa época, H. G. Wells era um autor novato (“O Homem Invisível” é sua terceira criação ficcional), porém já impressionava positivamente os leitores e os críticos literários do Reino Unido. Curiosamente, “A Máquina do Tempo” (L&PM Pocket), de 1895, e “A Ilha do Dr. Moreau” (L&PM Pocket), de 1896, os livros precedentes, também estão entre os principais títulos do escritor inglês (e da história da ficção científica). As mesmas características se aplicam a “A Guerra dos Mundos” (Nova Fronteira), publicado em 1898 (sim, essa é a história que seria transformada em um programa polêmico de rádio por Orson Welles em 1938). Isso é o que eu posso chamar de um início de carreira extremamente marcante. Em seus primeiros quatro anos como autor ficcional, H. G. Wells já entrava para a história da literatura inglesa e internacional com quatro publicações memoráveis. Incrível!
Nascido na região metropolitana de Londres, em 1866, Herbert George Wells atuou como vendedor têxtil, jornalista, professor e historiador, além de escritor. Foi produzindo ficção científica que esse inglês, que faleceu aos 79 anos, se tornou conhecido mundialmente. Suas narrativas inovaram ao abordar temas que seriam mais tarde explorados pelos demais escritores (guerra nuclear, manipulação genética, conflitos com extraterrestres e formação de estados totalitários). É assustador imaginar alguém criando histórias sobre esses assuntos tão atuais ainda no século XIX...
A trama de “O Homem Invisível” começa em Iping, pacata cidade do interior da Inglaterra. Em pleno Inverno, um sujeito estranho vindo de Londres chega ao Coach and Horses, a hospedaria do Sr. e da Sra. Hall. O novo hóspede surge coberto da cabeça aos pés, não sendo possível ver seu rosto nem qualquer parte do seu corpo. O frio extremo parece ser a explicação para aquele excesso de roupa e de componentes de vestuário. O homem também vem com um conjunto interminável de bagagens. Em suas malas, há várias garrafas, livros e materiais de pesquisa de laboratório (tubos de ensaio, balanças de precisão e frascos com produtos químicos). Segundo comenta com os proprietários da hospedaria, ele trabalha com pesquisas experimentais e exige privacidade para realizar suas atividades. Contudo, o que chama mais a atenção dos Hall logo de cara é a maneira agressiva e muito mal-educada do visitante se portar.
À medida que as semanas e os meses vão passando, o jeitão esquisito do sujeito começa a chamar à atenção dos demais habitantes de Iping. O clima de mistério vai se intensificando até que a população local descobre se tratar de um homem invisível (o que é uma grande surpresa para eles, mas não para o leitor, que sabe disso desde a leitura do título na capa do livro). E pior do que isso: o hóspede do Coach and Horses que tem o corpo transparente é suspeito de cometer roubos nas casas da cidade. É assim que ele consegue dinheiro para se sustentar. Perseguido pelos populares e pela polícia, o protagonista do romance consegue fugir de Iping.
Uma vez sozinho no campo, o homem invisível traça um plano macabro para dominar as cidades daquela região da Inglaterra. Segundo sua mente insana, é através da violência e de uma série ilimitada de maldades que ele conseguirá demonstrar o seu poder e poderá saquear os demais moradores. Assim, o homem invisível invade Port Stowe e, depois, Port Burdock, dois pequenos povoados rurais ingleses. Suas visitas nada amistosas causam pânico. A notícia chega aos jornais das principais cidades e da capital do país. Há muita gente que não acredita no que os jornalistas escrevem.
“O Homem Invisível” é um livro curtinho. Com 192 páginas, ele tem 29 capítulos (já incluindo o epílogo). O que faz sua leitura ser rápida é o bom texto e a ótima narrativa de H. G. Wells. São vários os pontos elogiáveis deste romance: seu começo objetivo, a excelente ambientação, o ritmo frenético da narrativa, a mudança constante de conflito à medida que a história avança, a mistura bem casada de humor, ação e terror (quase uma receita infalível para um thriller contemporâneo), a justificativa aparentemente factual para a condição física da personagem principal, a verossimilhança (acredite!) dessa história e a boa constituição do protagonista (um típico caso de um anti-herói). Debateremos cada um desses aspectos a seguir.
Repare nos três primeiros capítulos (“A Chegada do Estranho”, “As Primeiras Impressões do Sr. Teddy Henfrey” e “As Mil e Uma Garrafas”) deste livro. A maneira como seus textos são construídos é exemplar. Em apenas três dezenas de páginas, Wells consegue cativar o leitor e, ao mesmo tempo, construir o clima de mistério e terror que permeará toda a sua trama. Além disso, seu estilo de narrativa é direto e reto. Não há perda de tempo nem qualquer excesso. Por isso, uma vez iniciada esta leitura, é quase impossível de largá-la.
É até engraçado falar sobre isso, mas “O Homem Invisível” possui uma ótima ambientação. O clima de suspense e de terror é mantido mesmo com o leitor já sabendo o mistério do hóspede dos Hall. A graça desta história não está em saber o motivo que leva o protagonista a agir daquela maneira (todos nós já sabemos o porquê). O legal é ver como ele fará para manter seu segredo (no primeiro quarto do livro), como fará para fugir da população inconformada (no segundo quarto da obra) e, logo em seguida, como fará para colocar seu plano diabólico em prática (na metade final do romance). Conseguirá um homem invisível derrotar milhares (quem sabe milhões) de homens e mulheres visíveis?
O ritmo da narrativa de H. G. Wells é frenético. Sempre está acontecendo alguma coisa. O leitor não consegue respirar tranquilo. Prova maior disso é a mudança constante de conflitos. Na primeira parte do livro, temos um protagonista tentando esconder sua condição. Depois, temos sua fuga. E por fim, ele contra-ataca, disseminando o mal por onde passa. A partir daí, o conflito passa a ser: alguém conseguirá colocar um ponto final na aventura sanguinolenta do homem invisível por Port Burdock e região? Há várias e boas cenas de ação até descobrirmos a resposta final para o enigma do romance.
O jeitão leve e descontraído do texto de Wells também ajuda na criação da empatia entre leitor e obra/personagens. A narrativa do “O Homem Invisível” é muito engraçada. Apesar do clima de terror, há passagens cômicas e bastante espirituosas. Assim, humor, ação e terror se casam perfeitamente. Impossível não gostar de um romance com essas características.
E o que dizer, então, das explicações científicas dadas pelo autor para a condição da sua personagem principal, hein? H. G. Wells é simplesmente fantástico ao tentar provar para o leitor que tal condição pode sim ser possível. Ele usa um pouco de elementos científicos e muito (e coloca muito nisso) do seu poder de oratória/convencimento. O resultado é excelente. Eu fechei as páginas do capítulo em que o homem invisível justifica suas particularidades totalmente crente que isso é sim possível de acontecer de verdade (não ria de mim, por favor!). É ou não é o trabalho de um gênio literário?
A verossimilhança da trama (acredite, há!) é conseguida também com uma coletânea interminável de acertos narrativos. A impressão que tive é que o escritor inglês não deixou nenhuma ponta solta. A construção da credibilidade da sua história é feita com detalhes muito bem amarrados: o caminho da comida no interior do corpo do homem invisível, a reação dos cachorros à passagem do sujeito transparente, os espirros por causa do frio, as dificuldades de se andar descalço pelas ruas do interior da Inglaterra... Paro a descrição por aqui se não ficaria até amanhã escrevendo todos os detalhes da narrativa de Wells que lhe dão verossimilhança.
Por fim, não podemos deixar de falar da construção espetacular do protagonista deste romance. Surpreendentemente (ao menos para mim), Griffin (só descobrimos ser esse o nome do homem invisível na metade final da publicação – até então ele só era chamado de “a voz”, “o homem estranho” e “o homem invisível”) é um anti-herói (antes de começar esta leitura podia jurar que ele era o herói da trama). H. G. Wells desenvolveu aqui uma das figuras mais malévolas de sua carreira literária. O homem invisível é egoísta, insensível, mal-educado, violento, instável psicologicamente (tem acessos frequentes de raiva), antiético, larápio e ambicioso. Não dá para torcer por ele em hipótese nenhuma. O antagonista da obra (que adquire ares de herói) só aparece no finalzinho do livro. Trata-se do Dr. Kemp, médico e antigo colega de Griffin nos tempos de faculdade. É o doutor que tentará dar fim à saga assassina do protagonista do romance.
Gostei muito desta leitura. “O Homem Invisível” envelheceu muito bem e continua sendo uma história de ficção científica saborosa e surpreendente, mesmo com 123 anos de idade. Isso sim é o que podemos chamar de clássico literário!
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