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Bonas Histórias

O Bonas Histórias é o blog de literatura, cultura, arte e entretenimento criado por Ricardo Bonacorci em 2014. Com um conteúdo multicultural (literatura, cinema, música, dança, teatro, exposição, pintura e gastronomia), o Blog Bonas Histórias analisa as boas histórias contadas no Brasil e no mundo.

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Ricardo Bonacorci

Nascido na cidade de São Paulo, Ricardo Bonacorci tem 43 anos, mora em Buenos Aires e trabalha como publicitário, produtor de conteúdo, crítico literário e cultural, editor, escritor e pesquisador acadêmico. Ricardo é especialista em Administração de Empresas, pós-graduado em Gestão da Inovação, bacharel em Comunicação Social, licenciando em Letras-Português e pós-graduando em Formação de Escritores.  

Foto do escritorPaulo Sousa

Contos: Histórias de Macambúzios - 3 - Sobre Obviedades


Histórias de Macambúzios - Espelho do Mundo

Ele foi criado pela avó, presença amiúde nos bingos da cidade. Seus pais foram mortos quando ainda era um cândido infante, e pouco se lembra deles. Nem por isso sua educação foi deixada de lado; ao contrário, sempre foi um menino aplicado na escola e em casa.

Sua avó, dona Turmalina, foi quem lhe ensinou a ler e escrever. Entre uma partida e outra de dominó, o menino recebia pequenos ensinamentos das letras, que logo se juntaram em palavras, que logo se tornaram frases, que logo se tornaram o mundo do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Foi alfabetizado um ano antes dos amiguinhos de escolas tradicionais, e sete anos antes que as outras crianças de Macambúzios.

Gostava de ler escondido, quando a avó dormia segurando as agulhas do tricô, alguns títulos até então proibidos para sua geração, mas estimulantes à terceira idade, como Eça de Queiroz e Flaubert. Em um deles, leu a afirmação que otários nasciam mortos, o que lhe chamou a atenção, dadas as palavras pouco comuns nos clássicos do gênero.

“Vó, o que é um otário?”, pergunta o menino.

“Otário é aquele que não aprende as regras de um jogo, Emmanuel.”

“E como alguém já nasce morto?”

“Todos nós nascemos inocentes, até que a sociedade nos corrompa.”

O real significado da frase o menino só iria aprender alguns anos depois, mas voltemos à tenra infância, época que a principal preocupação de Emmanuel era fazer o dever de casa, ajudar a avó nos serviços domésticos e jogar futebol com seus amigos.

Com o tempo, as dúvidas sobre como seus pais morreram lhe vinham à mente, e sua avó era a responsável por saná-las, muito embora preferisse não fazê-las, dado o acúmulo de papéis que a vida a obrigou a representar. A senhora via-se ao mesmo tempo mãe, aquela que afaga e acolhe; pai, aquele que impõe limites e disciplina; avô, aquele que é ex-pai, e agora só quer saber de se divertir, e finalmente avó, boa cozinheira e fiel ao marido. Talvez Freud pudesse ajudar mais nesses momentos do que Eça ou Flaubert, mas ela achava que se saía bem.

Custaram alguns anos para dona Turmalina admitir ao neto que os pais tinham algumas relações perigosas com o mercado informal de Macambúzios, e outros tantos para revelar que eles eram os maiores importadores de diamba da região. Antes disso, se saía de forma razoável com parábolas e fábulas, críveis para mentes pueris.

Na pré-adolescência, período de vida recém-inventado à época, fazia a contabilidade de quanto sua avó ganhava e perdia nos bingos, e assim a enxergava cheia de sorte. Acreditava que essa benção era um legado quase hereditário, e por isso formavam uma família de muita sorte. Incomum, claro, dada a ausência dos pais, mas com certeza repleta de bons valores.

Serviu ao exército de forma voluntária, com muito orgulho, chegando a ser um dos melhores atiradores do pelotão. Isso o levou a conhecer o tenente-coronel Sampaio, homem forte da polícia militar. Este lhe fez uma oferta nos últimos dias de serviço militar obrigatório.

“Emmanuel, você é forte, atira bem e tem liderança. Acredito que você possa trabalhar para mim. O que você acha de se tornar paramilitar?”

“Senhor, agradeço a oferta, mas infelizmente gozo de plena constituição física.”

“Não é nada disso!”, diz o tenente-coronel, incrédulo do que acabara de ouvir. “Você vai trabalhar para mim sendo o dono de Macambúzios. Ganharemos muito dinheiro, e eventuais crimes que você venha a cometer serão encobertos pela minha corporação.”

Emmanuel sabia o que isso significaria, e recusou o pedido. Sabia que existia na cidade o traficante Maneta, que deveria ser exterminado para o plano dar certo. Mas conhecia os riscos, e acreditava que um erro não justificava o outro. Recusou a proposta.

“Senhor, obrigado pela proposta, mas prefiro trabalhar para minha cidade de outra forma.”

“Tudo certo menino. Em todo caso, tome aqui meu telefone particular”, e entrega um cartão para Emmanuel. “Qualquer coisa, ligue-me.

Quem sabe podemos formar uma bela milícia por lá.”

Quando retornou da caserna, já era um homem, com deveres muito claros para com sua sociedade. Não tinha dinheiro para cursar uma universidade, e por isso começou a trabalhar na própria região. Inicialmente tentou ser líder comunitário, organizando reuniões e eventos, mas os encontros não atingiam um quorum significativo, salvo aqueles que sua avó organizava bingos com brechós. Foi depois voluntário em uma organização responsável por levar medicamentos aos carentes e necessitados de Macambúzios. A experiência durou um pouco mais que a anterior, mas serviu de trampolim para uma carreira de sucesso mais imediato do que essa.

Sua primeira tarefa era bem simples: levar uma caixa inteira de remédios tarja preta para uma casa. Ele os colocou na mochila e subiu a pé as inúmeras ladeiras da cidade vertical, quase até o cume, de onde a vista era privilegiada com o oceano e com Búzios, cidade mais limpa e evoluída.

Lá chegando, encontrou dois homens armados na frente da residência, o que lhe intimidou. Perguntou sobre a possibilidade de entregar a caixa, pedido deferido após trinta minutos de insistência e coerção por parte dos armados. Finalmente, entrou na casa, recepcionado pelo anfitrião.

“Bonitas paredes brancas, eu nunca vi uma casa assim em toda região”, iniciou Emmanuel.

“É mesmo?”, retruca o dono, observando suas próprias paredes. “Sorte a minha. E você trouxe o que pedi?”

Ele entrega a caixa com os remédios, que rapidamente são conferidos por outro homem, magro e com muitas tatuagens. Ele faz as contas, sorri, e antes de partir para outro cômodo, acrescenta a informação que os mesmos serão vendidos pelo dobro do preço. O anfitrião, então, pede para que Emmanuel saia.

“Como o senhor se chama mesmo?”, pergunta o homem de saída, franzindo o cenho.

“Porra, não sabe meu nome, estranho... Bom, pode me chamar de Maneta. É como eu sempre digo, pouco faz quem muito fala! Agora pode ir embora.”

Poucos dias depois, a mesma tarefa fora feita, e a rotina se repetiu durante alguns meses. De todos os remédios, seringas, receitas, e até mesmo doações era tirada uma parcela a ser entregue ao Maneta pelo Emmanuel. Isso acabou gerando entre os dois uma espécie de afinidade. O homem justo já tinha contado sobre suas histórias sobre o exército, sobre a educação privilegiada e sobre sua sorte inevitável, quando Maneta lhe perguntou:

“Moleque, quer trabalhar para mim? Você tem futuro, e comigo pode ganhar muito dinheiro.”

A proposta pegou Emmanuel de surpresa, que foi consultar-se com a avó. Ela foi terminantemente contra, haja vista que o neto poderia ter o mesmo destino de seus pais, mortos no trabalho, que traficar era uma tarefa muito perigosa, e que Maneta não gozava de boa reputação. Ele contra-argumentava que apesar do perigo que Maneta representava, ele tinha poder, que podia ser usado para o bem da cidade, talvez até fosse capaz de mudar de profissão.

Após algumas noites sem dormir, decidiu aceitar a proposta, e logo pela manhã foi à casa de seu futuro empregador para discutir os termos do contrato.

“Maneta, são três coisas que eu não faço: não me meto com drogas, não me meto com putas e não me meto com armas. Fechado?”

“Fechado rapaz! Você vai ser o único aqui que não é bandido!”, bradou Maneta, rindo de forma efusiva. “Mas quem trabalha para mim tem que escolher um nome de guerra. Qual vai ser seu nome agora, Emmanuel?”

“Mas esse Emmanuel é cheio de não me toques, não se mete com nada, porra!”, exclamou o tatuado, um dos muitos do séquito inseparável de Maneta.

“Ta aí, você é muito metido mesmo!”, falou Maneta pressionando o indicador no peito de Emmanuel. “Seu nome agora é Mano Metido!”

Sem muita opção de escolha, foi obrigado a aceitar a nova denominação. Pensou que não seria de todo mal, afinal, sua avó já lhe chamava algumas vezes pela carinhosa variação de seu nome. A parte do metido até lhe orgulhou, pois demonstrava que tinha um pouco mais de instrução do que os demais.

“E é como eu sempre digo, pouco faz quem muito fala!”, finalizou o líder traficante, enquanto seus comparsas davam tiros para cima e tapas na cabeça do novato.

Na mesma noite ele passou por um tradicional ritual iniciático. Como se negara a fazer contato com drogas, putas e armas, a festa teve muita cachaça, o que não deixa de ser uma droga, mas não precisa ser traficada para ser consumida. Claro que a cerimônia não parou por aí, e Mano Metido teve que andar a festa inteira com pasta de dente entre as nádegas, algo parecido com o que lhe ocorreu no exército, mas em maior quantidade, pois o quartel não tinha muito dinheiro para comprar o item de higiene bucal.

Ainda bêbado e com dor de cabeça, ele acordou no chão de seu novo lar, a casa de Maneta, mais uma exigência do empregador. Com uns tapas, o tatuado veio lhe falar que precisava cobrar uma dívida de um fornecedor que morava na parte de baixo da cidade, no valor de vinte mil reais. Mano Metido se assustou um pouco, pois nunca vira tamanha quantia ser-lhe confiada, ainda mais sem portar nenhuma arma. O tatuado retrucou dizendo que ninguém iria se opor, dado que estava sob ordem de Maneta.

A casa da pessoa era um poleiro, literalmente. Quando abriu a porta, Mano pôde ver vários pássaros em gaiolas, e alguns deles até soltos. Penas voavam constantemente, e o cheiro das fezes trazia uma sensação de náusea. Foram obrigados a falar praticamente gritando, dado que o volume do piado dos mochos, do palrado dos papagaios e do chilreado de araras azuis e ararinhas azuis, soldadinhos do araripe, tietês de coroa, pica-paus do Paraíba, parurus, rolinhas brasileiras, rolinhas do planalto, tiês bicudos, macuquinhos baianos e gaviões de pescoço branco era insuportável.

O fornecedor, que se identificou apenas por Tarzan, parecia muito preocupado. Tremia e suava, tratava Mano com uma educação e formalidade acima das tradicionais regras de etiqueta, e gaguejava mais que os pássaros. Disse que não tinha o dinheiro, que na verdade estava até endividado com outras pessoas, e que não poderia fazer nada a respeito até vender sua mercadoria.

“Eu sei que para trabalhar em Macambúzios temos que pagar o imposto para o Maneta, mas me perdoe. Na verdade, estou até endividado com outras pessoas, e nada posso fazer a respeito até que venda minha mercadoria.”

“Porra, mas o que vou dizer pro Maneta?”, perguntou o justo, com jeito de exclamação. “Ele precisa receber esse dinheiro de qualquer maneira!”

“Olha amigo, quem sabe eu tenha algo que possa interessar”, e abre os braços, mostrando sua infinidade de espécies voadoras.

“Isso jamais vai funcionar! Esses passarinhos que você roubou são proibidos, e não valem quase nada! A maioria está praticamente morta!”

A discussão durou um bom tempo. Mano Metido simplesmente não sabia o que fazer, pois não tinha armas para matar o devedor, mas seu patrão tinha muitas para matá-lo. Quanto maior o desespero do justo, maior a insistência do Tarzan.

“Por favor, eu insisto!”, disse o fornecedor. “Eles fazem muito sucesso com os turistas de Búzios, e rendem muito dinheiro. Não me mate, minha vida não vale tanto dinheiro.”

Enquanto falava, duas figuras curiosas apareceram de outro cômodo. Aparentemente formando um casal, tinham pernas longas, olhar curioso, e eram pequenos, dado que nasceram havia apenas dois anos. Suas tezes eram de um róseo esbranquiçado que emanava vida e saúde, e aparentemente não tinham se manifestado desde o início da conversa.

Vinte minutos depois, Mano Metido via-se carregando nos ombros dois flamingos, que abriam as asas e lhe bicavam a cabeça, chamando muita atenção dos moradores. Pelo menos pôde comprovar o que o tatuado lhe falara, pois ninguém ousou abrir a boca ou encarar a cena de frente. Por um breve momento, sentiu a tentação de pegar uma arma e aplicar no endividado a pena capital.

Histórias de Macambúzios de Paulo Sousa

Sua recepção na casa de Maneta não foi muito calorosa. Ele depositou o pagamento no chão, o qual rapidamente caminhou em direção à janela. O tatuado, outros do séquito e o chefe pararam de conversar, ficando calados por um breve e incômodo instante.

“Que porra é essa?”, iniciou o bandido a conversa.

“Essas porras são dois flamingos chilenos, senhor!”, Mano não perdera o hábito de respeitar as autoridades, oriundo do quartel. “Foram capturados há três semanas, e têm aproximadamente dois anos de idade. Falam, comem e bebem pouco. E o que é melhor, valem mais do que vinte mil reais no mercado de Búzios.”

Os olhares de todos eram de incredulidade. Nem mesmo piscavam de tanta tensão no ar, que poderia ser sentida por toda a cidade. Maneta, então, tomou a palavra. Respirou fundo, coçou o queixo e disse.

“Taí, gostei!”

Ninguém entendeu direito, mas pelo menos abriram um sorriso, mais para de alívio do que para felicidade. Inclusive Mano Metido, cuja garganta estava seca, como se preparando para uma eventual degola.

“Os dois vão morar na piscina, e vão comer três vezes por dia. Quem vai escolher o nome deles sou eu”, decidiu Maneta. “E vão se chamar Navalha, homenagem a um grande antepassado, e Maria da Graça, homenagem a minha finada mãe. Agora vamos voltar a trabalhar, enquanto o novato monta a casa dos dois.”

E todos obedeceram.

A vida no quartel do traficante era menos emocionante que se podia imaginar. Apesar de já estar dormindo em uma esteira, benefício adquirido pela solução inovadora da dívida, Mano se sentia pouco aproveitado. Como não podia extorquir ninguém, dada a distância das armas, nem mesmo elaborar papelotes de drogas ou dormir com prostitutas gratuitamente, pouco sobrava para o homem idealista. Passava a maior parte do tempo vendo televisão, jogando conversa fora e cuidando dos flamingos.

A dúvida sobre a real utilidade de sua presença era questionada por vários comparsas. Não era comum alguém ficar tão na boa vida quanto ele. De vez em quando, como que para disfarçar, era mandado receber dinheiro de algum outro fornecedor, mas dessas vezes, todos o pagavam com outras espécies. Ao invés de flamingos, onças pintadas e garoupas. Tinha também o privilégio de visitar seus familiares sempre que desejava, ao contrário dos outros, alguns dos quais sequer familiares tinham.

Nessas visitas a avó sempre lhe dizia para abrir o olho. Afinal, estava trabalhando para um homem perigoso, que tinha sempre intenções obscuras e pérfidas. O justo respondia que combinara que jamais pegaria em armas em serviço, e todos aqueles outros termos de contrato, estava ganhando um bom dinheiro por semana, e também que em breve já terá ganhado respeito para enfim usar o poder de forma justa. Os argumentos de forma alguma acalantavam o coração da senhora, que em vão tentava segurar ao máximo seu neto, seja com palavras, seja com quitutes prediletos.

Certo dia, Mano atinara a lavar as paredes, para conservá-las brancas, quando Maneta lhe deu mais um serviço. Dessa vez, teria apenas que estourar um rojão caso avistasse algum policial entrando na cidade durante aquela tarde. Ele aceitou.

Com o sol a pino, sentiu o clima da casa muito tenso. Gritavam uns com os outros, falavam mais palavrões. Além disso, estavam encapuzados e armados com revólveres, espingardas e metralhadoras novíssimas, algo que chamou a atenção de Mano, pois tinha se acostumado com o arsenal ultrapassado do exército brasileiro. Decerto haveria um evento grandioso, provavelmente a chegada de caminhões de drogas. Como Maneta recusara pagar propina aos policiais, a ação seria às escondidas.

Já na base da cidade, divisa com Búzios, Mano sentou-se tranquilo. Tinha em mãos apenas um isqueiro e um rojão. Mas não se preocupava, afinal, a ação ocorreria lá em cima, e a região era muito movimentada por motos-táxis e vendedores ambulantes. O sol estava muito forte, o que obrigou o justo a tirar a camisa. Tinha um corpo magro, mas com músculos definidos, e se orgulhava dele. Já tinha dezenove anos, e acreditava estar na hora de ter algum relacionamento sério. Pensava que a época do sexo casual acabara com o fim do uso obrigatório da farda, algo que chamava atenção das mulheres.

Entre lembranças eróticas e abanadas, avistou um policial andando na rua, que olhou para cima e falou alguma coisa no rádio. Com muita rapidez, Mano acendeu o pavio do rojão, que foi explodir bem alto. O policial, então, viu o rapaz, empunhou sua arma e correu para pegá-lo.

Mano, apesar de não ser um bandido nem estar devendo nada a ninguém, conhecia a si mesmo, e também o quanto poderia ser incriminado, e na dúvida, correu também. Não sem antes tomar um susto ao ver surgirem no mesmo instante viaturas, carros pretos, além de motos, batalhões de policiais a pé e dois helicópteros.

Enquanto corria, ouvia tiros de várias armas, gritos de policiais e moradores, portas fechando e gente chorando. De vez em quando, um tiro do policial que o seguia passava-lhe muito perto, o que lhe dava mais adrenalina para correr. Sua fuga pela vida durou inacreditáveis cinquenta minutos, nos quais foi obrigado a pular muros e invadir casas. Tentava ao máximo se distanciar de seu perseguidor e dos helicópteros, que também atiravam.

Entretanto, sempre morou naquela cidade, e sabia como se esconder. Entrou em uma área de mata fechada, subiu em uma árvore e de lá esperou muito tempo, até que tudo fosse silêncio, e uma calmaria quase sepulcral tomasse conta de Macambúzios. Enfurecido e assustado, foi até o quartel general, cujas portas estavam abertas e luzes acesas. Sequer perguntou sobre novidades aos colegas, já chegou aos gritos:

“Porra Maneta, você quer-me fuder!”, a fluência nos impropérios fora adquirida com eles mesmos. “Você me bota na entrada da cidade sem arma e nem me avisa que os homens estavam sabendo! Vai tomar no cu todo mundo!”

Ao contrário do que se poderia imaginar, ninguém ousou falar nada. Maneta e seus asseclas tinham um olhar fugidio, vermelhos e lacrimosos. Até os flamingos pareciam estar de luto. Estatelado no chão, o tatuado jazia com tiros no peito e nas genitálias.

“Quando um de nós falece”, respondeu Maneta de uma forma calma, “é justo nos indignarmos. Você não está irado comigo ou com os outros, mas sim com a polícia filha da puta. Eu perdoo suas ofensas a mim e a meus funcionários.”

“Mas”, e o traficante-mor ergue o dedo enquanto sua voz fica embargada, “temos o dever de vingar a morte do parceiro. Poderia ser qualquer um de vocês, e isso não ficará barato. Peço que alguém verifique se o finado tinha mãe ou pai, e após o enterro, vamos planejar como será a vingança. Só estamos nessa vida para responder às injustiças e mazelas que sempre nos foram comuns, e com certeza, assim faremos. A vida de bandido não é fácil, e como eu sempre digo, pouco faz quem muito fala.”

Todos se abraçaram após o discurso, inclusive Mano e Maneta, e foram para os cômodos ainda em desalento. A cama que o defunto dormia agora seria propriedade de Mano, já que este se arriscou desarmado pelo bem de todos, e aquele já não mais acordaria. Mesmo assim, a noite passou em branco na cabeça do justo. Aquele sofrimento era demais para ele, fora que sua avó dependia de seu dinheiro. Não podia morrer, e na manhã seguinte foi embora, despedindo-se dos flamingos e deixando um bilhete para Maneta.

Sua avó, claro, apoiou a ideia, e lhe serviu tudo do bom enquanto seu neto descansava e pensava qual novo rumo tomar na vida. Ela sempre lhe lembrava de que avisara várias vezes, mas ele continuava de cabeça quente, e não entrava em discussão.

Duas semanas se passaram, mas a rotina de Emmanuel, que abandonara a alcunha do crime, continuava praticamente a mesma, salvo os cuidados dos flamingos, agora gastos com alguns gatos anônimos que vinham lhe roçar a porta. Um belo dia, logo ao amanhecer, bateram à casa. Sua avó ainda estava dormindo, e o justo foi atender. Era Maneta, vestido de maneira sóbria e com sapatos.

“Maria da Graça está grávida”, iniciou o traficante a conversa.

“Como assim, grávida?, perguntou Emmanuel, estupidez perdoada dados o horário e a visita de surpresa.

“Grávida, ué. Vai ter bebês”, e falando isso abre os braços, como que anunciando uma benção. “Posso entrar?”

Sentaram-se à mesa da cozinha, que era a única mesa da casa. Serviram-se de café e bolo. Emmanuel estava atônito, e de certa forma com medo de alguma vingança por ter abandonado o grupo, mas o que ouviu foi outra história.

“Mano, gostaria que você soubesse que a nossa vida não é fácil, e trabalhar como eu trabalho é uma forma de melhorá-la. Veja, eu distribuo gás de cozinha, água potável, televisão à cabo. Tudo isso com um custo mínimo para os moradores.”

“Eu sei disso, mas seu dinheiro também vem do tráfico, dos roubos e sequestros. Seu poder não me interessa mais.”

“Meu caro Mano, você está enfurecido, e é justo. Olha, eu perdoo sua deserção, até porque já nos vingamos dos policiais, e sequer me lembro daquelas palavras tolas. Por favor, volte a ser o Mano, Emmanuel”, diz isso segurando o braço do homem.

Por mais que fosse uma vida perigosa, o crime recompensava. Emmanuel ganhava uma quantia razoável de dinheiro, além de estar próximo ao poder, mesmo que este seja usado de forma suja. Ele pensou por um breve instante, mas seu olhar indicou que estava tentado a voltar atrás.

“E como vou saber que você não está mentindo para mim?”, indagou Emmanuel.

“Eu não estaria vindo aqui desarmado e bem vestido para mentir para você. Além do que, dessa vez não vou só lhe pagar em dinheiro. Eu sei de uma coisa que muito lhe interessa...”

“O que é, afinal?”

“Eu sei o nome do cara que matou seus pais.”

Nesse momento, a avó levanta de sua cama, e ainda coçando os olhos e descabelada, pergunta ao neto quem era aquela visita inesperada àquele horário.

“Esse é o Maneta, vó. Veio tomar café conosco.”

Mesmo ressabiada, ela se aproximou da mesa, deu um abraço em Maneta e lhe ofereceu café e bolo, muito embora ele já estivesse comendo. A conversa dos três foi estranha, pois só o traficante falava, enquanto a avó era de uma suspeita só, e o neto de uma confusão inimaginável. Passada uma hora, Maneta foi ter com Emmanuel lá fora.

“Antes de combinarmos qualquer coisa, quero reformular nosso contrato”, propôs Mano. “Além das três cláusulas anteriores, não quero morar no quartel de novo, não quero participar de nenhuma ação que envolva o crime e quero organizar eventos realmente bons para a cidade. Fechado?”

“Fechado meu amigo! Você é importante para a equipe, tem boas ideias. O que você sugere?”

“Não sei ainda. Antigamente eu fazia umas reuniões dos moradores, mas eles só vinham quando tinha bingo. O que acha de um bingo aqui na cidade?”

“Bingo, que porra de bingo, mané!”, fez troça o traficante. “Você está com o Maneta, e pode fazer o que quiser. Eu pensei em um leilão beneficente. A gente chama várias figuras de Búzios e vende uns artesanatos por um valor altíssimo. Daí, o dinheiro você separa como quiser. Topas? Lembrando sempre que caso você diga sim, lhe direi o nome do cara que matou seus pais.”

Ele topou, frente a essa oferta praticamente irrecusável. Entrou em casa para convencer a senhora que agora as coisas seriam diferentes, que finalmente usaria o poder de forma justa, e que a avó poderia até participar do evento. Ela continuava resistente, mas aceitou o argumento. Fez questão de se despedir de Maneta lá fora.

“Maneta, obrigada e passar bem. Espero que dessa vez as coisas corram melhor entre você e meu neto.”

“Com certeza minha senhora, já conversei com ele e agora voltamos a estar do mesmo lado. A vida é assim mesmo, uma hora vai, outra hora volta... É como eu sempre digo, pouco faz quem muito fala.”

Esperançoso, Mano Metido começou a organizar o evento. Agendou um dia em um buffet simples em Búzios, grande o suficiente para caber os duzentos convidados. Concentrou-se em chamar empresários da península, que aceitaram rapidamente, prova insofismável de benevolência e altruísmo. Após a cerimônia, haveria no topo da cidade uma grande festa, para comemorar só com moradores o sucesso do empreendimento.

Dona Turmalina, por sua vez, chamou todas as amigas do bingo, e as incentivou a fazer artesanato. Chamou também alguns pichadores, que aceitaram fazer grafites em telas brancas para serem vendidas como arte urbana.

Todo o dinheiro envolvido na organização vinha do bolso do Maneta. Mano sabia que a grana tinha custado muitas vidas, inclusive a do tatuado, mas acreditava ser a última vez que assim fazia. Só a entrada custava quinhentos reais por pessoa, além dos lances para o artesanato, o que formaria o valor total arrecadado estimado em cento e vinte mil reais. Parte seria guardada para realizar outros eventos de mesmo porte, e assim ele sairia do poder do tráfico e teria seu próprio quartel.

Horas antes da cerimônia, tudo estava arranjado. As mesas lotadas e pagas, os artesanatos guardados em caixas, e sua avó em êxtase. Nunca imaginara que o neto pudesse fazer tamanha festa, e cantava vantagens para suas amigas de bingo, responsáveis pelos serviços de mesa. Foi então que Maneta se aproximou de Mano, falando-lhe que sua avó mandara um pedido. Mano teria que ir buscar o Sr. Ernesto, velho amigo e conhecido de muitos da cidade.

Um pouco à contra gosto, visto que teria que novamente subir a cidade vertical, ele aceitou. Além do que não poderia recusar um pedido de sua avó, mesmo que de última hora e deveras inconveniente.

O homem, então, pega seu rumo e parte para chamar o velho. Entretanto, este se recusa a participar do evento, falando que nunca fora convidado para isso, que não tinha dinheiro, e que estava muito velho para festas.

“Emmanuel, eu não fui convidado, nem sequer tenho dinheiro. Além do que, estou muito velho para festas”, disse.

O justo sai da casa com raiva, pois perdera meia hora do evento para ter um convite negado. Pelo menos pôde ouvir seu nome de batismo, algo raro mesmo em casa, pois sua avó adotara o nome de guerra como prova de aceitação do trabalho do neto. Tentava se animar pensando que em breve poderia acertar as contas com o assassino de seus pais.

Ao chegar ao local, todo suado, abre a porta e o encontra diferente do que o deixou. As mesas estavam todas desfeitas, com copos quebrados e manchas de sangue. Alguns corpos estavam no chão, alguns vivos, outros não. As caixas estavam abertas, cheias de quinquilharias inúteis destruídas. Ao fundo, abraçada ao púlpito que serviria para ouvir os lances, sua avó chorava.

“Eles pegaram tudo meu neto!”, suplicou dona Turmalina. “Tudinho! O dinheiro todo dos casais. Bateram em todo mundo, deram tiros, quebraram o artesanato...”

“Mas vó, a senhora está bem?”

“Sim, dadas as circunstâncias, estou. Maneta me poupou, disse-me que eu tinha bom coração, assim como você.”

“Vó, antes da polícia chegar, ligue para esse telefone”, e lhe passa o cartão do tenente-coronel Sampaio. “Fale que eu aceito a proposta miliciana, e peça para me esperar no quartel general do Maneta daqui a duas horas. Depois vá para casa e descanse, pois dias melhores virão.”

E assim o justo deixa sua avó e parte novamente para Macambúzios. Pela primeira vez na vida, gostaria de ver sangue escorrendo. Fora traído novamente, dessa vez da pior forma, pois envolveu a sua avó e sua reputação. Sabia que teria que enfrentar todos o comparsas de Maneta, pelo menos os verdadeiramente fiéis, que somavam cerca de sete pessoas. Rumou direto para o quartel general, mas sabia que a casa estava vazia. Aproveitou para armar-se e alimentar os flamingos.

Subiu até o topo, mais alto ainda que a casa de paredes brancas. Havia uma multidão de pessoas, os que não estavam bebendo estavam se drogando com muita alegria, muito embora as atividades sejam sinônimas, salvo o risco maior de uma em relação à outra. Meninas e mulheres dançavam de forma alucinada, e ao fundo, no palco, encontrava-se o grande organizador da festa, Maneta.

Ele dançava enquanto exibia os talões de cheque e dinheiro vivo que tinha guardados em um saco grande. Também bebia muito e ria com as mulheres que o rodeavam. Estava muito satisfeito para perceber que, pouco antes de pedir o microfone e a palavra, estava na mira de uma espingarda de longo alcance.

O tiro que lhe acertou a perna emudeceu a todos, que olharam para Mano Metido assustados. O justo sabia o que estava fazendo, e com suas habilidades de tiro, mirou exatamente para não matar. Tinha ainda uma questão a resolver. Maneta estava ajoelhado, de olhos bem abertos, sozinho no palco.

Enquanto se dirigia para lá, Mano Metido fez questão de matar os comparsas, a maioria se drogando próximo ao palco. Foram prezas fáceis. Ele então se aproxima do traficante e olha-o bem nos olhos.

“Eu não sei quem os matou...”, diz Maneta, gargalhando alto, forte e com prazer.

Mano então lhe aplica mais cinco tiros, todos na cabeça.

Sente prazer em ver seu inimigo morto, ensanguentado. Pensou que o velório seria com o caixão fechado, haja vista os doze buracos de sua cabeça, mas logo se lembrou que o cadáver sequer deveria ter uma família.

Não se pode dizer que o justo, e agora para sempre Mano Metido, estivesse feliz; ao contrário, gostaria que nada disso tivesse acontecido. Mas, como nem o tempo nem as palavras podem ser apagadas, tentou alegrar-se com a certeza de que finalmente tinha o poder em suas mãos, muito embora se sentisse um outro homem. Alguém que sobreviveu.

“E é como eu sempre digo...”, gritou no microfone.

Todos estavam pasmos, sem reação, aguardando o término da frase para poderem voltar ás suas casas, sabendo que histórias assim se repetem há muito tempo, e que essa não foi a primeira nem será a última.

O silêncio só foi cortado quando o justo assim decidiu.

“Otário nasce morto!”

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