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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 43 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

Foto do escritorRicardo Bonacorci

Livros: Tijucamérica – O futebol sobrenatural de José Trajano


Tijucamérica de José Trajano

Sabe quando você pega um livro para ler de maneira despretensiosa, sem esperar grande coisa dele, e no meio da leitura você repara que está diante de uma obra muito interessante?! Todo leitor experiente já deve ter passado por isso algumas vezes. Pois esse fato aconteceu comigo nesta semana. Comecei a ler “Tijucamérica” (Paralela), a segunda publicação ficcional de José Trajano, esperando algo simples e meramente banal. E não é que a publicação do jornalista esportivo, um dos mais famosos e bem-sucedidos de sua geração, é um romance sobre futebol muitíssimo saboroso. Para quem reclamava que não havia livros ficcionais de qualidade tratando do esporte mais popular do mundo, este ano já achei duas pérolas. Em janeiro, comentei aqui no Bonas Histórias, “O Drible” (Companhia das Letras), obra-prima de Sérgio Rodrigues. Agora tenho a felicidade de analisar “Tijucamérica”, minha mais nova descoberta nessa área.


José Trajano é mais conhecido do público como jornalista esportivo do que como escritor. Quem tem mais de 25 anos e gosta de esporte, na certa já viu muito o rosto e o nome dele na TV. Nascido no Rio de Janeiro e atualmente com 73 anos de idade, Trajano virou símbolo da ESPN Brasil, canal esportivo que ajudou a fundar em 1995 e que dirigiu até 2012. Sua imagem ficou muito associada aos programas Cartão Verde, da TV Cultura, na década de 1990, e Linha de Passe, da ESPN, nos anos de 2000 e 2010. Em ambas atrações, atuava como comentarista de futebol. Jornalista rabugento e eternamente inconformado com a realidade nacional e futebolística, José Trajano se meteu nos últimos anos em várias polêmicas, que culminaram com sua saída da ESPN em setembro de 2016. Pelo visto, o pessoal da emissora de Perdizes já não aguentava mais o mau humor e os chiliques homéricos do velho jornalista.


Na literatura, José Trajano estreou em 2014 com “Procurando Mônica” (Paralela), romance sobre um amor antigo não correspondido. “Tijucamérica” veio em seguida, lançado em 2015. Esta obra, por sua vez, mistura ficção e memórias do autor. Mais recentemente, o jornalista-escritor carioca publicou “Os Beneditinos” (Alfaguara), romance no estilo de “Tijucamérica”, que mistura passagens autobiográficas com fatos do futebol de ontem e de hoje.

José Trajano

Podemos sim dizer que “Tijucamérica” é uma narrativa híbrida. O livro apresenta simultaneamente uma retrospectiva dos anos de sucesso do América-RJ, o time do coração do escritor e que hoje oscila precariamente entre a primeira e a segunda divisões do Campeonato Carioca, e as lembranças saudosas da meninice do autor, que foi passada na Tijuca. Além disso, o romance traz uma criativa trama ficcional que tem como pano de fundo a história do futebol brasileiro do ponto de vista de um americano. Neste caso, americano é o torcedor do Ameriquinha, como o clube da Tijuca é carinhosamente chamado. Para completar, o autor ainda salpica elementos autobiográficos em sua história. O resultado é uma mistura bem azeitada que se aproxima muito da autoficção, um gênero literário cada vez mais comum.


“Tijucamérica” se passa no tempo presente (época em que o livro foi lançado). Trajano (sim, o autor é o narrador-protagonista da trama) realiza o sonho de todo torcedor fanático: vira presidente do seu time do coração. Para administrar o América-RJ, Trajano pede demissão da ESPN (até então ele ainda trabalhava lá) e se muda para a Tijuca, local que conhece como a palma de sua mão. Seus objetivos como mandatário principal do clube do coração são ousados: revitalizar a sede social da Rua Campos Sales (atualmente abandonada pelo descaso e pela passagem do tempo); reconstruir o antigo estádio do clube no bairro da Tijuca (ele foi demolido para a construção de um shopping e um novo campo foi erguido no distante bairro de Edson Passos, no município de Mesquita, na Baixada Fluminense); e montar uma equipe competitiva que traga novamente o troféu do Campeonato Carioca para a Tijuca (algo que não acontece desde a década de 1960).


As duas primeiras metas do novo presidente do Ameriquinha são fáceis de ser concluídas. Uma reforma na sede é iniciada para torná-la tão bonita quanto foi no passado. E o Estádio de Edson Passos começa a ser reconstruído em um terreno ao lado do clube social. O problema do narrador-protagonista é montar um elenco competitivo para o próximo estadual. Como Trajano conseguirá bons jogadores dispostos a vestir a camisa do América?! Sem alternativa e dinheiro em caixa, o presidente americano tem uma ideia um tanto amalucada: trazer de volta os principais jogadores e os melhores profissionais que trabalharam no clube no período dourado da agremiação. Vale lembrar que o auge do time aconteceu entre as décadas de 1930 e 1960. Como assim trazê-los de volta se eles já morreram?! Por meio de reuniões, sessões e trabalhos mediúnicos com os melhores videntes, mágicos, gurus, pais de santo, espíritas e macumbeiros do Rio de Janeiro, os grandes nomes do Ameriquinha reencarnam.

Livro Tijucamérica

Do dia para a noite, os 25 melhores atletas do time deixam o Além e voltam à vida. Além deles, Trajano pede o retorno dos melhores diretores, médicos e preparadores físicos que já passaram por Edson Passos. Afinal de contas, é preciso uma boa e experiente comissão técnica para levar o time a novas conquistas dentro de campo. Para completar, de lambuja, ainda retornam do Além Lamartine Babo, compositor do hino do clube, e Manduca, o torcedor-símbolo da equipe americana. Agora a trupe está completa mais uma vez.


Com essa equipe mágica e talentosa, Trajano acredita que o América-RJ está preparado para a disputa do próximo Campeonato Metropolitano do Rio de Janeiro. Conseguirão os lendários americanos vencer os poderosos rivais (Flamengo, Fluminense, Vasco da Gama e Botafogo) novamente em um torneio de turno único?! O plano engenhoso parece infalível, mas esconde alguns perigos que o leitor só descobrirá durante a leitura.


“Tijucamérica” é um livro sensacional. Ele possui 232 páginas que estão divididas em 32 capítulos (além de um prefácio de Aldir Blanc, outro tijucano célebre). Como seu texto é leve e muito engraçado, é possível ler esta obra em um único dia ou mesmo em duas noites consecutivas. Foi o que aconteceu comigo entre quinta e sexta-feira dessa semana. Admito que devorei as páginas do romance nas últimas noites.


O que faz desta publicação uma narrativa tão interessante?! Em primeiro lugar, temos uma mistura bem-casada entre ficção e realidade. Todas as personagens citadas pelo autor e os principais eventos rememorados pelo livro são verídicos, o que confere grande charme à trama. Diria até que mais interessante do que a história ficcional do livro é a recapitulação histórica do América-RJ e da Tijuca. É uma delícia percorrer as ruas do bairro, os acontecimentos da localidade e as façanhas do time do coração do autor durante a metade do século XX.

Livro Tijucamérica

Quando analisamos a história ficcional da obra, nos deparamos com um humor que oscila entre o pastelão e a ironia inteligente. De qualquer forma, ambas apresentam resultados excelentes, proporcionando boas risadas ao leitor. O humor escrachado surge das cenas inusitadas de magia, das confusões causadas na cidade do Rio de Janeiro pela reencarnação da antiga equipe da Tijuca e das mudanças de nome de personalidades conhecidas do futebol brasileiro. A ironia está relacionada aos métodos antiquados do preparador físico e do médico da década de 1950, às mudanças das regras do esporte e à nova arquitetura do Maracanã. Ao mesmo tempo que apresenta um retrato histórico muito bem-feito da Tijuca e do futebol nacional de 70 anos atrás, “Tijucamérica” também oferece graça ao leitor por comparar de maneira pitorescas as realidades de ontem e de hoje. É hilário notar como José Trajano utiliza alguns detalhezinhos de sua trama para potencializar o conflito do livro.


As intertextualidades futebolística, musical, literária, religiosa, televisiva e jornalística também são uma importante marca deste romance. “Tijucamérica” cita diretamente canções e livros que tratam do futebol. Sinceramente, não sei onde está a maior riqueza da obra de José Trajano: na retrospectiva literária das grandes publicações sobre futebol ou na análise das magistrais letras de músicas antigas (criadas para contar eventos saudosos do tempo em que Don-don jogava no Andaraí)? Para completar o acervo multicultural, há várias passagens sobre personalidades da TV e do jornalismo esportivo, além de menções a figuras de várias religiões. Curiosamente, a estratégia de Trajano é misturar em seu relato pessoas comuns do seu bairro e do seu clube com personalidades conhecidas nacionalmente. Com isso, a impressão que se dá é que os tijucanos e os americanos célebres são figuras muito mais famosas do que de fato são. Ótimo recurso!


Outro ponto impressionante de “Tijucamérica” é a reconstituição de época feita em sua narrativa. Não é errado classificarmos esta obra como um romance histórico. A trama leva o leitor efetivamente ao passado. Boa parte da ambientação é típica das décadas de 1950 e de 1960. Os produtos usados, as localidades visitadas, os hábitos, as crenças e os métodos de trabalho das personagens reencarnadas escancaram o choque temporal. O hiato entre o futebol (e o mundo) de ontem e de hoje é muito maior do que podemos cogitar.

José Trajano

Até do desfecho do romance eu gostei. Não me importei nem um pouco com a obviedade do seu desenlace (e põe obviedade nisso!) nem com a interminável festa dos jogadores americanos (que se estendeu por vários e vários capítulos). O único ponto que não entendi de “Tijucamérica” foi a escalação de jogadores antigos/desconhecidos pelos adversários do América. Como isso foi possível se só a equipe de Edson Passos havia reencarnado seu elenco? Achei muito estranha a não citação aos jogadores atuais dessas equipes, o que poderia ter deixado a narrativa das partidas do Campeonato Metropolitano ainda mais legal.


Em suma, quem gosta de futebol, quem curte romances bem-humorados, quem aprecia tramas históricas e quem não abre mão de uma narrativa inteligente, na certa irá adorar “Tijucamérica”. Esqueça o José Trajano chato, bravo e intransigente dos programas esportivos. Como escritor, ele é completamente oposto: leve, engraçado e extremamente inteligente. Se a crítica futebolística não perdeu muita coisa (infelizmente, Trajano já não acrescentava muito nos últimos anos para o jornalismo esportivo), a literatura nacional parece que ganhou um autor talentoso e criativo. Ainda bem que surgiu alguém para fazer companhia a Sérgio Rodrigues na produção de boas tramas ficcionais sobre futebol. Este tema merecia escritores com habilidade para produzir narrativas de qualidade. Bem-vindo José Trajano ao primeiro plano da literatura autoficcional.


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