Um livro único e de grande ousadia estética. Estas são as características mais acentuadas de "Zero" (Global), obra de Ignácio de Loyola Brandão. Ao lê-la, me senti em uma música da Tropicália. Ou em um videoclipe da MTV. Ou mesmo no meio do filme "Birdman ou A Inesperada Virtude da Ignorância" (Birdman: 2015). Afinal, as coisas vão acontecendo sem uma lógica pré-definida neste livro. A história é contada por meio de fragmentos, textos desconexos e imagens atiradas diante dos nossos olhos. A narrativa é ao mesmo tempo caótica e engraçada.
Livro mais importante da carreira de Loyola Brandão, "Zero" é realmente inquietante e muitíssimo inovador. Não é à toa que foi eleito, em 2000, pelo jornal "O Globo" e pela revista "Manchete" como um dos cem melhores romances do século XX. Também não foi por acaso que a publicação foi censurada pelos militares aqui no Brasil na época em que foi produzida. As autoridades alegaram que a obra ia contra os bons costumes e à moral da sociedade. Editado inicialmente na Itália em 1975, "Zero" só chegaria às livrarias brasileiras de forma definitiva em 1979. Hoje, este livro é apontado com um dos clássicos da literatura nacional.
"Zero" conta a história de amor e ódio entre o casal José e Rosa. Você se lembra daquela música do Leandro e Leonardo, "Entre Tapas e Beijos" (1989)? Pois bem: parece que ela foi escrita pensando nos protagonistas do livro (brincadeira!). Depois de se casarem, José e Rosa vivem praticando sexo e brigando. Ou seja, ora se amam, ora se espancam violentamente.
Enquanto conhecemos a vida do casal (em detalhes hilários e pitorescos), também somos apresentados a uma infinidade de episódios absurdos que acontecem pela cidade onde eles moram (São Paulo). Há o circo cheio de aberrações. Há a burocracia infernal: uma simples consulta ao médico de um hospital público, por exemplo, pode se transformar em uma maratona para o paciente. A polícia e os militares também são intransigentes, buscando comunistas em todos os lugares e desconfiando de qualquer um.
A violência, o pessimismo, a sátira, o grotesco e a desconexão estética e conceitual dão o tom neste livro. Como pano de fundo, temos a repressão (da Ditadura Militar) e o desejo de liberdade (política e de expressão), temas que seriam novamente abordados por Loyola Brandão em uma obra futura: "Não Verás País Nenhum" (Global), na década seguinte. Segundo Antônio Candido, um dos principais críticos literários do país, "Zero" é uma obra de um "realismo feroz".
A grande sacada criativa de Ignácio de Loyola Brandão com "Zero" foi ter quebrado a forma tradicional de escrever um romance. O escritor revolucionou a estrutura como o livro foi concebido. Há a tentativa de se reproduzir fielmente sons de gritos, tiros, atropelamentos, músicas, orgasmos e explosões. A vida e os pensamentos dos personagens são esmiuçados sem qualquer vergonha de se expor a realidade nua e crua. Cheio de notas de rodapés (hilárias por sinal), com pequenos desenhos e figuras (às vezes, parece que estamos vendo uma revista ao invés de um livro), com tramas paralelas (inclusive dividindo espaço na diagramação da página onde a história principal é contada) e uma narração em tom caótico, "Zero" pode ser caracterizado como tendo uma estética própria e única.
Além disso, a história é contada de maneira fragmentada, um tanto desordenada. Cabe ao leitor a obrigação de ir montando as peças do quebra cabeça atiradas pelo escritor. No meio da narrativa, há vários comentários e inserções que, a princípio, estão desconectados do enredo principal, mas que dão graça e certa leveza à publicação (tão cheia de violência e de cenas pitorescas).
O tom do livro é ácido, cheio de explicações corrosivas por parte do autor. A linguagem é popular, com grande oralidade e (propositadamente) um tanto desbocada. Não há pudor em descrever cenas de sexo, violência ou as deformações físicas dos personagens.
Loyola Brandão fica muito à vontade para escrever o que bem entende e da forma como deseja. O resultado é um livro caótico e arrojado. Ele atrai, assombra e hipnotiza os leitores. Sem dúvida, um dos melhores livros nacionais que já li. "Zero" ficará em um lugar de destaque na prateleira da minha biblioteca. Merecidamente!
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