Curiosamente, começarei a leitura das poesias de Pablo Neruda por uma de suas últimas obras. "Ainda" (José Olympio) foi publicado um pouco antes da morte do poeta ocorrida em 1973. O livro é enxuto (77 páginas) e possui apenas vinte e oito poemas. É possível lê-lo em um quarto de hora. Escrito quando o escritor chileno estava idoso e exilado na Europa, essa publicação narra as impressões saudosistas de Neruda sobre sua terra natal.
Surge, então, o Chile que o escritor conheceu em sua infância e adolescência. Acompanhando o pai que era maquinista de trem, o jovem Neruda pode conhecer de perto, nas primeiras décadas do século XX, as várias regiões de seu país: Temuco, Yumbel, Angol, Boroa, o vulcão Osorno e a baleeira de Quintay. Há também muitas citações à Araucânia, onde ele nasceu e cresceu.
Para se apreciar a leitura de "Ainda", é preciso lê-lo de maneira contínua (em uma batida só). Os poemas não são independentes, mas sim interligados entre si. Esse é o primeiro aspecto que chama a atenção do leitor. A obra é uma pequena epopeia, pois os vinte e oito poemas contam uma única história.
E que história é essa? No início ficamos em dúvida: se a narrativa é sobre a vida do autor e sua família ou se ela é sobre o país em que ele nasceu? A resposta surge no poema VI:
"Perdão se quando quero
contar minha vida
é a terra o que conto.
Esta é a terra.
Cresce em teu sangue
e cresces.
Se se apaga em teu sangue
te apagas".
Aí está o grande brilho desse livro. Assim como Ítalo Calvino descreveu as diferentes personalidades humanas narrando os vários tipos de cidade do mundo, em "Cidades Invisíveis" (Companhia das Letras), Pablo Neruda só consegue se caracterizar como homem e abordar sua vida e trajetória quando narra os detalhes da terra de onde veio e de onde cresceu. Assim, o deserto chileno é uma metáfora para o sentimento solitário do poeta. As geleiras nos cumes montanhosos do país, por sua vez, são semelhantes aos cabelos brancos dos homens idosos. Os vulcões são a força interna e a paixão que há dentro de cada chileno.
Há também algumas passagens memoráveis. Além do poema VI que possui, por si só, uma beleza filosófica, há outras tantas nessa publicação. No início, o poeta relaciona sua história pessoal (capítulos) às características de sua cidade natal (Araucânia):
"Araucânia, rosa molhada, diviso
dentro de mim mesmo ou nas províncias da água
tuas raízes, as copas dos desenterrados,
com os larícios rotos, as araucárias mortas,
e teu nome refulge em meus capítulos
como os peixes pecados no cesto amarelo!".
Veja essa passagem sobre o vulcão de Osorno:
"Harpa de Osorno sob os vulcões!
Soam as cordas escuras
arrancadas ao bosque.
Olha-te no espelho de madeira!
Consome-te
na mais poderosa
fragrância de outono
quando os ramos deixam
cair folha por folha
um planeta amarelo
e sobe sangue para que os vulcões
preparem fogo cada dia".
O encerramento é magnífico:
"Aconteceu meu poema
para ti, para ninguém,
para todos".
Durante toda obra, Pablo Neruda utiliza-se de alguns neologismos criados especificamente para expressar os seus sentimentos. Isso fica evidente, por exemplo, no poema XXVII com o termo "cinturista" (um tipo de parasita). Além disso, há muitas referências à cultura, à história e à geografia chilena. Para compreender o texto em sua totalidade é necessário algum conhecimento prévio desses aspectos. Cholga (espécie de mexilhão típico da costa do Chile), Francisco Pizzaro (explorador espanhol que subjugou os povos indígenas da América do Sul), Alonso de Ercilla (soldado e poeta do célebre poema "La Araucana"), Yumbel (cidade chilena) e Osorno (vulcão ativo) são alguns exemplos.
Apesar desse toque específico da cultura chilena dificultar um pouco a leitura de "Ainda" por quem não vive ou viveu no Chile, essa característica confere uma graça ainda maior ao texto. Como Neruda pode falar de sua terra se ele não utilizar referências locais? Impossível! Assim, esse tempero local é parte do esforço do autor para se apresentar ao leitor da maneira mais fidedigna possível.
O livro é muito bonito. Simples, porém muito impactante. A sensação que temos ao terminar "Ainda" é que Pablo Neruda conseguiu sintetizar sua vida e sua personalidade através da narração das paisagens que conheceu durante sua infância e adolescência. A conclusão que chegamos é que o homem adulto é formado essencialmente pelas experiências vividas na juventude e por sua interação com a terra natal. Essa relação entre natureza e personalidade fica mais forte quando lembramos que o Nobel de Literatura de 1971 precisou se exilar do Chile quando estourou o Golpe Militar em seu país. As saudades de casa e o saudosismo natural da velhice ajudam a compor as páginas desse belo livro.
No próximo dia 11, retorno ao Blog Bonas Histórias para comentar o segundo livro de Pablo Neruda deste Desafio Literário, "Vinte Poemas de Amor e Uma Canção Desesperada". Não perca!
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