Até meados de dezembro do ano passado, “Coringa” (Joker: 2019) era o grande favorito à conquista do Oscar de 2020. Para muitos críticos cinematográficos, o polêmico filme de Todd Phillips largava na frente na disputa às estatuetas de Melhor Filme, Melhor Roteiro Original, Melhor Diretor e Melhor Ator (Joaquin Phoenix). Afinal, não havia narrativa mais disruptiva, impactante e forte (leia-se ácida) concorrendo aos prêmios desta edição. Por isso, foi uma grande surpresa quando, no início de janeiro, “1917” (2019), longa-metragem anglo-estadunidense sobre a 1ª Guerra Mundial, levou para casa os principais prêmios do Globo de Ouro, uma espécie de prévia do evento da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Los Angeles. “1917” ganhou os prêmios nas categorias Melhor Filme Dramático e Melhor Diretor. De uma hora para outra, o favoritismo ao Oscar se invertia completamente.
Interessado em conhecer a nova menina dos olhos da crítica cinematográfica, fui ao Espaço Itaú de Cinemas no final de semana retrasado para conferir “1917”. Minha dúvida era se esta produção conseguia superar o filme de Todd Phillips em qualidade e em força narrativa. Confesso que saí da sessão de cinema de “1917” bastante impressionado (positivamente) com o que vi. Se a história em si de “Coringa” me parece mais impactante e recheada de nuances psicológicos, “1917” é, como produção cinematográfica, uma experiência mais ousada e completa. O drama épico ambientado no início do século XX apresenta um conjunto variado de inovações na arte de filmar: takes longos, quase sem cortes, câmera com movimentações inacreditáveis, ausência quase que absoluta de trilha sonora, fotografia impecável e clima permanente de tensão do início ao fim. O uso desses recursos é digno de intermináveis elogios. Na certa foi isso o que encantou o júri do Globo de Ouro e que pode arrematar os corações dos jurados do Oscar deste ano.
Lançado nos Estados Unidos e na Inglaterra em dezembro do ano passado, “1917” chegou aos cinemas brasileiros e nos demais países no final de janeiro. Por aqui, sua estreia aconteceu mais precisamente em 23 de janeiro. Com orçamento de US$ 100 milhões, o longa-metragem foi dirigido, produzido e roteirizado por Sam Mendes, diretor de “Beleza Americana” (American Beauty: 1999), “Estrada para Perdição” (Road to Perdition: 2002) e “007 - Operação Skyfall” (Skyfall: 2012). É verdade que Mendes contou com a colaboração de Krysty Wilson-Cairns na produção deste roteiro. No elenco principal de “1917”, curiosamente, não temos nenhum nome tão conhecido do grande público: George MacKay, Dean-Charles Chapman, Mark Strong, Andrew Scott, Richard Madden, Claire Duburcq, Colin Firth e Benedict Cumberbatch.
A história deste filme é aparentemente real. Ela foi contada a Sam Mendes por seu avô paterno, Alfred Mendes, que participou ativamente da 1ª Guerra. Alfred, que trabalhou depois como romancista, ouvira de colegas da sua época de soldado que dois cabos britânicos precisaram, em plena sangrenta disputa de trincheiras, avançar sozinhos para o lado inimigo. Nessa missão quase suicida, a dupla precisava enviar uma mensagem urgente para um batalhão avançado. Vendo o potencial de uma trama como esta, o cineasta inglês resolveu filmar as memórias do avô. É claro que Sam deu uma mexidinha aqui e outra ali na história para deixá-la mais interessante. A aprovação do projeto do filme ocorreu em junho de 2018. Dez meses depois, as filmagens começaram. Por dois meses, a equipe rodou as imagens na Inglaterra e na Escócia (apesar da história em si se passar na França).
O enredo de “1917” começa em 6 de abril do ano que dá título à produção. Naquela Primavera, os alemães, depois de três anos de guerra de trincheiras, resolveram se retirar da chamada Linha Hindenburg, que dividia os campos inimigos no norte da França. Porém, os Aliados não perceberam imediatamente esse recuo. Por isso, os cabos William Schofield (interpretado por George MacKay) e Tom Blake (Dean-Charles Chapman), integrantes do Oitavo Batalhão, são surpreendidos com uma ordem dada diretamente pelo General Erinmore (Colin Firth). A dupla deveria avançar sozinha pela linha inimiga para enviar uma mensagem para o Segundo Batalhão do Regimento de Devonshire. Na carta que os soldados carregavam estava a ordem do general para cancelar o ataque da manhã seguinte. Se eles não chegassem a tempo, 1.600 homens do Exército Aliado seriam massacrados pelos alemães, que prepararam uma emboscada contra os inimigos naquela região francesa.
A missão está, sem dúvida nenhuma, fadada ao fracasso. Os dois soldados britânicos sabem disso. Contudo, Tom Blake não se importa de colocar sua vida em risco. Seu irmão mais velho, o tenente Joseph Blake (Richard Madden), está servindo ao Segundo Batalhão e na certa será um dos mortos se a mensagem não chegar ao seu destino. É com o propósito de salvar o familiar e os colegas dele que Tom incentiva William, seu amigo, a seguirem juntos pelas linhas adversárias. Para piorar ainda mais a situação já delicadíssima da dupla, eles têm poucas horas para concluir sua missão. William Schofield e Tom Blake saem à tarde da sua trincheira e precisam chegar antes do amanhecer seguinte à floresta francesa onde estão os soldados do Segundo Batalhão. Além de enfrentarem os inimigos remanescentes, o desconhecimento do novo território e as armadilhas deixadas pelos alemães, os dois cabos precisam percorrer parte do caminho na escuridão tenebrosa da noite. É ou não é uma missão quase impossível?!
Com duas horas de duração, “1917” é o melhor filme de guerra que já assisti. Juro que pensei quando estava entrando na sala de cinema: lá vem mais um longa-metragem bélico igual a tantos outros. Na certa, este será muito parecido a “O Resgate do Soldado Ryan” (Saving Private Ryan: 1998), “Bastardos Inglórios” (Inglourious Basterds: 2009), “Apocalypse Now” (1979), “Platoon” (1986), “Fomos Heróis” (We Were Soldiers: 2002) ou “Até o Último Homem” (Hacksaw Ridge: 2016). Não! Pensar assim foi um ledo engano de uma alma pessimista que até então estava torcendo avidamente por “Coringa” no próximo Oscar. “1917” não é igual a nenhum exemplar de seu gênero.
Para começo de conversa, o grande mérito do novo filme de Sam Mendes está na maneira como sua história foi contada e, principalmente, na forma como sua produção foi filmada. Usando longos takes, quase sem cortes aparentes, a impressão que o espectador tem é de estar vendo uma única cena. Incrível esse recurso! A sensação é de estarmos acompanhando a dupla de protagonistas em tempo real. Juro que não sei como o cineasta conseguiu realizar essa proeza, mas que ela é fabulosa isso é! A cena inicial é um bom exemplo dessa ousadia (que permanece até o final). Em meio ao caos das trincheiras do Exército Aliado, Schofield e Blake caminham por um bom tempo sem que ocorra qualquer corte na cena. Eles têm como companhia inseparável uma câmera ligeira e com movimentos inusitados.
Por falar em câmera, repare na sua atuação (ela quase se torna uma personagem do longa-metragem). Sua agilidade e mobilidade são um capítulo à parte em “1917”. Tanto em ambientes claustrofóbicos como nas trincheiras quanto no descampado do interior francês, ela segue os protagonistas de um jeito um tanto peculiar. Sua proximidade cria um ar de intimidade com os soldados e sua movimentação potencializa o suspense e o drama retratados no filme. A câmera se desloca velozmente para todos os lados (sobe, desce, vai para a direita, vai para a esquerda, dá looping, recua, etc.). Grande parte da exuberante experiência visual que o público tem com esta produção passa diretamente pelo tipo de câmera escolhido (e pela ausência de cortes nas cenas).
A fotografia de “1917” também precisa ser muito elogiada. A recriação do clima histórico do início do século XX, o ambiente aterrorizante e insalubre dos campos de batalha, as escolhas acertadas para a filmagem noturna e as cenas de batalhas são primorosos. Junto com a fotografia, é preciso fazer menção honrosa ao figurino e à maquiagem. Esse trio (fotografia, figurino e maquiagem) permite que as inovações promovidas pela câmera e pela ausência de cortes potencializem o drama das personagens. Simplesmente ESPETACULAR!
Note que boa parte do filme de Sam Mendes não possui trilha sonora. Esse expediente aumenta ainda mais a tensão dramática do longa-metragem, em um novo acerto do cineasta. Por falar em tensão, prepare-se para ficar com o coração na mão por quase duas horas. Desde a primeira cena, “1917” cria um clima de suspense, terror e angústia que não se dissipará mais. Somente quando as letrinhas dos créditos subirem na tela, o público poderá respirar minimamente aliviado. Por isso, é preciso sangue-frio para acompanhar esta aventura. O mais legal é que não faltam surpresas nem sustos. Confesso que dei alguns pulos da poltrona e soltei alguns gritos de desespero na sala de cinema (espero que ninguém tenha percebido).
O elenco também não se sai nada mal em “1917”. Meu destaque vai para o jovem George MacKay. O britânico de 27 anos consegue transmitir, ao mesmo tempo, o pânico de estar em um campo de batalha (repare em seus olhares de medo) e a perseverança dos destemidos (repare em sua postura corporal altiva). É incrível acompanhar a transformação de sua personagem ao longo do filme (jornada do herói). Daqui para frente, MacKay deverá receber mais papéis de protagonista do que de coadjuvante, invertendo a lógica de sua carreira até aqui. Como protagonista estreante de uma grande produção do cinema internacional, ele se saiu muitíssimo bem.
Até mesmo a inverossimilhança típica das tramas épicas em que nada de grave parece acontecer com o herói é minimizada com detalhes formidáveis e extremamente humanos da rotina no campo de batalha. A cena em que os soldados britânicos enaltecem a tecnologia das trincheiras e dos armamentos alemães é uma prova disso (a grama do vizinho sempre é mais verde, independentemente da situação). Outra é quando William Schofield é salvo por Tom Blake de uma explosão. As conversas corriqueiras e banais da dupla de cabos do Exército Aliado, enquanto percorrem sozinhos o território inimigo, ajudam na construção do clima de realidade nua e crua. Nada mais humano do que dois jovens conversarem e fofocarem sobre coisas do dia a dia, mesmo em plena guerra.
Em suma, quem é melhor: “Coringa” ou “1917”? Vamos aos fatos. Como história em si, “Coringa” é muito mais interessante do que “1917”. Acompanhar o drama genuíno do vilão de Batman, vítima da violência e do bullying da sociedade, é uma experiência narrativa mais rica. Agora, quando olhamos para ambas as produções pela perspectiva da estética cinematográfica, o filme de Sam Mendes bate tranquilamente o de Todd Phillips. “1917” é uma experiência visual muito mais original e impactante. O público fica extasiado com o que vê na tela. Nunca duas horas passaram tão rapidamente quanto na sala de cinema de “1917”. Assim, não dá mais para torcer por “Coringa” sabendo das qualidades absurdas de um concorrente melhor tecnicamente. Parece um tanto óbvio, agora, quem irá levar as estatuetas de Melhor Filme (“1917”) e Melhor Direção (Mendes). Restará para “Coringa” as chances de prêmio em Melhor Roteiro Original (Todd Phillips) e Ator (Joaquin Phoenix).
Assista, a seguir, ao trailer de “1917”:
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