Ele chega à casa com uma mala modesta. Observa bem a grande construção de nove quartos recém-levantada. Um desses é o dele, o maior, e para lá se dirige. A vista é parca, apenas mais alguns barracos, o que torna seu novo lar destoante. A casa em questão é uma das poucas que se parecem com uma, com água encanada, paredes e janelas, assim como o quartel de Mano Metido.
O lugar tinha incríveis cento e vinte metros quadrados, lenço para alguns, latifúndio para os moradores de Macambúzios. Fora construída com um propósito muito salutar, que é o estudo do ser humano, ciência que Epifânio domina há quinze anos. Ele é professor doutor com livre docência na Universidade Estadual Armação de Búzios, e sempre adotou métodos pouco ortodoxos.
Ainda nos tempos de Sorbonne, costumava colocar vinte poodles em uma mesma sala com um pitt-bull, para verificar qual raça de cães era superior. Os caninos teriam, então, a oportunidade de mostrar se tinham o sentimento de compaixão para com sua espécie, fazendo uso, ou não, de seu instinto primordial, o de caçador.
Partindo da mesma lógica, ele resolveu estudar os seres humanos, colocando-os em uma mesma casa, na qual teriam dois meses para testar um grande instinto humano, a liberdade. Acontece que Epifânio sempre teve dúvida quanto ao limite da liberdade, ou seja, a linha tênue e maleável entre a liberdade e a libertinagem.
Colocou oito homens que não se conheciam anteriormente para lá morar, cada um em seu quarto. O próprio professor iria morar junto, e conviveria com eles o tempo todo, sempre observando e raciocinando. Para trocar informações, tinha ao seu dispor mais dois professores da Universidade, e os três formavam o conselho deliberativo do experimento. Epifânio resolveu adotar Projeto Liberdade como nome do estudo, e para revistas internacionais de sociologia, divulgou-o como Freedom Experience, muito embora essa não seja a tradução correta.
No primeiro mês todos teriam de seguir regras estipuladas e bem claras. Eles assinaram um documento se comprometendo a segui-las, sob pena de serem expulsos. Por exemplo, teriam de trabalhar, o que foi fácil, pois todos foram destinados a uma obra de seu pai, rico dono de uma construtora cheia de empreendimentos em Búzios. Era ele que financiava a experiência do filho. No segundo mês, a situação se invertia. Todos deveriam viver sem absolutamente nenhuma regra. Eles teriam livre arbítrio total, sem restrições.
O momento da chegada dos oitos moradores foi eufórico e barulhento. Eles foram obrigados a realizar exames físicos e psiquiátricos antes mesmo de entrarem em seus quartos. Todos já tinham passado por experiências de confinamento ou afastamento da família, sendo pelo serviço militar obrigatório ou pela cadeia. Epifânio começou a anotar, então, todos os movimentos das cobaias em relatórios confidenciais.
Cada um tinha uma tarefa na casa. Laércio, por exemplo, cuidava das gaiolas; Osias era o responsável pela comida, pois durante a semiaberta teve de trabalhar em um restaurante; Roberto capinava, plantava e regava a horta dos fundos; e os outros cinco serão apresentados em um momento mais oportuno. Eram livres para sair, mas não viam motivos para tal, exceto Laércio, um homem de espírito livre que costumava fazer longas caminhadas pelas ladeiras.
Roberto acabou se tornando muito amigo de Laércio, o que alegrou o professor, ávido pelo início dos relacionamentos. Costumavam conversar sobre pássaros e flores. Já o Gaúcho queixava-se para o Capitão sobre seu apelido, injusto para um santista nato. Capitão fora cabo do exército enviado para o Haiti, e sua patente inicial garantia-lhe autoridade máxima dentre os confinados, abaixo da do próprio Epifânio.
Certa feita, uma galinha invadiu o território, e acabou sendo pega por Roberto ciscando nas raízes de uma sementeira de alface. Os oito se reuniram para decidir o que seria feito com o animal. Escolheram o método da democracia, sendo que o voto de Epifânio seria o de Minerva, ou voto de Atena, como o próprio acrescentou. Roberto, Osias, Gaúcho e Capitão votaram pela morte e cozimento da ave; Laércio, Brutus, Guizado e Neto votaram pela sua libertação.
Epifânio viu-se tendo que usar seu voto de Minerva, e pensou que matar uma galinha seria justo, mesmo que fosse mãe de alguns pintinhos. Além do que, Capitão votara em morte e cozimento, e este representava o macho alfa de todos. Decretou sua sentença, e o almoço fora frango frito, sendo um mísero pedaço para cada um, exceto Laércio, que era vegetariano.
E com amenidades e muita conversa fora, a etapa inicial terminou. O enfadonho primeiro mês nada teve de inédito, apenas cenas e conversas comuns em reality shows ditos populares, com a diferença da ausência do confinamento, do paredão e de confusão. Sim, a casa vivia em plena harmonia, pautada pela certeza de que todos seguiriam as regras, e com isso, nenhuma vantagem indevida seria adquirida.
A última noite dessa etapa foi promissora. Todos se reuniram para beber vinho, trazido por Epifânio. Lá pelas tantas, com todos embriagados, o professor pediu a palavra e discursou sobre como estava orgulhoso de todos, pois conviveram muito bem juntos, mesmo sem se conhecerem. Salientou que com a criação de regras, as diferenças foram respeitadas. Brindaram e continuaram a beber.
Ainda era de manhã quando os oito dormiam desordenadamente na ampla sala, rodeados de vômitos e vidros quebrados. Apesar de todos terem acordado razoavelmente cedo, ninguém limpou a residência. Foram pedir demissão da obra, cujo salário acreditavam ser pouco comparado com outras oportunidades que Macambúzios oferecia. Opinião irônica, dada a situação financeira da cidade da península, que atormentou o pai de Epifânio. Este temia o pior, e nunca acreditou que o Projeto Liberdade, ou Freedom Experience, tivesse alguma serventia.
Incrivelmente, a segunda decisão pós-regramento de todos também foi unânime. Trouxeram suas famílias para morar no projeto. Sábios, haja vista que a casa tinha luxos inimagináveis em Macambúzios e em várias outras cidades similares, origens das cobaias. Epifânio não gostou, acreditando que suas observações seriam afetadas por elementos não controlado, chamados genericamente de parentes, mas não se opôs. A total ausência de regras deveria imperar, e eventuais contratempos seriam contornados pelo experiente professor.
Os familiares do Gaúcho acharam a orla fluminense muito suja. “Lá em São Vicente”, diziam, “o mar é muito melhor. Água limpa mesmo. Aqui tudo parece um esgoto”. Uma diferente opinião tinha a família de Guizado, oriundos da região central da Paraíba. Mas não houve briga por isso, alguns tios inclusive combinaram uma partida de futevôlei.
A irmã de Roberto logo foi lhe explicar como plantavam diamba, e sua avó se prontificou a fazer um space cake para toda a família. Caso sobrasse, poderiam dar um pedaço para Epifânio. Após todas as famílias chegarem, o que aconteceu no terceiro dia, aproximadamente cem pessoas habitavam a residência. Mais Epifânio, claro.
A família de Brutus tinha o hábito de fazer churrascos dentro da casa, e costumava convidar a família de Guizado e de Laércio. O primo de Brutus, inclusive, ficava sentado sempre ao lado da horta, para caso alguma galinha invadisse novamente, esta seria pega e posta na churrasqueira da família.
Um pouco afastado de toda a agitação que se instalara na casa, Laércio manteve o hábito de caminhar, o que fazia às tardes. Mesmo com sua mãe insistindo para que ficasse e cuidasse dela, o homem de espírito livre sempre atinava para a cidade e o mar um pouco distante e intocável. Aos poucos, começou a fazer pequenos furtos para alimentar a família, mas nada de armas ou ameaças; fazia o estilo da correria, e roubava geralmente comida.
Arrastões tornaram-se constantes em Búzios, e algumas famílias se organizavam em turnos, regiões e até mesmo itens a serem roubados. Ao anoitecer a sala principal virava uma grande feira livre, onde os bens eram trocados ou vendidos. Não era raro haver brigas por causa de dívidas ou má qualidade da compra.
Epifânio fazia uma reunião do conselho deliberativo todas as quintas-feiras. Estava, dessa vez, muito preocupado com os furtos de suas cobaias. O antropólogo Joaquim era favorável à instalação de pequenas regras, como a obrigatoriedade de um emprego fixo e o afastamento dos familiares, que julgava uma má influência. Já Moraes, o psicólogo, acreditava que a vinda dos familiares era boa para os confinados, pois lhes devolvia a identidade e confiança. Entre teorias de diversos autores, nada decidiram, e a completa falta de regras permaneceria.
No primeiro fim de semana a movimentação começou logo cedo, pois Roberto, dois primos seus e um homem aparentemente sem familiares na casa começaram a vender diamba. Falavam que era de uma safra muito boa, a título de propaganda, mas a verdade é que ninguém sabia de onde eles tiravam a droga, pois a horta era muito recente. Isso garantiu à família dinheiro, e como consequência, poder. O quarto de Guizado e seus quinze familiares foi o primeiro a ter televisão de plasma, home theater e até um cachorro, proibido de andar pela área comum da casa.
Como de costume, as outras famílias começaram a vender drogas também, cada uma com sua especialidade. Vendiam cocaína, remédios contrabandeados e toda a sorte de substâncias alucinógenas, psicodélicas ou barbitúricas. Faziam nos quartos uma linha de produção, e usavam a área comum para o ponto de venda e troca de informações. Em poucos dias, todos estavam com televisores, home theaters e cachorros particulares.
Assim como Epifânio, Laércio nunca tivera contato com substâncias ilícitas. Tinha medo que um eventual vício lhe prendesse. Nem mesmo as regalias compradas com o dinheiro o interessavam. Só tinha pensamentos para suas caminhadas. Em uma delas, encontrou o outro não usuário no meio de uma das inúmeras ladeiras, cabisbaixo e macambúzio.
“Pois é, patrão”, começou Laércio, “o que está achando?”
“O Projeto Liberdade está muito aquém do que eu esperava”, resignou-se o professor. “Mas tenho esperanças que irá prosperar nas próximas semanas. Veja, apesar de vocês cometerem delitos, se organizam à sua maneira. É interessante.”
Já ao anoitecer, Epifânio se remoia em sua cama. Apesar de altos e constantes, seus pensamentos eram abafados por latidos, risadas e Capitão fazendo sexo com alguém. Isso não era surpresa, pois sua condição mapeada de macho alfa fora reforçada com a chegada de seu clã. No fundo, o professor decepcionara-se com suas cobaias, e por extrapolação, com os seres humanos. Acreditava que teriam compaixão uns pelos outros, mas o que via era uma competição pelas drogas, galinhas e luxo. “Isso em menos de dois meses”, pensava ele enquanto o sono não lhe apagasse.
Seu sonho foi intrigante. Voava de seu quarto até a península, para banhar-se no mar. A água subia muito rápido, e as ondas eram fortes. Podia sentir a luz do sol queimando sua pele salgada, e sentiu-se feliz. Estava completamente sozinho e nu, quando aparece à sua frente, numa daquelas aparições que só têm sentido em nossos sonhos, uma mulher vendada. Carregava em sua mão uma balança, que ora pendia para um lado, ora pendia para outro, como a maré.
A visão deslumbrava o professor, que foi nadando para mais fundo em seu encontro. Quando estava a alguns metros dela, e a água na altura do peito, a mulher lhe abre um sorriso, cola seu nariz no dele, e num ato de entrega começa a lamber-lhe o rosto. Epifânio regozija-se, enquanto cada lambida deixava seu rastro de saliva. Sentia de cada papila uma sucção, como ventosas molhadas e salgadas.
O dançar da língua se intensifica, e o professor sente-se excitadíssimo. Mas queria mais, queria ver os olhos da mulher. Roçou a mão por entre seus seios, acariciando-os, chegou ao pescoço, à nuca, e com dedos leves desamarra a venda. A mulher, então, lhe abre um sorriso muito grande, e sem deixar de lambê-lo, diz-lhe “Au!”. Isso assusta o professor, que começa a acordar de seu delírio subconsciente. Quando se dá conta, está com um rottweiler em cima de si. Logo atrás, Capitão segura a coleira. “Patrão”, diz o alfa, “vamos para sala. Queremos conversar contigo”.
As cobaias e suas famílias já estavam postas. Olhavam Epifânio intrigados, sendo que para muitos deles o homem era desconhecido, mas muito comentado. Uma espécie de Deus, mas sem ritos e punições.
“Professor Epifânio, o senhor sempre foi muito generoso conosco”, argumentou Capitão. “Entretanto, sinto que algumas de suas regras são muito opressoras.”
“Você não pode estar falando sério!”, retruca o acadêmico. “A única regra aqui é a completa e irrestrita ausência de regras!”
“Aí é que está. Achamos que o senhor não consegue administrar todos nós, e por isso decidimos que você não pode mais ser quem manda aqui.”
Ele não acreditava no que ouvia. Todos lhe olhavam fixamente agora, inclusive os bebês e os cachorros, ambos soltos e engatinhando livremente. Não tinha argumentos para tamanha surpresa. Pensou que o conselho deliberativo pudesse intervir, mas naquele momento o poder era da criatura. Resolveu, então, apelar para o fato da casa ser propriedade sua, assim como o Projeto Liberdade, e tinha o poder de expulsar a todos, quando quisesse.
“Escutem bem, a casa é minha, assim como o Projeto Liberdade. Eu tenho o poder de expulsar a todos quando quiser!”, disse.
“Sim, patrão”, respondeu Capitão. “Não estamos lhe excluindo. Mas para a coisa funcionar em harmonia, você deve começar a obedecer nossas regras. Caso contrário...”
“Caso contrário o quê?”
“Bom, isso podemos descobrir, nunca fizemos algo parecido antes. Você será nossa cobaia. Agora, por favor, vá com o Roberto cuidar da horta.”
Já planejando um contra-ataque, Epifânio vai à horta, sem saber que a batalha estava perdida. Ficaram a manhã inteira plantando, regando e espalhando o amor para os pés de diamba que começavam a nascer. Enquanto isso, conversavam sobre como um ser humano pode ser generoso se souber viver em sociedade.
Quando voltou à casa, uma surpresa. Seu quarto virara de propriedade de Capitão, que lá se instalou sozinho, deixando sua família em seu quarto inicial. “A partir de agora”, disseram-lhe, “você vai dormir na área comum. O patrão terá mais privacidade, haja vista que não tem nenhum familiar aqui para dividir o espaço”.
Laércio foi um apoiador das mudanças. Antes disperso, agora endossava a liderança de Capitão. Este, por sua vez, o tinha como um braço direito, e costumava dormir com suas irmãs simultaneamente, no quarto recém-adquirido. Laércio era o responsável por gerenciar toda a atividade de elaboração das drogas, cujos lucros eram divididos igualitariamente de acordo com a hierarquia imposta, o que garantia ao homem livre e ao alfa uma parcela maior nos rendimentos.
Até mesmo Epifânio era obrigado a trabalhar na indústria. Quando não era acordado por um latido, lambida ou choro, era pelos passos de clientes ávidos pelas drogas, cuja origem ainda desconhecia. Vendia as drogas ainda de pijama, vestimenta rara na casa, mas não ficava com nenhum dinheiro. Diziam que seu pai já era muito abastado, e que era chegada a hora de dar oportunidades para outras pessoas medrarem.
Nessa dinâmica, duas semanas passaram rápido. Em um desses dias, uma jovem apareceu aos prantos. Era irmã de Guizado, e chorava copiosamente. Acusava um homem mascarado de estuprá-la, e com riscos de estar grávida. Pela primeira vez no mês, o silêncio pode enfim dar as caras por lá. Ninguém vira nada, e as cobaias tiveram de explicar onde os mesmos e os familiares estavam na hora do crime. Por respeito, Guizado não teve que falar.
Epifânio foi o único a não ter o direito de se defender, sob alegação de que seu poder de argumentação de professor universitário poderia confundir as pessoas. Foi obrigado, então, por unanimidade, a jamais ficar sozinho na casa, o que já era impossível. Mesmo assim, Laércio se prontificou a ser sua sombra, seguindo-o em todas as tarefas, inclusive no banheiro. “Um homem livre deve saber quando voar e quando fazer um ninho”, filosofava o guardião do professor.
Para Epifânio, aquilo era um martírio. Humilhado, fazia coisas que há cerca de semanas eram inimagináveis. Suas cobaias eram decepcionantes, sentia-se envergonhado, e não via a hora de encerrar o Projeto Liberdade. Parara com suas anotações e observações em relatórios confidenciais. O conselho deliberativo fora aconselhado a não mais comparecer na casa, sob risco de também ser forçado a trabalhar.
Faltavam três dias para o encerramento, muito embora ninguém na casa, além do professor, atentara-se para o prazo de validade. “Já se faz mister”, pensava o professor, observando a decadência que a casa pôde observar. Quando antes a faxina era feita, e o dinheiro era proveniente do trabalho na construção, a casa tinha um aspecto jovial, com paredes limpas, sanitário arrumado e piso brilhante. Agora, o cheiro fétido dominava, composto basicamente por urina, excrementos e suor masculino. O banheiro não fora projetado para tantos usuários, por isso era comum o uso de comadres e penicos, que chamavam moscas e eram limpos próximo à horta.
Epifânio e Laércio, que com a proximidade ganharam certa cumplicidade, debatiam futilidades no quarto deste, quando um grito forte e dolorido foi ouvido. Saíram para a área comum, assim como o resto, e viram os dois rivais duelando. Um deles, já com uma facada na barriga.
“Filho da puta!”, bradava Guizado. “Você estuprou minha irmã!”
“Como você pode provar? Você sabe que mulher não me falta aqui, e não seria louco de comer uma vadia como aquela!”, respondia Capitão, em um ato desesperado. O líder estava ofegante, de olhos bem abertos, como que assustado pela facada recebida. Mas mantinha-se de pé.
“Eu sempre duvidei de você! Você acha que é o melhor, mas não é! Quem mexe com minha irmã, mexe comigo, e nenhum filho da puta vai comê-la assim!”, diz Guizado.
“Agora já era, sua irmã vai ter um filho sem pai, como todas as prostitutas”, praguejava Capitão. “Aliás, sabe quanto ela cobrava por uma noite? Quarenta reais! Esse dinheiro ela conseguia vendendo uma hora de diamba. E sabe por que ela fazia isso? Por que ela é vagabunda, mulher fácil, como sua mãe e todas as outras daqui!”
As palavras enfureceram ainda mais Guizado, que pela segunda vez rasgou a pele do líder com a lâmina, dessa vez já ensanguentada. Todos apreciavam a cena animalesca, inclusive Epifânio, admirado pelo duelo alfa contra beta que via. Entretanto, amedrontou-se de ser acusado, e aproveitando a atenção e apatia de todos, fugiu pelos fundos, não sem antes fazer questão de pisar e destruir toda a plantação na qual tanto trabalhara.
Corria desesperado, literalmente ladeira abaixo, quando encontra seu pai. Admirável coincidência, poderiam pensar alguns, mas o rico empreiteiro não subia à toa. Usava um terno fino, gravata de seda e sapatos lustrosos, enquanto o filho tinha a barba por fazer, estava descalço e sujo, com uma camisa sem botões.
“Vejo que a experiência saiu um pouco do controle, não é, filho?”
“Com certeza!”, disse o ofegante professor. “Tivemos alguns casos em que a libertinagem venceu, sem dúvida, e colocou a vida de todos em perigo. Preciso realizar uma reunião do conselho deliberativo...”
“É por isso mesmo que vim aqui, Epifânio. Vamos até a casa de um amigo meu para discutirmos melhor. Daí você aproveita para tomar um banho e usar uma roupa de verdade.”
Ao melhor estilo pai e filho, deram alguns passos cidade acima, e bateram em uma casa com dois seguranças. Ao entrarem, puderam ver paredes branquíssimas, aparelhos de tecnologia de última geração e dois flamingos a nadar na piscina. Sentaram em um sofá, e rapidamente o anfitrião aparece ao lado de duas mulheres enxutamente vestidas.
“Filho, quero lhe apresentar meu amigo Mano Metido. É ele quem faz o meio de campo entre mim e meus operários. Infelizmente, sua experiência está atrapalhando o comércio dele aqui na região, e por isso ele pede para que seja interrompido imediatamente.”
“É isso mesmo”, atravessa o traficante. “Tudo o que acontece em Macambúzios eu fico sabendo, e tolerei aquele ponto de venda pelo seu pai, afinal, somos parceiros de longa data. Mas chegou uma hora em que a venda de diamba e congêneres foi ganhando espaço. Daí, você vai me desculpar, mas aquela porra vai ter que acabar agora. Sabe como é, como eu sempre digo, otário nasce morto.”
“Eu entendo senhor Metido, mas não é tão simples assim. Eu preciso decidir isso com o conselho deliberativo”, impõe o professor.
“Olha”, e agora Mano olha de soslaio, como quem perde a paciência. “Em respeito à tua família, que considero a minha família também, vou aceitar o que você disse, muito embora essas exigências custem um pouco caro. Em todo caso, vou chamar seus amiguinhos.”
Mano pede para uma de suas mulheres ir a outro cômodo, e quando volta, traz consigo dois homens amordaçados e algemados. Eram Joaquim e Moraes, antropólogo e psicólogo, respectivamente. Todos, exceto o conselho, deixam a sala, para que a melhor decisão sobre a Freedom Experience fosse tomada.
“Meus amigos e mestres”, iniciou Epifânio, “é com desprezo e vergonha que declaro que o Projeto Liberdade saiu completamente do controle. Na segunda parte de nosso experimento, fui escravizado, além de presenciar tráfico de drogas, estupros e um assassinato! Devemos votar sobre o encerramento prematuro do Projeto.”
Os olhos dos dois estavam perplexos. Para eles, que foram sequestrados dois dias antes, a chegada de Epifânio era um alívio. O professor e presidente do conselho contou toda a história, com personagens, pormenores e detalhes sórdidos.
“Meus caros”, falou Joaquim, “o Projeto deve ser encerrado imediatamente. Ele nos colocou em uma situação de risco com o traficante local e famílias de lá, que se fecharam em feudos e tomaram o poder com base na crueldade. Meu voto é pró.”
“Discordo”, disse Moraes. “A experiência está sendo um sucesso, com conclusões empíricas muito interessantes. Não podemos nos esquecer de que faltam apenas três dias para o fim, e que tudo se passa dentro da casa, sem maiores complicações para o mundo aqui fora. Meu voto é contrário.”
Os dois argumentos tinham seu valor para Epifânio, mas o corpo e a alma doídos lhe impediam de enxergar beleza e justiça na democracia. Mais uma vez, o voto de Minerva, ou de Atenas, lhe era demandado, e dessa vez, não poderia vacilar.
“Não”, falou firme. “Não posso deixar que as coisas evoluam para o pior. Como presidente do conselho deliberativo, declaro encerrado o Projeto Liberdade.”
O alívio de se verem livres daquele monstro fez com que todos respirassem fundo e esquecessem suas objeções e divergências. Abraçaram-se e chamaram o anfitrião, que ofereceu banho, comida e roupas para os três recuperarem um pouco da dignidade que ficara ao nível do mar.
Poucas horas depois, já devidamente higienizados e alinhados, o pai de Epifânio chama-lhe em particular.
“Filho, não quero que você se sinta pressionado, mas já paguei alguns serviços adiantados para Mano, mesmo que você não os queira. Mas saiba que há várias maneiras de se encerrar uma experiência dessas.”
“Eu sei pai, obrigado.”
“Mas afinal, meu filho, você entendeu o limite tênue e maleável entre a liberdade e a libertinagem?”
“Com certeza, essa lição eu jamais esquecerei.”
“Então você sabe como terminar tudo isso. É só confirmar com Mano.”
“Pode confirmar, meu velho!”, diz isso abraçando seu antecessor.
Após vinte minutos, o pai e o conselho se foram para Búzios, e o exército de Mano Metido já estava aparelhado com armas e bombas. Dirigiram-se para o Projeto Liberdade para encerrá-lo, e com um chute na porta e janelas quebradas, entraram na casa, avistando um cadáver ainda quente, sendo limpo por cães, e dezenas de homens, mulheres e crianças pobres e muito mal arrumadas discutindo alguma coisa que já não mais tinha relevância.
Sequer o primeiro grito precisou ser ouvido para que mais de trinta encapuzados apertassem o gatilho de suas metralhadoras, e os primeiros corpos caírem. Algumas mulheres foram estupradas antes de morrer, outras degoladas. Algumas pessoas tiveram atendidos seus últimos pedidos, como morrer próximo aos filhos; outras não tiveram a oportunidade de tamanha benevolência.
Bombas foram também jogadas dentro dos quartos, o que pegou casais, viciados e preguiçosos desprevenidos. Toda a droga foi queimada, assim como alguns corpos de pessoas e cães. No final de tudo, sobraram apenas cadáveres, que jamais seriam reconhecidos pelos familiares, dado que as linhagens tinham sido extintas no genocídio, além de aparelhos eletrônicos e latrinas desfiguradas. O cheiro continuou fétido, muito embora tenha ganhado toques de sangue e carne putrefata. A horta, já destruída, ironicamente era ciscada por uma galinha, que se manteve viva, gozando de certa insignificância na ação.
Ao menos Epifânio conseguira sua conclusão, muito embora divulgara para a mídia e revistas acadêmicas que o Projeto Liberdade, ou Freedom Experience, fora abortado por falta de patrocínio e pelos riscos que uma extravagância intelectual daquela estaria sujeita. Os três professores, já na semana seguinte, voltaram à vida na Universidade Estadual Armação de Búzios, na esperança de nunca mais ouvirem comentários sobre os dois últimos meses.
Entretanto, na casa, algumas horas passaram. Talvez até um dia, tempo que nunca teremos de forma precisa. Mas rodeado de moscas, um homem se levanta. Suas roupas estão rubras de tanto sangue alheio, mas o mesmo encontra-se ileso, como a galinha. Olha atentamente para verificar se mais algum homem restara, mas nada viu.
Estava assustado, como não poderia deixar de ser, mas com muita raiva. Agradeceu ao acaso de perceber a fuga de Epifânio, e pelo profissionalismo e senso de comunidade que o fizeram correr atrás do professor ladeira abaixo. Insistente, vagou por muito tempo, mesmo sem encontrá-lo.
Ao chegar em casa, viu os encapuzados se aproximando, e pressentindo o pior, entrou pelos fundos para alertar os hóspedes. Mas era tarde, e os tiros já tinham começado. Restou-lhe apenas deitar-se sob o corpo de sua finada mãe, que em vida tanto implorava para que recebesse acolhimento, mas que em morte serviria de um bom escudo para os tiros. Fingiu-se de morto durante todo o genocídio, e recebeu apenas algumas pisadas de matadores apressados e ávidos por sangue.
Agora, Laércio sabia seu objetivo na vida, e como todo homem realmente livre, deixou-se invadir pelo mais humano sentimento, a raiva. Saiu da casa comprometido a dar vazão ao seu instinto primordial de vingança.
Epifânio e seu conselho deliberativo ficariam orgulhosos de sua cobaia.
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