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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 43 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

Foto do escritorPaulo Sousa

Contos: Histórias de Macambúzios - 6 - O Velho e o Ar


Histórias de Macambúzios - O Velho e o Ar

“Velho, o que é um sonho?”, pergunta o pré-adolescente imberbe.

“Um sonho, Zica, é aquilo que lhe move, lhe motiva a acordar todos os dias. Você tem algum sonho?”

“Sim, tenho. Gostaria de pelo menos uma vez frequentar uma escola, com amigos de classe, professores e livros.”

“Mas Zica, você tem a mim!”, faz troça o velho, rindo de si mesmo e da situação.

“E você tem um sonho? Ou na sua idade não se sonha mais?”

“Eu tenho o sonho de voar. E sempre tive.”

Não era incomum o menino Zica se interessar pela escola, por uma questão muito mais de curiosidade do que de amor ao conhecimento. Acontece que ele nunca se matriculou em nenhuma instituição de ensino, nem pública. Sua avó é analfabeta, e sua mãe nunca teve tempo para pensar nessas coisas. Sua escola é a casa do velho, que sempre cuidou de sua educação. Acompanha o menino desde os primeiros passos, literalmente, pois é muito amigo de sua avó.

O nome do velho é Ernesto, mas a idade e a sabedoria lhe renderam o apelido simples e direto há mais de vinte anos, quando já era velho. Ele é magro e seco, e tem a parte posterior do pescoço vincada de profundas rugas. Tudo o que nele existe é velho, com exceção dos olhos que são da cor do céu, alegres e indomáveis.

Sr. Ernesto teve muitas profissões na vida. Foi engraxate, lavador de pratos, taxista, xamã, pedreiro. Entretanto, passou a maior parte dos anos trabalhando na aeronáutica, emprego que o serviço militar lhe obrigou a realizar, mas que ganhou seu coração.

“Mas velho, na aeronáutica você não voava?”

“Não, Zica. Passava o tempo todo limpando os galpões, o interior dos aviões e as salas dos capitães. E cortava a grama, muitas vezes. Nunca tive oportunidade de voar.”

“Mas quando você tiver outra oportunidade você vai voar, não vai?”

“Oportunidades, palavras e dias nunca voltam, querido.”

“Mas você pode estar enganado, não pode?”

“Sempre posso, mas acho improvável. Diga-me, qual foi em sua opinião o maior engano da história?”, pergunta o velho.

“Fico na dúvida entre crucificar Jesus e incendiar a Livraria de Alexandria.”

“Boas escolhas, Zica, mas o nome certo não era livraria, mas sim biblioteca. O capitalismo ainda não tinha se tornado o que é hoje”, diz Sr. Ernesto.

“Porque Jesus foi crucificado por nós, e não simplesmente preso? Será que ele seria tão idolatrado quanto é hoje em dia se seu fim tivesse sido menos martirizado? Uma cela para ele, outra para Barrabás, e o cristianismo seria completamente diferente”, divaga o menino.

“Acho que ele foi crucificado para servir de exemplo. Condená-lo à prisão seria uma sentença óbvia para um homem tão complexo, além de redundante. Sua condenação não foi por nenhum crime comum, como assassinato. Foi por um ideal libertário, divino ou não.”

“Será que ele se sentia culpado, e isso facilitou sua pena capital? Lembre-se que muitas crianças e bebês morreram em sua busca. Acredito que a culpa tenha, no mínimo, incomodado alguns sonhos de Jesus, dada sua condição de altruísmo e compaixão para com o próximo.”

“Nisso você tem razão, Zica. A culpa fere mais que o confinamento. O ego prende mais que a justiça, seja ela divina, humana, ou no caso, romana. Com certeza ele se condenou à prisão.”

“Mas é uma prisão moral, e não física. Nem todo mundo tem esse tipo de pensamento. Não sei se acredito em sua divindade, e também não desacredito, mas ele cavou o próprio abismo.”

“Dizem que ele sabia de tudo desde o início, mas isso é uma questão de fé. O interessante é você não ter uma opinião sobre a existência do divino, mesmo que contrária. É uma questão, de fato, impossível de se fugir.”, diz o velho.

“É que a divindade de Jesus, ou mesmo a existência de deus, não me fazem diferença. Nunca pensei muito sobre o assunto, pois se deus existe, não aparece, e não o vejo. E se não existe, nada mais natural. Mas como falei, é um assunto que me importa pouco.”

“Zica, você parece que sabe muito a respeito de Jesus, mesmo sem fé.”

“Eu li recentemente um livro importantíssimo para o catolicismo.”

“A Bíblia Sagrada?”, pergunta o velho.

“Não. O Código da Vinci. Aliás, ótima leitura”, finaliza Zica.

Como é de se observar, as aulas do professor velho não eram das mais tradicionais. Ao invés de instruir o menino com datas históricas, fórmulas matemáticas ou o português clássico e burocrático, Sr. Ernesto focava no que realmente faria a diferença na formação de um ser humano. O resto, o menino poderia aprender depois.

Após a aula, Zica se despede do professor, e retorna para seu lar, deixando a casa mais uma vez em silêncio. O velho não tinha aparelhos de som, televisão, nem nada que emitisse o mínimo de ruído, o que dava à sua residência um ar de monastério. As luzes eram fracas, pois as janelas nunca eram fechadas, mesmo em dias frios ou chuvosos. Sua sala tinha as paredes repletas de poleiros e frutas, livres para serem degustadas pelos passarinhos que amiúde vinham lhe acordar, e que por respeito, faziam o menor barulho possível. Muitos quadros de horizontes ou nuvens faziam a decoração.

Acontece que o velho é um ornitólogo amador apaixonado, que alimenta, cuida e cataloga a flora voadora ao seu redor. Entretanto, jamais concordara com o uso de gaiolas para aprisioná-los. Acreditava ser um crime colocar um animal indefeso entre grades apenas pela posse, martírio menor apenas ao do ego supracitado.

Com o silêncio de volta, pôde continuar a planejar sua aventura, a ser realizada em breve. Os passos necessários eram poucos, dado que a distância era de algumas ladeiras apenas, mas seu físico senil exigia o máximo de eficiência de seus movimentos. A sabedoria era a única arma que lhe restara, e a usaria tão logo.

No dia seguinte, nem bem tomou seu café quando Zica bateu à sua porta. Ele parecia ansioso, pois mal cumprimentou o mentor e logo se sentou para conversar.

“Velho, o senhor já foi casado?”

“Nunca, mas já tive muitas mulheres. Antigamente elas ficavam apaixonadas por qualquer um da aeronáutica, mesmo alguém sem patente ou poder como eu era. Conseguia sempre as mais bonitas daqui de Macambúzios.”

“Nossa, o senhor devia se aproveitar bastante de seu cargo. Imagino ser muito difícil beijar uma mulher muito bonita.”

“Não é. Beijar uma mulher bonita é muito fácil. O difícil é beijar uma mulher muito feia!”

Ambos dão muitas risadas, e finalmente selam o tradicional abraço, saudação natural realizada algumas vezes ao dia.

“Então você já praticou o sexo. Antigamente era melhor ou pior?”

“Puxa, mas que pergunta direta!”, ri Sr. Ernesto. “Sexo sempre foi bom, mas acredito que era melhor. Era um pouco mais difícil, mas também menos pudico. Entretanto, desde que me tornei velho, não estive com uma mulher. Sou um pouco contra esses remédios, mas até toparia, caso alguma quisesse se deitar comigo.”

“Eu acho que o sexo antigamente era pior, muito embora nunca o tenha praticado. Hoje em dia existem muitos riscos, muitas doenças, mas as pessoas lidam muito melhor com a própria sexualidade.”

“Zica, no meu tempo a preocupação era a gravidez. Claro que doenças existiam, mas nenhuma comparada às de hoje. Nós também acreditávamos que o sexo era melhor em nossa época, tanto que pude aproveitar o final da revolução sexual, a maior falácia do século vinte, que nos cobrou caro a partir da oitava década. Você sabe qual é minha pior lembrança dos anos oitenta?”

“A Xuxa?”

“Não, a aids!”, fala o velho mais assertivamente. “Qual foi o resultado da revolução? Uma geração inteira que não conheceu o sexo sem aids ou camisinha, que cresceu ouvindo preocupações sobre a cópula, e não com o prazer. Além de tudo isso, foi obrigada a engolir a camisa de vênus, algumas vezes de forma literal, como uma peça irrisória e muito importante para o sexo, quando nada mais é que uma merda que tira o contato.”

“Calma Sr. Ernesto, quanta resignação! Realmente, cresci sendo bombardeado com propagandas de sexo seguro, pois a geração anterior não tinha se preocupado tanto assim. Minha mãe, inclusive, comentou ontem que muitos de seus ídolos contraíram aids.”

A conversa estava boa, em alto nível, e continuou durante a manhã e a tarde. Era comum que ambos não ficassem de braços cruzados. Disputavam também partidas longas de xadrez, e também gostavam de andar pelas ladeiras. O velho discordava de Raul Seixas, para quem os pensadores rendiam mais parados.

Em uma das partidas, Zica aplicou uma movimentação certeira da torre, que armou uma armadilha para um xeque. Entretanto, o velho já sabia que isso iria acontecer, e não só saiu da situação limite, como também pôde comer a rainha adversária com um peão.

“Velho, ainda hoje lhe disse sobre minha mãe. Você nunca pensou em contratar prostitutas para seu prazer sexual?”

“Porque você pergunta isso?”

“Você comentou que nenhuma mulher aceitaria dormir contigo, mas as putas aceitariam mediante dinheiro. Minha mãe conhece algumas baratinhas, que inclusive já trazem a camisinha.”

“Obrigado pela preocupação, amigo!”, diz o velho, dando um soquinho no queixo de seu pupilo. “Mas devo confessar que os desejos sexuais não são mais a minha prioridade. Tenho muitas ocupações, e aproveito meu tempo livre para estudar e amar os pássaros.”

“Mas as putas também podem lhe ajudar nisso! Além de dormir contigo, elas podem fazer o café, o almoço, e arrumar a cama por fim.”

“Não, obrigado. Posso fazer o que você falou sozinho e sem pagar nada. Além disso, elas não fariam tudo isso. Camas de prostituas estão sempre desfeitas.”

Ao crepúsculo, Zica se despede e silencia a casa. É o tempo do Sr. Ernesto jantar e tomar suas vitaminas. Ele se preocupava com o físico desde que começou a planejar sua aventura, mas isso pouca diferença fazia. Não tinha muitas pretensões de sucesso com a incursão cidade abaixo, e não se preocupava com eventuais problemas, visto que os mesmos teriam pouco tempo para lhe fazer mal.

Histórias de Macambúzios de Paulo Sousa

Resolveu folhear uma enciclopédia antiga sobre os pássaros a mata atlântica. Sempre se espantava com os gaviões de penacho, tucanos de bico verde, tangarás e tangarazinhos, sabiás e gaturamos. Na verdade, não somente os admirava, mas também os invejava. Eles podiam voar livremente, conhecer pelo ar cidades e continentes, enquanto o velho jamais morou em outro lugar além de Macambúzios.

Sentia-se frustrado por ter tido tanto tempo para voar, mas nunca conseguido. Sequer na aeronáutica pôde experimentar a sensação, dado que era pouco notado pelos demais. Sua vida foi longa, e sempre com os pés colados ao chão, mas Sr. Ernesto estava decidido a mudar radicalmente, como nunca antes. Embarcaria dali a dois dias em sua jornada rumo à base da cidade, mais especificamente, para uma casa-poleiro. Sua indignação quanto a jaulas seria externalizada.

No dia seguinte, acorda com pequenas bicadas em sua mão direita. Como de costume, entende o recado, e troca o buffet de frutas tropicais em sua sala, fazendo a festa dos passeriformes. O dia está claro, com céu de brigadeiro. “Um belo dia para os aviadores”, pensa. Toma seu café e sente-se disposto.

O menino chega logo depois, trazendo-lhe uma maçã. “É piegas, mas é-me importante”, justifica. O velho agradece, sela o abraço e o convida para uma caminhada pela cidade. Ao longo do dia, conversam sobre muitas coisas, sempre de forma natural. Nunca seguiam um roteiro, e muitas vezes o papo se restringia à vida pessoal de algum morador.

Sr. Ernesto era o mais antigo cidadão macambúzio, e todos o conheciam e respeitavam. Cumprimentava os mais velhos, e era comum receber convites para missas e bingos. Recusava-os, alegando estar velho para essas coisas. Algumas crianças até lhe pediam a benção, beijando-lhe a mão, como se a senilidade lhe concedesse um pouco de santidade.

Ao voltarem para casa, já ao anoitecer, o velho abraça o menino Zica, não sem antes lhe deixar dever de casa. Lembra-se de sua coleção de livros sobre ornitologia.

“Querido Zica, amanhã é sábado, e como tal, não teremos aula. Gostaria que você pensasse em algumas questões no fim de semana.”

“Claro, quais seriam?”

“O ser humano é superior a outras espécies?”

“Bem, acredito que sim. Podemos pensar, raciocinar, construir nossas próprias casas...”

“O João-de-barro também, para ficar apenas no exemplo mais conhecido.”

“Mas velho, os animais não falam. Jamais se comunicam, apenas fazem sons ininteligíveis. Nós temos as palavras e a linguagem.”

“Quem lhe falou que essa é uma exclusividade dos seres humanos? Veja aquele pássaro”, solicita o velho, apontando para um papagaio verdadeiro, ou Amazona aestiva. “Se o problema é esse, está resolvido. Esse e alguns outros têm a capacidade de imitar sons de pequenas palavras, muito embora sua linguagem seja outra. Acredite em mim, os animais podem se reproduzir, alimentar e realizar seus sonhos normalmente, assim como a maioria dos seres humanos.”

“Eu entendo seu ponto de vista, mas não concordo totalmente. Temos a inteligência como arma, e podemos construir muitas outras mais perigosas, como revólveres e facas. Isso nós ganhamos deles.”, retruca Zica.

“Ganhamos a batalha, mas não a guerra. Sem essas armas somos presas fáceis para os maiores. Não há inteligência que não sucumba à força física e à dor; ela deve ser usada antes de ser colocada à prova. O que eu quero dizer é que somos exatamente iguais, podemos vencer ou perder, como todos. A visão antropocêntrica é muito presunçosa, prefiro a zoocêntrica.”, diz o velho.

“Quem ganha, então, um leão ou dez homens?”

“Acredito que em condições naturais, o leão. Armados, os homens.”

“E se o leão for um pouco velho, e os homens atléticos?”

“Daí a briga é boa. Não sei lhe responder, a decrepitude é o elo entre todos os vivos, e sempre vem acompanhada da morte.”

O menino fica um pouco constrangido com sua hipótese, dada a situação do professor. Mas este continua.

“Veja, Zica, a morte é a única certeza de nossa vida, e é ela quem mais se aproxima de dar à existência o mínimo de sentido. Quando você chegar à minha idade, verá que no fundo, tudo é pequeno, como os pássaros, e o que realmente importa não é o que você conseguiu, mas como.”

Os olhos do Sr. Ernesto ficam marejados. Estava bastante emotivo com a conversa, com a proximidade de sua aventura e com suas reflexões acerca da vida e da morte. Morte e Vida Severina, como todos dali e como todos nós.

“Velho, obrigado por hoje. Espero que o senhor tenha um ótimo fim.”

“Eu também, querido!”, e abraça o menino com muita ternura.

“Quero dizer”, completa Zica, “um fim de semana!”

Ambos começam a rir abraçados, com a risada a aumentar paulatinamente. Em pouco tempo os amigos caem no chão às gargalhadas. Apoiam-se um no outro para levantar, mas tamanha era a comoção do riso sincero que apenas conseguiram ficar de joelhos. Até os pássaros, sempre quietos como corujas, piavam, cantavam e batiam as asas freneticamente, como que participantes da epifania.

O velho ria porque se lembrava de todas as vezes que sofreu à toa, que se resignou e conferiu a efemeridades o status de chaga. Já Zica ria muito não sabia bem do quê, mas quando abriu os olhos e encarou o rosto do amigo e professor cheio de entradas, sentiu algumas lágrimas caírem em seu rosto, que se transformaram em tantas. Começou a pentear os cabelos um pouco longos e brancos de Sr. Ernesto, enquanto este lhe reconfortava com um sorriso.

“Sr. Ernesto, o senhor sabe que meu pai não teve um bom fim. Sequer o conheci. E essas questões de vida e morte sempre me afugentaram. Na verdade, nunca as aceitei. Muitas vezes olho ao meu redor, o destino de pessoas queridas, e acredito que vida não tem o menor valor.”

“Ela tem! Viver vale a pena! Viver vale a pena!”, diz com firmeza e comoção o velho, balançando os braços do menino com veemência.

“Espero que todos nós tenhamos um bom fim, seja de semana, seja de vida inteira.”

“Perdão por chorar na sua frente.”

“Pode chorar à vontade. O choro e o riso são muito próximos, pois são emoções que vêm de dentro.”

Mais uma vez, eles se abraçam, o velho beija-lhe o rosto, e se separam. Sr. Ernesto fica ainda alguns minutos deitado no chão, olhando para o teto rasgado com voos de vários tipos. Quando se levanta, luta contra a vertigem, vai direto para a cama. Acordará antes do sol, junto aos seus amores alados.

Às quatro e meia da manhã, quando alguns jovens chegavam em casa, o velho trancou a porta rumo à base da cidade. Veste branco para não chamar a atenção, e carrega nas mãos uma pequena caixa de ferramentas, fardo quase insuportável para alguém tão frágil quanto ele.

Finalmente chega a seu destino, a casa-poleiro de Tarzan. É sabido de todos de lá que o homem é um famoso contrabandista de aves, principalmente as ameaçadas de extinção. Tem alguns capangas já conhecidos, arregimentados para a captura de animais silvestres, alguns até por encomenda. Estes caçam os pássaros em matas nativas, e os colocam escondidos em compartimentos de malas ou caixas de sapato. De dez capturados, apenas um sobrevive, e é vendido para algum endinheirado.

Ele espera calmamente o momento certo. Sabe que Tarzan acorda muito cedo, pois é obrigado a fazer o horário dos pássaros, e passa a manhã inteira na cidade vizinha, em suas negociatas. E às seis e meia, como de costume, o dono sai de seu barraco. Felizmente, não leva consigo nenhum exemplar de pássaro, e ironicamente, pede a benção para Sr. Ernesto. É chegada a hora da aventura.

Passados alguns minutos, tempo suficiente para Tarzan se distanciar bastante, o velho abre a caixa de ferramentas e força a porta da casa-poleiro. O sol já lhe bate forte, e ele se condena por ter esquecido o chapéu. A porta é mais forte do que imaginara, e mesmo com grampos e chaves de fenda, não abre.

A cada tranco que dá, o velho se sente mais cansado. Seu nariz já arde de insolação, e o suor morre nas inúmeras fendas que seu rosto adquiriu ao longo dos anos. Pensa em mudar de estratégia, e passa a chutar a porta com a sola do pé. Apoia-se em um pedaço de galho improvisado na hora como bengala, e demora dois minutos para se recuperar de cada golpe.

Entretanto, contrariando a probabilidade, consegue abrir a porta. O trinco maciço manteve-se, enquanto o batente carcomido de cupins desfez-se na região. Lá dentro, pôde ver as inúmeras gaiolas empilhadas, com as mais variadas espécies. O cheiro era muito forte, mesmo para alguém acostumado. Sem perder tempo, abriu todas as gaiolas, levando-as para fora e exigindo com tenras palavras que os prisioneiros, agora livres, aproveitassem o já esquecido doce prazer de voar e fizessem valer sua natureza.

Após terminar seu serviço, muitos ainda estavam nas proximidades da casa, e para fazê-los partir, Sr. Ernesto arremessou com toda força sua caixa contra a janela de vidro, estilhaçando-a e espantando a revoada. A adrenalina lhe domina, sente um forte desejo de voar, e sem se conter, segue os pássaros pelos rasantes sem rumo.

Sobe correndo as ladeiras da cidade sem se importar com cumprimentos, bênçãos ou objetos à sua frente. Olha sempre para cima, admirado com todas as cores e jeitos, todos os cantos e flertes destes que jamais poderiam se privar do uso das asas. E os animais voavam muito rápido. Sr. Ernesto jamais correra tanto nas últimas quatro ou cinco décadas, não tinha certeza.

Ele ri e pula como uma criança, balançando os braços. Algumas quedas são inevitáveis, e mesmo pequenas topadas e esbarrões são suficientes para abrir sua fina e frágil epiderme. Nada o para, continua a ritmo alucinante morro acima.

Uma pedra atinge uma anacã, que cai instantaneamente. “Deve ser um moleque travesso, nada de mais”, pensa. Mas aos poucos, outras mãos anônimas apedrejam, e outros fios elétricos se esticam e se interpõem aos mais inexperientes. Aos poucos, o que era uma pintura de muitas cores e riscos, torna-se homicídios de aves, ou melhor, ornitocídios.

Quanto mais o velho corre, mais ele vê os pássaros morrendo na cidade. Decide diminuir o ritmo aos poucos, mas não consegue diminuir as mortes. Quando chega à sua casa, praticamente engatinha. Está molhado de tanto suor, extremamente ofegante e com os joelhos doloridíssimos. Sua roupa branca está manchada do marrom da terra e do vermelho do sangue.

Não sente sede. Não sente fome. Tampouco seu cabelo ralo grudado na face. Mas sente culpa. Abre com esforço sua porta, e encontra uma fatia brilhante de mamão papaia no chão, que a divide com outros dois animais, no caso, pássaros. “Porque Jesus foi crucificado por nós, e não simplesmente preso?”, lembra o velho de uma conversa com Zica.

Não sabia ao certo quantos pássaros morreram, pois não teve tempo de contar. Sabia que muitos foram vítimas, mas muitos foram salvos. Pensava sozinho, deitado no chão, que a morte certamente encontraria todos eles, mas sentia-se um assassino por abreviar vidas tão belas, mesmo que sofridas. Condenou-lhe ali mesmo à prisão, mas achou a pena redundante.

Afinal, sua vida tinha realmente valido a pena? E as vidas dos pássaros, tinham valido a pena? Indagava-se como há muito tempo não fazia, e mesmo a sabedoria acumulada em muitas décadas não era suficiente para apagar o fogo do remorso e da dúvida que lhe ardia o peito.

Passou o dia inteiro em silêncio, como os pássaros ao seu redor, até o anoitecer, quando decidiu que, dali em diante, vivenciaria a vida como um pássaro que fora salvo em sua aventura. Assim ele realizaria seu sonho e lhe daria uma pena justa pelo ato libertário de bravura. Levantou-se e buscou uma caneta e um pedaço de papel, para deixar um recado para seu melhor amigo. Escreveu o bilhete com ternura.

Gostaria de se despedir de todos os pássaros individualmente, mas sabia que era impossível. Além disso, seria inútil, pois eles não precisavam do velho para viver. Talvez sentissem alguma saudade, ou simplesmente estranheza pela ausência. Ao sair, deixa sua porta aberta, carregando apenas o bilhete a ser entregue.

Já é quase noite, o sol se apagando no horizonte, quando Sr. Ernesto nota que está à beira do abismo. De um lado do penhasco público, observa as águas turvas e paradas. De outro, seu destino. “Eu estava errado”, pensa o velho, “pois oportunidades, às vezes, voltam. E quero aproveitar essa minha de uma melhor maneira”.

De olhos fechados e respirando fundo, fecha os punhos e contrai os músculos das pernas. Ouve, então, um grito. “Velho! Velho!”. Parecia a voz do menino, ao longe, mas era tarde demais. Ao abrir os olhos, joga-se para frente num impulso.

Para o velho, a queda livre durou mais tempo que toda sua outra vida. Sentia o ar bater-lhe no rosto, os cabelos agitando-se. Abre os braços, como uma tentativa de planar no ar, para aumentar ao máximo o tempo de sua nova e efêmera existência.

Antes de cair no chão duro de terra, Sr. Ernesto abre o sorriso, e realiza satisfeito que estava certo quanto às questões de vida e morte.

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