“Caim” (Companhia das Letras) é o décimo sexto romance de José Saramago. Este foi o último livro publicado em vida pelo escritor. A obra chegou às livrarias oito meses antes do falecimento do português. É verdade que “Claraboia” (Companhia das Letras), uma narrativa produzida na década de 1950 e que ainda não tinha sido editada, e “Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas” (Companhia das Letras), uma história inacabada, foram lançados postumamente por ordem dos familiares do autor. Entenda-se por autorização dos familiares a decisão pessoal de Pilar del Río, última esposa do escritor e presidente da Fundação José Saramago. Mesmo assim, “Caim” é visto pela maioria dos críticos literários como efetivamente o romance derradeiro da carreira de Saramago.
Curiosamente, este é o único livro do Desafio Literário de abril que foi lançado após a entrega, em 1998, do Prêmio Nobel ao escritor português. Todos os demais romances analisados no Bonas Histórias neste mês, “Memorial do Convento” (Companhia das Letras), “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (Companhia das Letras), “A Jangada de Pedra” (Companhia de Bolso), “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (Companhia das Letras) e “Ensaio sobre a Cegueira” (Companhia das Letras) precedem o recebimento da honraria máxima da literatura mundial. Escolhi ler “Caim” justamente por isso. Queria conhecer uma produção de Saramago da fase final de sua carreira. E nada melhor do que uma obra que gerou grande polêmica na época de sua publicação.
Lançado em outubro de 2009, “Caim” dá sequência a tradição de José Saramago de recontar a história da Bíblia segundo sua interpretação particular dos fatos. Se o escritor português narrou o Novo Testamento em “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, livro de 1991 (para mim a melhor obra saramaguiana), em “Caim” a proposta é relatar os acontecimentos do Velho Testamento. Portanto, “Caim” e “O Evangelho” estão relacionados tanto em conteúdo como em forma (são obras muito parecidas/complementares), apesar do hiato temporal de dezoito anos entre suas publicações.
Assim que chegou às livrarias de Portugal e da Europa, este livro provocou uma enxurrada de críticas por parte da comunidade católica. Padres, bispos e teólogos da Igreja Católica foram unanimes em reprovar o conteúdo do romance, que segundo eles ia completamente na contramão dos verdadeiros preceitos bíblicos. Até o calmo e muito cordial Papa Bento XVI entrou na polêmica sobre “Caim”. Segundo Joseph Ratzinger, José Saramago foi infeliz e mal-intencionado ao fazer uma interpretação do Velho Testamento, algo que é função exclusiva da Igreja.
Acredito que essas reações já eram esperadas pelo escritor. De certa forma, elas foram muito parecidas à receptividade de “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, que colocou o nome do autor português na lista das figuras mais odiadas pelos dirigentes católicos. Na minha concepção, José Saramago deve ter se deliciado com os comentários exaltados e as ofensas dos religiosos ao seu novo trabalho literário. Já no final da vida e cada vez mais convicto de seu ateísmo, o autor devia estar cansado das homenagens e do reconhecimento do público. Basta ver o documentário “José e Pilar” (José y Pilar: 2009) para entender um pouco desse contexto. O que ele queria mesmo, creio eu, era uma nova polêmica. E mais uma vez, conseguiu isso com “Caim”.
Contudo, engana-se quem ache que este livro tenha despertado apenas a ira dos religiosos. O romance se transformou rapidamente em best-seller. Em Portugal, “Caim” vendeu mais de 70 mil unidades em menos de duas semanas (e há quem ainda acredite que os conterrâneos de Saramago não gostavam de sua literatura). Na Espanha, a tiragem inicial de 130 mil exemplares foi esgotada em poucos meses. No Brasil, o romance entrou na lista dos mais comercializados no final de 2009 e ali permaneceu ao longo de todo o ano seguinte.
O enredo deste romance aborda as principais passagens do Velho Testamento. A trama começa com a criação de Adão e Eva por Deus. A partir daí, o casal vive tranquilamente no Jardim do Éden, sem precisar trabalhar, comendo e bebendo em abundância e sem ter a preocupação de vestir roupas. Eles fazem sexo sem culpa, tendo iniciado essa prática tão logo seu criador virou as costas pela primeira vez. Exatamente, por isso, Adão e Eva não entendem a revolta divina pelo consumo de um simples fruto. A indignação da dupla não convence o destemperado Deus, que os expulsa mesmo assim do Jardim do Éden.
Uma vez na Terra, Adão e Eva descobrem que não são os únicos da sua espécie. Na verdade, eles não foram os primeiros seres humanos do planeta, mas sim o resultado de uma nova experiência realizada pelo Criador. Aos poucos, o casal se habitua a vida mundana e tem três filhos, Caim, Abel e Set.
Caim e Abel são bons amigos (Set é simplesmente ignorado nesta história). Eles se ajudam mutuamente e são companheiros inseparáveis. Contudo, uma desavença com Deus (sempre Ele), provoca uma séria discussão entre os irmãos. Nessa briga, Caim acaba matando Abel. Desesperado, o assassino culpa o Senhor pela tragédia familiar. Deus admite parte da culpa, mas não isenta Caim do que ele fez. Por isso, o rapaz é condenado a vagar pelo mundo com uma mancha em sua testa que indica seu pecado aos demais homens.
Com vergonha de ter matado o bom Abel, Caim foge de casa sem se despedir dos pais. Depois de muito caminhar, o protagonista do romance chega a um local conhecido como Terra de Nod. Ali, ele se torna amante de Lilith, a esposa do dono do lugar, e passa a viver com ela no palácio. Ao descobrir que sua amante está grávida, Caim entende que é a hora de partir. Ele recebe de Lilith o melhor jumento do palácio para que faça sua jornada sem dificuldades. E, assim, começa a grande viagem de Caim para diferentes regiões e épocas do planeta. Essas aventuras mágicas ocorrem tanto em períodos do passado quanto do futuro.
De certa forma, Caim testemunhará os principais acontecimentos do Velho Testamento. Ele verá a Torre de Babel ser destruída por inveja divina. Estará junto de Abraão quando este tentar matar seu filho Isaac. Visitará a cidade de Sodoma no momento de sua destruição. Irá ao Monte Sinai quando Moisés for se reunir com o Senhor. Acompanhará o padecimento de Job. E verá Noé e sua família construírem a grande arca. Não é errado pensarmos em Caim como o Forrest Gump do Velho Testamento de José Saramago. Ao presenciar ao longo dos anos o comportamento de Deus em cada uma dessas situações delicadas, Caim terá uma visão crítica e extremamente negativa do Criador.
“Caim” é um romance espetacular. Ele tem apenas 174 páginas que estão divididas em 13 capítulos. É, portanto, o livro mais enxuto de Saramago que analisamos neste Desafio Literário. Diferentemente dos demais trabalhos do português, é possível concluir a leitura de “Caim” em um único dia. Foi o que fiz na última quarta-feira. Devo ter levado de cinco a seis horas para percorrer todas as suas páginas. Comecei a leitura à tarde e a concluí à noite.
Para ser sincero, antes de ler “Caim”, achei que este livro seria uma mera cópia de “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, uma das obras-primas da literatura portuguesa. Realmente, José Saramago utiliza todos os recursos do romance de 1991 nesta sua última publicação. Entretanto, o resultado não é simplesmente mais do mesmo. “Caim” é excelente por exibir qualidades próprias. Ele é tão bom quanto “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, chegando a ser até mesmo melhor em alguns pontos. Se Saramago foi genial ao retratar o Novo Testamento, ele não ficou atrás quando apresentou sua visão pouco ortodoxa do Velho Testamento.
O humor do texto é um dos aspectos que mais chamam a atenção do leitor. É possível soltar algumas boas gargalhadas durante esta leitura. O bom humor de Saramago é construído pela ironia fina do autor, pela mistura de elementos do presente e do passado e, acredite se quiser, pelo uso de palavrões (uma contradição em uma narrativa sacra). A ironia maior está na relação de Deus com seus seguidores, os judeus. A mistura temporal se faz com o acréscimo de elementos do mundo atual ao texto histórico. Assim, temos citações, por exemplo, ao conforto dos hotéis modernos, às informações do Guia Michelin, às características do mitológico unicórnio e a passagem do Zeppelin Hindenburg. Hilário! E os palavrões que saltam do texto são para expressar toda a indignação do protagonista com os acontecimentos que ele está testemunhando. Dessa forma, esse recurso não diminui a qualidade do romance, mas o torna mais engraçado e, principalmente, verossímil (quem não soltaria xingamentos se estivesse no lugar de Caim, hein?).
José Saramago reconstrói, neste romance, a narrativa bíblica com brilhantismo. Nota-se um processo de estudo aprofundado e de construção inteligente da velha história. Repito mais uma vez o que já havia dito no post de “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”: a invenção narrativa de Saramago é tão fantástica que acabei achando-a melhor do que a original. A partir de agora, ao menos para mim, o Velho Testamento será o que li em “Caim” e não o que a Bíblia apresenta. Afinal, a versão do português faz muito mais sentido do que o conteúdo das velhas escrituras, além de conter um texto sublime.
Há cenas incríveis neste livro. As melhores estão no capítulo 1 (criação de Adão e Eva por Deus e a expulsão do casal do Jardim do Éden), no capítulo 6 (Salvamento de Isaac no instante em que ele seria assassinado por Abraão, seu pai) e no capítulo 12 (Diálogo entre Caim, Deus e Noé sobre aspectos técnicos da construção da Arca). Nesses trechos, juro que ri sem parar. Saramago é divertidíssimo!
Um dos pontos que mais me agradou em “Caim” foi a limpeza do seu texto. Sua narrativa é direta, sem qualquer floreio. O autor vai direto ao ponto, não perdendo tempo com cenas inúteis ou com comentários supérfluos. Trata-se de uma característica da fase final da carreira de Saramago. Infelizmente, seus livros iniciais, mesmo aqueles famosos da década de 1980 e 1990, eram truncados e com excessos de cenas e comentários.
Quanto ao estilo, “Caim” segue o mesmo padrão que notabilizou a literatura de seu autor: sinais de pontuação baseados em regras próprias, frases longas, parágrafos gigantescos, discurso (diálogos das personagens) incorporado à narrativa (voz do narrador) e narrador com liberdade para comentar os fatos exibidos. A única diferença que notei foi o registro dos nomes próprios com a primeira letra minúscula. Sinceramente, não me lembro de ter visto essa particularidade nos romances anteriores. Acho que os nomes das personagens dos outros livros do português tinham sim a primeira letra maiúscula (como reza a convenção).
Em relação à narrativa, três pontos chamaram minha atenção: a crueldade ainda maior de Deus, a construção do protagonista e as características da viagem efetuada por ele. O Deus retratado em “Caim” é um vilão ainda mais sanguinário, impetuoso, destemperado, sádico e injusto do que aquele estampado em “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”. Não dá para se identificar com Ele, muito menos respeitá-lo. Por outro lado, Caim é um improvável herói romântico. Diferentemente das páginas da Bíblia, no romance de Saramago ele apresenta muitas qualidades positivas. Caim só matou Abel, por exemplo, por culpa de Deus, que o levou a essa atitude radical. E a viagem do protagonista através do tempo (passado, presente e futuro se misturam) deixou o romance ainda mais dinâmico (seria Caim um Marty McFly bíblico?!). Dessa maneira, Saramago não precisou se ater a ordem cronológica dos fatos na hora de relatar a viagem da sua personagem principal.
A conclusão deste romance é similar à obtida em “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”: Deus católico/judeu é o grande vilão da trama e os homens são as vítimas de suas maldades. Obviamente, trata-se de um ponto de vista mais pertinente à concepção ateísta. Não à toa, os católicos ficaram tão raivosos com José Saramago. O português debochou da versão bíblica, que convenhamos é recheada de passagens fantasiosas e totalmente incoerentes.
Incrível como José Saramago continuou lúcido, divertido e produtivo até o final da vida. Perto de completar 88 anos de idade, seu talento para a produção literária permaneceu inalterada. “Caim” é um livro surpreendente. Seu texto alia uma narrativa inteligente e bem-humorada de uma história já bem conhecida. Só mesmo a genialidade de Saramago para reconstruir o Velho Testamento de maneira tão sublime.
Feitas as críticas individuais dos seis livros de Saramago, o Desafio Literário agora parte para a conclusão dos estudos sobre o escritor português vencedor do Nobel. Na próxima segunda-feira, dia 29, o Bonas Histórias apresentará uma análise abrangente da carreira e do estilo literário de José Saramago. Antes disso, vou comentar o documentário “José e Pilar” (José y Pilar: 2009), filme sobre o relacionamento do escritor com sua segunda esposa, Pilar del Río. Este post será publicado no sábado, dia 27. Confira os últimos capítulos da investigação sobre a literatura de José Saramago. Não perca!
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