Dos seis livros de Xinran que li para o Desafio Literário de agosto, o único que não gostei foi “O que os Chineses Não Comem” (Companhia das Letras). Para ser mais exato em meu julgamento, considerei esta obra péssima! Se você ainda não conhece a literatura de Xinran, pelo amor de Deus, não comesse por esta publicação. Deixe-a, na melhor das hipóteses, para o final de sua lista de prioridades. Na certa, eu teria julgado mal a autora se não conhecesse os demais títulos de seu portfólio e, inadvertidamente, tivesse lido isoladamente este livro. E olha que quem está falando isso é um fã assumido da escritora e jornalista chinesa. Contudo, mesmo sendo um admirador do trabalho de Xinran, não posso deixar de apontar quando ela escorrega. E aqui ela derrapou feio!
“O que os Chineses Não Comem” é uma coletânea de 51 crônicas. Esses textos foram publicados originalmente no The Guardian entre junho de 2003 e setembro de 2005. Vale lembrar que Xinran teve uma coluna quinzenal no tradicional periódico inglês por muitos anos. Nas páginas do The Guardian, ela pôde apresentar aos ocidentais um pouco da cultura e da realidade de seu país natal. Ao menos era essa a proposta de sua coluna. Nestas crônicas, Xinran abordou assuntos variados envolvendo seus conterrâneos: como os chineses se cumprimentam (jamais se beijam no rosto, por exemplo), como encaram e debatem a sexualidade, o que comem e bebem nas refeições, qual o peso da família em suas vidas, como encaram a profissão, etc.
Foi no final de 2005 que surgiu a ideia de transformar as crônicas do jornal em um livro. E, assim, em 2006, foi lançado no mercado editorial “O que os Chineses Não Comem”. Este é o terceiro título da carreira literária de Xinran. A obra veio em seguida de “As Boas Mulheres da China” (Companhia de Bolso), de 2003, e “Enterro Celestial” (Companhia das Letras), de 2004.
Como já falei algumas vezes no Bonas Histórias, a crônica é um gênero narrativo muito perigoso quando tirado das páginas dos periódicos e levado às páginas dos livros. Apesar de ser um apaixonado por este tipo de texto quando veiculado nos jornais e nas revistas (sim, ainda os leio diariamente!), sei o quanto as coletâneas de crônicas podem se tornar defasadas, enfadonhas e desconectadas da realidade. Isso ocorre principalmente quando elas são lidas fora de contexto ou depois de muitos anos de publicadas. Esse é o tipo de conteúdo que, infelizmente, acaba se deteriorando muito rapidamente na maioria das vezes.
Para quem se recorda do Desafio Literário do ano passado, acabei tecendo duras críticas às obras de crônicas de Lya Luft. “Pensar é Transgredir” (Record) e “Em Outras Palavras” (Record), por exemplo, são títulos chatíssimos e de conteúdo muito pobre. Nem mesmo o grande Machado de Assis se salva quando analisamos suas crônicas pela perspectiva contemporânea. Elas são, muitas vezes, incompreensíveis e nada atrativas para os leitores atuais.
No caso de “O que os Chineses Não Comem”, são cinco os seus maiores problemas. Em primeiro lugar, o conteúdo das colunas de Xinran é extremamente besta. Sim, besta! A escritora fala da sua surpresa de voltar à China e olhar os cardápios dos restaurantes de lá. E o Kiko?, o leitor se pergunta. Ela esclarece se nas casas chinesas têm ou não têm piscina. E quem tem uma curiosidade tão boba como essa, hein? A coleção de banalidades beira a infantilidade. Pensei que jamais fosse falar isso um dia, mas o teor deste livro de Xinran é insignificante para a maioria dos leitores. Se a proposta era apresentar as diferenças culturais entre ocidentais e chineses de forma atrativa, a autora passou longe, muito longe de seu objetivo.
Outra questão delicadíssima é o preconceito explícito de Xinran, algo, até então, não evidenciado nos outros livros da autora, mas que causam um certo mal-estar nesta coletânea de crônicas.
Um exemplo emblemático disso aparece quando ela diz categoricamente que só conheceu dois homens chineses em toda sua vida que fossem bons indivíduos. E o restante dos seus conterrâneos, algo em torno de 800 milhões de habitantes? Eles são classificados pela escritora como maus elementos. E o que os dois seres excepcionais, as raras exceções, fizeram para ganhar esse posto de bons chineses? Um desconhecido se preocupou com Xinran, no saguão do aeroporto, quando ela derrubou café na calça. E o segundo, marido de uma amiga, cozinhava em casa para a família. Generalizar o comportamento de um povo inteiro ou de parte dele é um preconceito digno de pena. Para piorar, justificar as exceções com tamanha futilidade é duvidar do bom senso de quem lê as páginas do material.
Os comentários preconceituosos não são direcionados apenas aos homens. Com as novas gerações, Xinran comete deslizes ainda mais grosseiros. Por não entender os comportamentos e a mentalidade dos jovens, principalmente em relação à sexualidade, a escritora muitas vezes acaba sendo ofensiva ou simplesmente desrespeitosa com eles. Do seu ponto de vista, os moços e as moças atuais são fúteis e desmiolados por pensar exclusivamente em sexo, isso antes do casamento. É muito puritanismo para o meu gosto.
Outro ponto que incomoda o leitor minimamente exigente é quando Xinran passa a ver tudo apenas do ponto de vista chinês, como se algumas coisas acontecessem só em seu país natal. As mulheres antigamente não conversavam com ninguém sobre sexo. Há algumas leis que pegam em uns lugares e não em outros. A sociedade é profundamente machista. Esses fatos, infelizmente, não se aplicam apenas à China, mas também a muitos outros lugares do mundo. A falta de uma visão mais abrangente prejudica em muito as abordagens e as argumentações da autora.
Não gostei também da estética visual do livro. Nenhuma das crônicas tem título. Seus nomes são simplesmente as datas de suas publicações no The Guardian. E, paradoxalmente, cada crônica tem um subtítulo. Como assim, os textos não têm título, mas têm subtítulos?! Sim, essa é uma das bizarrices desta obra. A escritora não se preocupou em nomear seus textos. Se fosse uma redação do ENEM, com certeza os avaliadores iriam tirar pontos (muitos pontos) por isso.
Para finalizar, muitas crônicas de “O que os Chineses Não Comem” são textos repetitivos. Ou seja, já o lemos em outros livros da escritora. Isso fica evidente logo de cara. A primeira crônica da coletânea, por exemplo, é uma parte integral do livro “As Boas Mulheres da China”. Sim, a escritora copiou o que já havia publicado em outra obra e passou para esta. E esse não é um fato isolado. A sensação é que já lemos em algum lugar boa parte do conteúdo apresentado neste livro. Não há nada pior do que o leitor se sentir enganado pelo autor, que tenta reciclar seus textos antigos dando uma pequena maquiada.
Depois de um bombardeio de críticas negativas tão pesadas, alguém pode me perguntar se há algo de positivo em “O que os Chineses Não Comem”? Sim, com certeza tem. A última página do livro é o seu ponto alto. Ao chegar ali, o leitor solta um suspiro de alívio e abre um sorriso por ter, enfim, concluído uma das leituras mais chatas de sua vida (no meu caso, uma das leituras mais enfadonhas do ano). Nunca Xinran foi tão superficial, fútil, pueril, preconceituosa e repetitiva como aqui.
Ainda bem que esta obra é uma exceção dentro do portfólio literário da escritora chinesa. Para provar isso, nas próximas semanas trarei as demais publicações de Xinran. Neste domingo, analisarei “As Filhas Sem Nome” (Companhia das Letras), um romance baseado em fatos reais. Não perca a sequência do Desafio Literário deste mês!
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