A linguagem é o oitavo elemento da narrativa, também usado para a formulação do Modelo de Análise Estilística de Romances (MAER). A ideia deste post da coluna Teoria Literária é discutir em profundidade a linguagem literária. No mês passado, vale a pena recordar, vimos aqui no Bonas Histórias o conceito de narrador, o sétimo elemento da narrativa ficcional. Em outubro, será a vez de tratarmos do discurso, o nono componente. Até o final de 2019, teremos percorrido todos os elementos de uma narrativa.
A linguagem é o conceito estudado epistemologicamente pela linguística. Segundo Celestina Magnanti (2001), a utilidade clássica atribuída à linguagem é de externalizar o pensamento de um indivíduo. Para a literatura, sua função está em materializar verbalmente a intenção do autor. Para Tzvetan Todorov, a literatura não pode estar desvinculada da linguagem:
[...] A obra literária não existe fora de sua literalidade verbal, e esta pode ter um papel predominante, mesmo no nível das estruturas narrativas [...]. A obra literária propõe sempre - de modo mais ou menos explícito - uma concepção da linguagem e da palavra; a linguagem é uma das constantes temáticas da obra literária [...]. Enfim, a linguagem intervém também a título de modelo. Mais precisamente, a teoria literária deve inscrever-se no quadro da semiótica, a ciência geral dos signos (2016, p.20-21).
Para Todorov, a literatura é uma extensão da aplicação de algumas propriedades da linguagem. Por ser uma obra de arte estritamente verbal, a ficção literária é influenciada diretamente pela linguagem utilizada pelo autor. Portanto, a literatura tem, ao mesmo tempo, a linguagem como seu ponto de partida e como seu ponto de chegada. Essa posição particular da arte literária determina sua relação umbilical com alguns conceitos linguísticos. Essas duas áreas do conhecimento (literatura e linguística) caminham muitas vezes paralelamente (2016, p.53-55).
Dessa maneira, para Todorov, a linguagem deve ser objeto de análise de quem se volta para o estudo estilístico da literatura. "O caráter sistemático das relações entre os elementos decorre da própria essência da linguagem. Essas relações constituem objeto da investigação literária propriamente dita" (2016, p.33).
Para o MAER, a linguagem pode ser encarada como as características idiomáticas típicas ou específicas de um autor ao se expressar literariamente. Apesar de o idioma ser o mesmo para os escritores de determinado país, cada um o utiliza de uma maneira particular, imprimindo suas próprias características ao texto.
Assim, analisar a literatura de João Guimarães Rosa sem se aprofundar nos aspectos da língua portuguesa utilizada por ele é empobrecer o estudo estilístico desse autor. O mesmo ocorre com um trabalho investigativo sobre José Saramago. A forma de narrar do escritor português, principalmente em relação à pontuação, estão no cerne de qualquer estudo literário realizado acerca do Nobel de Literatura de 1998.
Apesar de Guimarães Rosa e Saramago possuírem o mesmo idioma materno, a literatura dos dois autores é completamente distinta quanto à linguagem. O estilo do texto é totalmente diferente um do outro, assim como da grande parte dos escritores de língua portuguesa. Conhecer o que torna específica a linguagem de um cânone entra no hall de responsabilidades do analista literário que faz seu estudo utilizando o Modelo de Análise Estilística de Romances.
São quatro os pontos em relação à linguística que devem ser avaliados pelo MAER: o código linguístico, os tipos de linguagem, o sentido textual e a variação linguística.
1. Código Linguístico:
O romance é escrito, essencialmente, em um determinado idioma pelo autor. A partir desse texto original, a obra literária pode ganhar traduções para as demais línguas. Além disso, dependendo de quão antigo for o romance, pode ser que haja a necessidade de adequá-lo à gramática atual de seu próprio idioma. Um livro de Machado de Assis, escrito originalmente no século XIX e atualmente vendido nas livrarias, muito provavelmente tenha passado por esse processo de "modernização".
O analista literário precisa compreender como aconteceu essa dinâmica de alteração do texto a partir da "saída das mãos do autor". Estudar um romance em sua língua original é completamente diferente de investigá-lo a partir de traduções em línguas estrangeiras. Em muitos casos, as traduções realizadas descaracterizam o estilo do escritor e sua proposta artística.
No livro A Arte do Romance, Milan Kundera, romancista tcheco famoso principalmente nas décadas de 1980 e 1990, conta as experiências aterradoras que teve ao verificar as traduções de A Brincadeira, sua primeira obra ficcional:
Em 1968 e 1969, A Brincadeira foi traduzido em todas as línguas ocidentais. Entretanto, quantas surpresas! Na França, o tradutor reescreveu o romance enfeitando meu estilo. Na Inglaterra, o editor cortou todas as passagens de reflexão, eliminou os capítulos musicológicos, mudou a ordem das partes, recompôs o romance. Um outro país. Encontro meu tradutor: ele não sabe uma só palavra de tcheco. "Como você traduziu?". Ele responde: "Com meu coração", e me mostra minha foto que tira de sua carteira. Ele era tão simpático que quase cheguei a acreditar que se podia realmente traduzir graças a uma telepatia do coração. Na verdade, era mais simples: ele tinha traduzido do texto reescrito em francês, assim como o tradutor na Argentina. Um outro país: traduziram do tcheco. Abro o livro e por acaso caio no monólogo de Helena. As longas frases, cada uma das quais ocupa em minha escrita um parágrafo inteiro, estão divididas em uma multidão de frases simples... O choque causado pelas traduções de A Brincadeira me marcou para sempre. Felizmente, mais tarde, encontrei tradutores fiéis. Mas também, infelizmente, menos fiéis (2016, p.123-124).
Por décadas, as obras do russo Fiódor Dostoiévski foram traduzidas no Brasil por versões francesas e inglesas ao invés dos originais russos. Assim, boa parte do texto de Dostoiévski chegou descaracterizada aos leitores brasileiros. Apenas em 2001, a Editora 34 resolveu relançar os clássicos do russo (Crime e Castigo, O Idiota, Os Demônios, Os Irmãos Karamázov, O Duplo, O Adolescente, Bobók, etc.) em uma tradução direta e mais fidedigna (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 7-8).
Por isso, é importante o analista literário verificar se seu estudo estilístico está sendo feito diretamente sobre as obras originais do escritor analisado. O ideal é recorrer sempre aos originais. Devem-se evitar as traduções, principalmente aquelas feitas de outras traduções e que não se preocupam em manter todos os elementos narrativos da obra mestre.
2. Tipos de Linguagem:
Além do idioma, o analista literário deve verificar qual o tipo de linguagem foi utilizado pelo romancista ao produzir sua obra. Há três tipos de linguagem possíveis: a culta, a coloquial e a vulgar. A escolha do tipo de linguagem por parte do artista das letras pode ter várias finalidades diferentes: aproximar emissor e receptor da comunicação, chocar os leitores, aumentar a veracidade do texto, contextualizar melhor a narrativa, caracterizar com mais fidelidade as personagens, aumentar a tensão dramática das cenas, entre outras tantas possibilidades.
A linguagem culta é aquela que segue fielmente as regras da gramática normativa. Essa é a língua ensinada na escola e usada nos livros didáticos e pelos veículos de comunicação. Ela reflete prestígio social e cultural aos seus usuários. É mais comum de ser usada na comunicação escrita formal. Fernando Pessoa, poeta português, usava a linguagem culta para construir suas obras. O poema Maria: Amo como o Amor Ama foi construído dessa forma. Todos os versos estão adequados às normas gramaticais do idioma utilizado (português) naquela época (início do século XX). Veja o início do poema:
MARIA:
Amo como o amor ama.
Não sei razão pra amar-te mais que amar-te.
Que queres que te diga mais que te amo,
Se o que quero dizer-te é que te amo?
Não procures no meu coração...
Quando te falo, dói-me que respondas
Ao que te digo e não ao meu amor.
Quando há amor a gente não conversa:
Ama-se, e fala-se para se sentir.
Posso ouvir-te dizer-me que tu me amas,
Sem que mo digas, se eu sentir que me amas.
Mas tu dizes palavras com sentido,
E esqueces-te de mim; mesmo que fales
Só de mim, não te lembras que eu te amo.
Ah, não perguntes nada, antes me fala
De tal maneira, que, se eu fora surda,
Te ouvisse toda com o coração.
A linguagem coloquial, também chamada de linguagem popular, é aquela usada de maneira espontânea pelas pessoas no dia a dia. Ela está presente nas conversas entre amigos, na discussão familiar e nos programas de televisão mais informais. A linguagem coloquial não segue necessariamente as regras da gramática normativa e é carregada de gírias e de vícios de linguagem. Os vícios mais comuns são: pleonasmo, cacofonia, barbarismo e solecismo. A linguagem coloquial é mais comum na comunicação oral informal. Na literatura, ela é usada para tornar a linguagem mais fiel à rotina de personagens e leitores. Por exemplo, o estilo debochado de Macunaíma, romance de Mário de Andrade, deve-se, em parte, a sua linguagem coloquial, recheada de oralidade e de gírias. Veja, no trecho a seguir, o teor popular da construção textual. A sensação do leitor é que esse texto foi extraído de uma fala e não de um registro escrito:
Uma feita a Sol cobrira os três manos duma escaminha de suor e Macunaíma se lembrou de tomar banho.
Porém no rio era impossível por causa das piranhas tão vorazes que de quando em quando na luta pra pegar um naco de irmã espedaçada, pulavam aos cachos pra fora d’água metro e mais. Então Macunaíma enxergou numa lapa bem no meio do rio uma cova cheia d’água. E a cova era que-nem a marca dum pé-gigante.
Abicaram. O herói depois de muitos gritos por causa do frio da água entrou na cova e se lavou inteirinho. Mas a água era encantada porque aquele buraco na lapa era marca do pezão do Sumé, do tempo em que andava pregando o evangelho de Jesus pra indiada brasileira. Quando o herói saiu do banho estava branco louro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. E ninguém não seria capaz mais de indicar nele um filho da tribo retinta dos Tapanhumas.
Nem bem Jiguê percebeu o milagre, se atirou na marca do pezão do Sumé. Porém, a água já estava muito suja da negrura do herói e por mais que Jiguê esfregasse feito maluco atirando água pra todos os lados só conseguiu ficar da cor do bronze novo. Macunaíma teve dó e consolou:
— Olhe, mano Jiguê, branco você ficou não, porém pretume foi-se e antes fanhoso que sem nariz.
Maanape então é que foi se lavar, mas Jiguê esborrifava toda a água encantada pra fora da cova. Tinha só um bocado lá no fundo e Maanape conseguiu molhar só a palma dos pés e das mãos. Por isso ficou negro bem filho da tribo dos Tapanhumas. Só que as palmas das mãos e dos pés dele são vermelhas por terem se limpado na água santa. Macunaíma teve dó e consolou:
— Não se avexe, mano Maanape, não se avexe não, mais sofreu nosso tio Judas!
O terceiro tipo de linguagem é o vulgar. Aqui, vulgar não se refere a dizer "palavrões" (palavras de baixo calão) ou expressões ofensivas. O vulgar é relativo à linguagem que afronta abertamente os padrões gramaticais do idioma. Esse tipo de texto ou discurso, portanto, está fora dos padrões da linguagem culta, opondo-se totalmente a essa. A linguagem vulgar é a fala típica das pessoas analfabetas ou semianalfabetas. Ela possui estruturas gramaticais “confusas” e tem frequentemente barbarismos como vício de linguagem. Na literatura brasileira, muitas vezes, os escritores retratavam os indígenas e os escravos pela linguagem vulgar. Assim, conseguiam expressar a pouca educação formal ou a falta de erudição dessas personagens (em um evidente caso de preconceito linguístico).
O analista literário precisa identificar os diferentes tipos de linguagem utilizada no romance para compreender a intenção narrativa do escritor.
3. Níveis de sentido:
O texto literário, como qualquer expressão linguística verbal, possui duas camadas indissociáveis: a forma e o conteúdo. A primeira refere-se ao que aparece graficamente exposto - percebido aos olhos do leitor - e a segunda compreende a interpretação da mensagem recebida - percebido pela mente do leitor (MOISÉS, 2014, p.32). Ferdinand de Saussure chamou essas denominações, respectivamente, de significante e significado (XAVIER, 2014). Para o linguista suíço, o significante é a imagem acústica (cadeia de sons) do signo linguístico, residindo no plano formal. O significado, por sua vez, é o conceito do signo linguístico, calcado no plano conceitual. A junção dos dois forma o signo (SAUSSURE, 2013).
De acordo com Maussaud Moisés, a análise da linguagem literária deve englobar tanto o significante quanto o significado:
Vê-se, portanto, que a análise do significante deve levar ao significado, já que está ao seu serviço: temos de analisar o significante para compreender o significado; partimos sempre do significante para o significado, pois que não há outra maneira de perquiri-lo. E a explicação dessa necessidade reside em que o significante veicula o significado, assim como a expressão implica no conteúdo (2014, p.32).
Ao analisar as palavras do texto literário, o analista pode se pautar pelas orientações objetivas dos dicionários. Afinal, essas coletâneas de unidades lexicais possuem o significado concreto de boa parte dos termos de um idioma. Contudo, nem sempre o artista das letras se expressa conforme as orientações convencionais das gramáticas em voga. As palavras do texto literário podem camuflar sentidos subliminares, escondidos em camadas mais profundas do signo linguístico (MOISÉS, 34).
Assim, faz-se necessário estudar os níveis de sentido do texto literário. O texto literário possui basicamente dois níveis de sentido: o denotativo e o conotativo.
O sentido objetivo dos vocábulos, conforme eles vêm expressos nos dicionários, é chamado de significado denotativo, ou simplesmente de denotação. A denotação é uma interpretação mais direta do texto, situando-se na camada mais superficial da mensagem. A identificação do significado denotativo é tarefa preliminar do analista literário ao estudar um romance. Para tal, é necessária uma investigação prévia de aspectos culturais e históricos das palavras (MOISÉS, 2014, p. 35).
Muitas vezes, o sentido denotativo de um léxico muda com o tempo e de acordo com a região geográfica. O termo "gentil" empregado por Luís Vaz de Camões em sua poesia no século XVI tem um significado totalmente distinto daquele empregado por Ignácio de Loyola Brandão em sua ficção no século XX. "Gentil" para Camões significava "formoso" e "belo", enquanto para o cronista, contista e romancista brasileiro o mesmo termo, quatro séculos mais tarde, significa "amável" e "educado". Se voltarmos para a Idade Média, "gentil" ainda tinha o sentido de "alguém descendente da nobreza" ou "pessoa proveniente de boa família".
"Farol" pode possuir também diferentes significações denotativas dependendo do local onde é pronunciado ou escrito. Essa palavra significa essencialmente uma construção junto ao mar, geralmente no formato de torre, que emite um sinal luminoso para a orientação naval durante a noite. É esse o sentido, por exemplo, desse termo no conto Os faroleiros, presente na obra Urupês, de Monteiro Lobato. É também esse o sentido do termo até hoje em todo o Brasil. Entretanto, na cidade de São Paulo, ao longo do século XX e XXI, "farol" também é um sinônimo de "semáforo". "O carro parou no farol", "o pedestre atravessou o farol no vermelho" e "o acidente foi provocado por problemas nos faróis" são expressões comuns na capital paulista.
O outro sentido que as palavras podem adquirir em um texto literário é o conotativo. A conotação é o significado interpretativo de um termo, expressão ou frase, estando desvinculada das orientações expressas objetivamente pelos dicionários. Dependendo do contexto, da situação, do emprego da palavra, da intenção do autor e da habilidade literária do escritor (e do leitor), uma palavra adquire novos sentidos além daqueles formais.
A poesia é quem mais se utiliza do sentido conotativo para construir seus textos, mas é possível encontrar a conotação em muitas narrativas em prosa. O sentido conotativo também é chamado de sentido figurado e é encontrado em vários outros tipos de textos fora da literatura: peças publicitárias, letras de músicas, nas conversas cotidianas, etc.
Na novela de Italo Calvino, O Visconde Partido ao Meio, é possível encontrar a conotação em muitas passagens do enredo. O fato do protagonista, o Visconde Medardo di Terralba, ter se dividido ao meio após ser atingido na guerra é um claro indício de sentido figurado do texto. Ao invés de morrer ao ter o corpo partido exatamente ao meio (lado direito e lado esquerdo), a personagem de Calvino se transformou em duas pessoas de características totalmente opostas. A trama só faz sentido se for analisada de forma conotativa (indicando o quanto o homem/ser humano é fragmentado, incompleto e dicotômico).
A mesma situação se passa com Dolores, a personagem principal do romance O Tigre na Sombra, de Lya Luft. A protagonista, quando criança, enxergava um filhote de tigre de olhos azuis no quintal de casa. Aquele animal selvagem era o bichinho de estimação imaginário da garota. A escolha de um felino pela autora gaúcha para ser o companheiro de Dolores possui um significado conotativo. O tigre é uma fera, um animal selvagem. Apesar de um bicho bonito e simpático aos olhos humanos (em um primeiro momento, se parece com um gato – animal doméstico e pacífico), ele também é extremamente violento, possuindo a capacidade de dilacerar as pessoas. Para entender o sentido da presença do tigre no romance de Lya Luft é necessário fazer uma análise conotativa do termo empregado e não apenas uma investigação denotativa.
Quais os sentidos (denotativo e conotativo) do texto literário? Essa pergunta deve ser respondida pelo analista literário.
4. Variação Linguística:
A variação linguística é um fenômeno de ocorrência comum, presente nos diferentes idiomas do planeta. Ela se caracteriza pelo conjunto de particularidades idiomáticas produzidas por um grupo de falantes específico de uma mesma língua. "Por isso, chamamos de Variedades Linguísticas as mudanças ocorridas na língua de acordo com as condições sociais, culturais, regionais e históricas em que é utilizada" (DE OLIVEIRA, BOVO, DE ROSÁRIO e MELO, 2014, p.135).
Os principais idiomas do mundo possuem variações em sua forma que podem ser reflexos de fatores históricos, geográficos, socioeconômicos, etários e culturais. O castelhano falado na Argentina é diferente do espanhol falado no México, que por sua vez é diferente do idioma falado na Espanha. O inglês falado nos Estados Unidos é diferente do idioma usado na Austrália, que por sua vez é diferente do da Inglaterra. O mesmo fenômeno ocorre com o português. Brasileiros, portugueses, moçambicanos e angolanos falam um mesmo idioma, mas com características próprias.
Por sua vez, o português falado no Brasil por um adolescente é diferente daquele falado por um idoso. O jeito de se expressar de alguém com estudos é diferente daquele que nunca frequentou a escola, apesar dos dois sujeitos serem naturais da mesma cidade e terem a mesma idade. A forma de se expressar do advogado no instante em que está trabalhando no tribunal é totalmente distinto de quando essa mesma pessoa conversa com os amigos na hora do happy hour no bar.
Existem basicamente quatro tipos de variação linguística: a histórica, a social, a geográfica e a grupal (DE OLIVEIRA, BOVO, DE ROSÁRIO e MELO, 2014, p.135 -143). A variação histórica é relativa às modificações ocorridas ao longo do tempo. A leitura de um romance original do século XVIII, sem as adaptações à linguagem e à ortografia atuais, pode surpreender o leitor contemporâneo, além de dificultar sua leitura. Em alguns casos, são muitas as diferenças encontradas no idioma de "ontem" e de "hoje". No romance Outlander, da norte-americana Diana Gabaldon, isso fica evidente. A protagonista da trama, a enfermeira inglesa Claire Randall, vivia no ano de 1945 até ser transportada magicamente para a Escócia do ano de 1743. Uma das dificuldades de Claire no novo lugar foi a diferença histórica da língua inglesa. O jeito de se falar no século XX é totalmente distinto da maneira de se falar no século XVIII. Um dos desafios da autora foi retratar a variação linguística em sua literatura.
A variação social é aquela relacionada ao grupo social do qual o indivíduo faz parte. Há alterações no vocabulário, na pronúncia, na sintaxe e na morfologia dependendo da classe social da pessoa. Muitas vezes, a literatura expõe essas diferenças. Em Doze Anos de Escravidão, narrativa autobiográfica do norte-americano Solomon Northup, a linguagem utilizada pelas personagens indicava claramente a sua posição social. Veja o seguinte trecho do romance em que o dono da fazenda e senhor de escravos, Epps, discute com uma das mais bonitas negras da sua propriedade, Patsey. A jovem saiu da fazenda justamente na hora da colheita do algodão porque não recebera da patroa enciumada, na noite anterior, uma barra de sabão para lavar-se. Assim, ela teve de ir buscar o artigo na fazenda do Sr. Shaw, um “bondoso” vizinho.
- A sinhá não me deu sabão pra eu lavá as minha rôpa, como deu pra todo mundo - disse ela - E o sinhô sabe por quê! Intão, eu fui até a casa de Harriet para arranjar um pedaço.
Dizendo isso, ela tirou uma barra de sabão de um bolso em seu vestido e exibiu-a ele:
- Foi por isso que eu fui até a fazenda do Shaw, Sinhô Epps - ela continuou - Deus sabe que foi só por isso!
- Você está mentindo, sua sirigaita negra! - berrou Epps.
- Eu não minto, sinhô. Nem se o sinhô me matá, não vou dizê ôtra coisa.
- Ah, eu vou pegar você de jeito! Vou ensinar você a não ir à fazenda do Shaw! Eu vou acabar com esse seu nariz empinado! - ruminou ele, articulando as palavras por trás de seus dentes cerrados (NORTHUP, 2014, p.182).
É possível reparar em alguns erros gramaticais na frase da escrava Patsey. Contudo, não se trata de equívocos do escritor nem do seu tradutor (muito menos do revisor). Esse recurso é para expressar a linguagem utilizada pela negra inculta e sem escolaridade, que contrastava com a do patrão, mais escolarizado e culto. Esse é um ótimo exemplo de variação linguística do tipo social.
A variação geográfica é o conjunto de mudanças linguísticas ocasionadas em decorrência de particularidades regionais. No Brasil, o jeito de falar do nordestino é diferente da maneira de falar do sulino. Em Minas Gerais, a forma de se expressar do belo-horizontino apresenta algumas particularidades quando comparada a fala do mineiro do interior do estado. Através de Jeca Tatu, um dos seus personagens mais famosos, Monteiro Lobato pode inserir na literatura nacional a maneira do caboclo do interior de São Paulo de falar. Em Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto expõe variantes linguísticas tipicamente do sertão nordestino. Já Erico Veríssimo apresenta a linguagem gaúcha ao longo da série literária O Tempo e o Vento. Sempre que o autor/narrador do romance apresenta palavras, expressões e termos típicos de uma determinada localidade, ele está evidenciando as variantes linguísticas regionais.
Além da variação linguística histórica, social e geográfica, há a variação de grupo. Dependendo do grupo social que a pessoa frequenta, ela adquire um linguajar típico do seu grupo de referência. Os policiais falam de forma distinta dos médicos, que por sua vez falam diferentemente dos estudantes do ensino médio, que também falam de uma maneira diversa das donas de casa. Cada grupo específico possui suas particularidades. Na internet, um indivíduo pode se comunicar de um jeito totalmente diferente quando conversa informalmente em uma sala de bate-papo ou quando responde a um e-mail profissional. Nick Hornby é um popular escritor inglês que ficou mundialmente conhecido na década de 1990. Seu livro de estreia na literatura comercial foi Febre de Bola, no qual narra sua experiência passional como torcedor do time londrino do Arsenal. Veja um trecho dessa obra:
Depois de Brady se foi, o Arsenal testou uma penca de meias, alguns deles competentes, outros não, todos condenados pelo fato de não serem a pessoa que tentavam substituir: entre 1980 e 1986, Talbot, Rix, Hollins Price, Gatting, Peter Nicholas Robson, Petrovic, Charlie Nicholas, Davis, Williams e até o centroavante Paul Mariner jogaram naquele meio-campo (2013, p.174).
O texto de Febre de Bola é totalmente voltado para as pessoas que gostam e entendem de futebol. As expressões "meias" e "centroavante" são típicas do linguajar desse grupo de indivíduos. Para entender a relação de Brady com o Arsenal e com a série de jogadores citados por Hornby é preciso, obrigatoriamente, conhecer o futebol britânico da década de 1980. Ou seja, trata-se de uma narrativa com uma variante linguística de um grupo específico de pessoas: os torcedores ingleses de futebol.
Todas as alterações idiomáticas sofridas pela língua são normais de ocorrer e acontecem sistematicamente, estando muitas vezes evidenciadas na literatura. É importante o analista literário estar atento para identificar as variações linguísticas nos textos investigados.
Em Pornopopéia, Reinaldo Moraes apresenta Zeca (José Carlos Ribeiro), seu narrador-protagonista, como um cineasta decadente viciado em sexo, bebidas e drogas. Desbocado e inconsequente, Zeca é uma personagem politicamente incorreta. Boa parte da experiência de leitura da obra de Moraes passa pelo tipo de linguagem anárquica (e com muitos elementos de oralidade e de gírias) utilizada pelo autor. Confira o parágrafo de abertura deste romance:
Vai, senta o rabo sujo nessa porra de cadeira giratória emperrada e trabalha, trabalha, fiadaputa. Taí o computinha zumbindo na sua frente. Vai, mano, põe na tua cabeça ferrada duma vez por todas: roteiro de vídeo institucional. Não é cinema, não é epopeia, não é arte. É – repita comigo – vídeo institucional. Pra ganhar o pão, babaca. E o pó. E a breja. E a brenfa. É cine-sabujice empresarial mesmo, e tá acabado. Cê tá careca de fazer essas merdas. Então, faz, e não enche o saco. Porra, tu roda até pornô de quinta pro Silas, aquele escroto do caralho, vai ter agora “bloqueio criativo” por causa dum institucionalzinho de merda? Faça-me o favor (2009, p.15).
Com este post sobre a linguagem, já estamos chegando à parte derradeira do debate dos 11 elementos da narrativa. Até o final do ano, veremos aqui na coluna Teoria Literária os três componentes que faltam: discurso, textualidade e tipologia. Não perca o encerramento dessa discussão proposta pelo Bonas Histórias em 2019. Até mais!
Bibliografia:
BONACORCI, Ricardo. Análise Literária dos Romances de Rubem Fonseca - Investigando a Nova Literatura Brasileira. Projeto de Iniciação Científica. Varginha: Centro Universitário do Sul de Minas (UNIS-MG), 2019.
DE OLIVEIRA, Ana Amélia Furtado; BOVO, Ana Paula Martins Corrêa; DO ROSÁRIO, Alex Donizeti; MELO, Carina Adriele Duarte de. Guia de Estudo – Língua Portuguesa: Leitura e Produção de Texto. Varginha: GEaD-UNIS/MG, 2014.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. São Paulo: Editora 34, 2011.
KUNDERA, Milan. A Arte do Romance. 1a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
MAGNANTI, Celestina. O que se faz com a linguagem verbal? Revista Linguagem em (Dis)curso, volume 1, número 1, jul./dez. 2001. Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), Tubarão. Disponível em: <http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/index.php/Linguagem_Discurso/article/view/165/179>
MOISÉS, Massaud. A Análise Literária. 19a ed. São Paulo: Cultrix, 2014.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. 25 ed. São Paulo: Cultrix, 2003.
TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas. 5a ed., Coleção Debates, São Paulo: Perspectiva, 2013.
XAVIER, Glaúcia do Carmo. Significante e Significado no Processo de Alfabetização e Letramento - Contribuições de Saussure. Belo Horizonte: Cadernos CESPUC, n.24, 2014. Disponível em < http://periodicos.pucminas.br/index.php/cadernoscespuc/article/viewFile/11089/8904>. Acesso em 05 de outubro de 2017.
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