Neste final de semana, li o livro mais famoso de Raduan Nassar. "Lavoura Arcaica" (Companhia das Letras) é uma novela sombria e impregnada com uma atmosfera tensa. Este drama psicológico é pesadíssimo, abordando temas polêmicos, utilizando-se de linguagem poética e possuindo um desfecho trágico. Trata-se daquele tipo de leitura que pode agradar ou não o leitor, mas que certamente irá marcá-lo para sempre. Impossível ficar indiferente a este exemplar único e contundente de nossa literatura contemporânea.
Raduan Nassar nasceu no interior de São Paulo e foi ainda adolescente para a capital do estado, onde estudou Direito e Filosofia. Trabalhou em várias áreas, entre elas o jornalismo. "Lavoura Arcaica", publicado em 1975, foi sua obra de estreia na literatura. Três anos mais tarde, Nassar publicou outra novela, "Um Copo de Cólera" (Companhia das Letras). O sucesso da crítica foi quase imediato. Suas duas ficções foram traduzidas para outros idiomas e ganharam o mundo. No final da década de 1990 e no início dos anos de 2000, tanto "Lavoura Arcaica" quanto "Um Copo de Cólera" foram adaptados para o cinema.
Apesar do grande sucesso, Raduan Nassar preferiu abandonar, na década de 1980, a literatura e voltar para as suas origens, se mudando para o campo. Lá passou a trabalhar no cultivo e na administração de sua propriedade rural. Com um comportamento recluso e pouco afeito a dar entrevistas, o culto e os mistérios em volta deste escritor, hoje com 80 anos, só aumentaram ao longo do tempo.
No ano passado, a Companhia das Letras lançou "Obras Completas", com as duas novelas de Nassar e um livro de contos, além de textos mais recentes do autor. Para coroar, o escritor paulista ainda ganhou, em 2016, o Prêmio Camões, considerado a principal honraria da literatura em língua portuguesa. A entrega deste prêmio aconteceu no mês passado e foi marcada por uma baixaria sem precedentes. O escritor, muito amigo de personalidades do Partido dos Trabalhadores (PT), discutiu, em plenos discursos oficiais, com o ministro da Cultura sobre os rumos da política nacional, deixando a literatura em último plano.
Em "Lavoura Arcaica", conhecemos o relato em primeira pessoa de André, jovem que havia fugido recentemente da casa de sua família. Cansado da tirania paterna, do trabalho pesado na propriedade rural e da opressão conservadora no campo, o protagonista decidiu ganhar o mundo, abandonando seus pais e seus numerosos irmãos.
Quando o livro começa, André está atirado no chão de um hotel vagabundo de uma cidade interiorana se masturbando. Neste momento, seu irmão mais velho, Pedro, bate à porta. A missão do primogênito é convencer o morador daquele lugar a retornar para o seio familiar. Nas palavras do visitante, os pais e os irmãos ficaram muito abalados com o repentino desaparecimento de André. O sofrimento de todos é digno de pena. Por isso, na opinião de Pedro, o irmão deveria retornar imediatamente para a propriedade rural da família.
André, por sua vez, não parece arrependido. Ele não quer retornar para casa. Sua decisão não foi intempestiva, como o irmão mais velho imagina, e parece ancorada em sólidos motivos. Para justificar sua saída do lar, André começa a explicar para Pedro todas as razões que o levaram a desaparecer da vista da família. Ao mesmo tempo em que conversa com Pedro, o personagem principal rememora sua vida até então, destacando seus dramas e seus traumas desde a infância. No cerne de sua fuga, está a paixão incestuosa pela irmã Ana.
O que temos, a partir de então, é o retrato nu e cru de um jovem abalado por um amor impossível, por desejos sexuais heterodoxos e com muita raiva da figura paterna. André opõe-se à sociedade patriarcal, à cultura conversadora e religiosa do campo, às tradições da família, ao autoritarismo e ao trabalho agrário. Sua ira com a vida que levava na propriedade rural da família é tão grande que o narrador consegue contestar até mesmo as normas mais básicas das sociedades humanas. Por isso, não se assuste com as cenas em que você irá se deparar. Não é à toa que o livro começa com a masturbação do protagonista.
"Lavoura Arcaica" é uma novela dramática de cunho psicológico com 196 páginas. O primeiro aspecto que chama a atenção do leitor neste livro é o estilo narrativo. As frases parecem ter sido extraídas diretamente dos pensamentos do narrador. Por isso, o constante fluxo de ideias e a ausência de pontuação. Às vezes, este recurso lembra um pouco o jeito de escrever de José Saramago. Contudo, as diferenças para a literatura do português estão no jeito despudorado e sem filtro de Raduan Nassar contar sua história e na temática delicada e bastante polêmica.
Além disso, o texto desta novela tem forte carga poética. O narrador apresenta seus dramas de maneira lírica, como se estivesse sonhando acordado. Admito que tive dificuldades para saber o que era realidade e o que era imaginação na narrativo do personagem principal (o que deixa a novela mais interessante). Por exemplo, a cena de sexo com Ana (sim, o protagonista transa com a irmã!) pode ser interpretada como um devaneio de André ou como um fato real, fruto da paixão genuína entre os dois irmãos (falei ou não falei que você, leitor, iria se deparar com situações delicadas e inimagináveis!).
Assim, o segundo elemento marcante desta obra é a quantidade extensa de temas polêmicos. A personagem principal deste livro não tem receio nem pudor para abordar quaisquer assuntos que queira debater. Em "Lavoura Arcaica", temos cenas de masturbação, sexo com animais, incesto, filicídio, contestação aos valores familiares da sociedade rural e profanação religiosa. Trata-se de um violento tapa na cara da cultura conservadora. A narrativa desta novela está totalmente ancorada nestas práticas condenadas pela maior parte das pessoas, mas que são corriqueiras e admiradas pelo narrador da trama.
Curiosamente, este livro torna-se, ao mesmo tempo, uma obra poética e um enredo tenebroso. O ambiente inteiro do livro é pesado e carregado de sentimento de culpa e inadequação por parte do protagonista. A angústia do narrador cria uma atmosfera sombria.
A novela é dividida em duas partes: "Partida" e "Retorno". Na parte inicial, temos André e Pedro discutindo os motivos da fuga do irmão mais novo, a tristeza familiar com esta ausência e a possibilidade de volta da "ovelha negra". E na parte final, temos efetivamente o retorno de André para sua casa. Porém, a alegria inicial deste regresso irá provocar novos dramas. Rapidamente todos na casa são afetados direta ou indiretamente pela manutenção do rancor e da raiva do rapaz. As discussões são mais intensas e o final é trágico.
André é com certeza um das personagens mais ricas (e polêmicas, também) da literatura brasileira moderna. Compreendê-lo não é uma atividade fácil. Não se assuste se você precisar ler duas ou três vezes o livro para conseguir entender toda a sua complexidade. Também não admire se você ficar, a todo instante, mudando seu sentimento em relação a esta personagem. É comum termos sensações variadas em relação ao protagonista ao longo do drama.
Portanto, "Lavoura Arcaica" não é uma leitura fácil. Você pode ou não gostar desta narrativa, porém uma coisa é certa: ela irá marcá-lo. Sem sombra de dúvidas, este é um dos exemplares mais intrigantes da nossa literatura.
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