"Tenda dos Milagres" (Companhia das Letras) foi escrito por Jorge Amado no final da década de 1960. Sua publicação aconteceu no ano de 1969, quando o Brasil vivia sob o governo militar. Um ano antes fora proclamado o AI-5, o Ato Institucional No5, que restringia as liberdades civis e políticas no país. O livro possui quase 300 páginas e retoma temas explorados em outras obras, como Jubiabá (Companhia das Letras), romance de 1935 protagonizado por Antônio Balduíno, líder negro de origem humilde.
Segundo Jorge Amado, esta é a sua obra favorita. Ela é um manifesto aberto à mestiçagem e a cultura popular negra brasileira. Para o autor baiano, a solução para os conflitos raciais e para o desenvolvimento do Brasil passava necessariamente pela miscigenação do seu povo e pelo respeito à cultura popular. Além do conflito racial, tema central deste livro, outros assuntos polêmicos foram abordados nesta obra: a hierarquia social, a luta de classes, o colonialismo cultural, a repressão da Ditadura Militar e o choque cultural entre o pensamento esquerdista e o capitalismo.
Traduzido, posteriormente, para o inglês, o francês, o espanhol, o italiano, o alemão, o árabe, o búlgaro, o finlandês, o húngaro, o russo e o turco, o livro "Tenda dos Milagres" ganhou o mundo. Ele também foi adaptado para o cinema e para a televisão. Em 1977, o cineasta Nelson Pereira dos Santos produziu um longa-metragem com esta história de Jorge Amado. Oito anos mais tarde, a Rede Globo produziu uma minissérie televisiva, com trinta capítulos, com o mesmo enredo (escrita por Aguinaldo Silva e Regina Braga).
A história de "Tenda dos Milagres" é contada em dois períodos de tempo distintos. O primeiro se passa no "presente", ou seja, no final da década de 1960, quando é comemorado o centenário de nascimento de Pedro Archanjo. E quem foi Pedro Archanjo? O nome deste mulato que viveu uma vida simples em Salvador (foi bedel da Faculdade de Medicina da Bahia, atuou como ojuobá do Candomblé, foi capoeirista e escreveu alguns livros sobre os hábitos, a cultura e o folclore popular baiano) foi surpreendentemente colocado em evidência pelo professor norte-americano James D. Levenson.
O gringo tinha sido congratulado com o Prêmio Nobel e resolveu viajar para a Bahia para conhecer o país do gênio nacional que havia inspirado o seu trabalho. E só neste momento, ao revelar o nome de Archanjo, o renomado professor atiça a curiosidade da imprensa e dos intelectuais brasileiros que desconheciam as obras e a carreira de Pedro Archanjo. Inicia-se a pesquisa sobre quem foi e o que dizia os livros do baiano, além de vários eventos em sua homenagem. De repente, de completo desconhecido, Archanho se transforma em um dos mais importantes pensadores e intelectuais nacionais, motivo de estudo e de publicações no país e no exterior.
Para desvendar quem foi este homem, como viveu e o que dizia suas obras, James D. Levenson contrata um jornalista e poeta baiano para compilar as histórias do mestre. E, ao interagirmos com narração da vida de Pedro, temos o segundo momento desta história. Regressamos ao final do século XIX, quando Archanjo era jovem, e avançamos pelas primeiras décadas do século XX, quando ele já era adulto e deixou o seu legado.
Pedro Archanjo frequentava a Tenda dos Milagres, espaço democrático da cultura popular baiana localizado no centro de Salvador. Ali era possível reunir as pessoas para praticar o Candomblé, jogar Capoeira e promover festas típicas, além de promover o comércio de artigos culturais e folclóricos. Lídio Corró, amicíssimo de Pedro e um pintor especializado em retratar milagres religiosos nas telas, possuía uma gráfica no local, onde foram publicados os livros do mestre.
Pedro era um mestiço simples e de vida humilde. Sem estudo formal, o mulato trabalhou por mais de trinta anos na Faculdade de Medina da Bahia como bedel. O contato com os alunos e com os professores incentivou o bedel a pesquisar e a estudar por conta própria. Autodidata e leitor contumaz, Pedro desenvolveu ao longo dos anos uma tese que é um elogio à miscigenação do brasileiro, alçando o mulato a condição de herói nacional. Segundo sua crença, a mistura de brancos, negros e índios é o que conferia força ao brasileiro e riqueza cultural para o seu povo.
Este pensamento entra em choque com os ideais que vigoravam naquela época na Faculdade de Medicina. Liderada pelo professor Nilo Argolo, racista e defensor da superioridade da raça branca, a ideologia oposta pregava a segregação racial e acusava os negros de serem o mal do país (propensos a violência e incapazes de atividades intelectuais mais complexas). Rapidamente, Argolo e Archanjo se tornam adversários e inimigos. Cada um tenta provar que sua ideologia é a correta e cada lado utiliza de manhas e artimanhas para abalar o lado oposto.
Sem sobra de dúvidas, "Tenda dos Milagres"' é uma das obras mais politizadas de Jorge Amado. A questão do preconceito racial e da luta dos negros e dos mulatos para conquistarem o seu espaço na sociedade brasileira estão presentes em cada linha do livro. Mesmo sendo escrito quase que na década de 1970, esta obra possui muito mais características da primeira fase do escritor baiano (quando ele escrevia críticas sociais, apontando os conflitos entre dominadores e dominados, entre burgueses e trabalhadores, entre poderosos e subjulgados e entre brancos e negros) do que da segunda fase (quando passa a narrar as crônicas de costumes, confrontando os valores éticos e culturais do povo, criticando seus hábitos, seus costumes, sua cultura e seus ideais).
Muitos pontos da teoria do personagem principal de "Tenda dos Milagres" são baseados no trabalho de Gilberto Freyre. "Casa-Grande & Senzala" (Global Editora), publicado originalmente em 1933, foi a obra que colocou o mestiço brasileiro em posição de destaque na sociedade nacional. A partir daí, o mulato tornou-se o principal elemento da formação de uma ideologia da democracia racial brasileira, segundo Freire. Podemos também comparar a teoria de Pedro Archanjo no livro com a teoria modernista do Movimento Antropofágico da década de 1920. Ambas tinham o caráter de promover a cultura popular nacional frente a imposição da cultura estrangeira.
Ler "Tenda dos Milagres" é mergulhar dentro da cultura popular baiana de origem africana. Os relatos da vida do povo simples, da religiosidade, das festas populares, das crenças e do folclore local dos negros são completos e fidedignos. Destaque para a abordagem religiosa. O Candomblé é descrito em detalhes, com citações minuciosas dos deuses e das práticas, além da perseguição religiosa aos praticantes desta religião e o preconceito de parte da sociedade para com esta fé. Como todos os elementos da cultura africana, o Candomblé é valorizado e exaltado por Jorge Amado.
Por outro lado, o livro expressa o espírito antipopular da imprensa durante a primeira metade do século XX e os preconceitos da sociedade elitista da Bahia e do Brasil. Os jornalistas são retratados como interesseiros e bajuladores do poder político. As famílias brancas são descritas como opositoras das manifestações culturais de origem africana, vendo estas como bárbaras, incultas e perigosas.
A maior prova do preconceito racial está na relação de Tadeu Canhoto com a família Gomes, formada por gente branca da elite soteropolitana. Enquanto o mulato pobre frequentava a casa da família como amigo do filho mais velho do casal, ele era bem quisto por todos. Quando comunicou a intenção de se casar com a filha dos proprietários, uma moça loira e bonita, Tadeu passou a ser mal visto pelos Gomes. Teve sua entrada proibida naquela residência e passou a ser perseguido. Um negro podia ser amigo de um dos filhos da família branca, porém jamais poderia ingressar naquele clã como marido da filha, pensava o patriarca, que se opôs ao casamento inter-racial.
Curiosamente, este livro tem muitos personagens baseados em pessoas reais. Pedro Archanjo, por exemplo, é a mistura de Manuel Querino (professor e militante abolicionista que estudou a história da cultura popular do negro baiano, inclusive o Candomblé) e Miguel Archanjo Barras Santiago de Santana (comerciante do porto de Salvador que era mulherengo, farrista e tinha o posto de obá Até no terreiro do Axé Opô Afonjá). Nilo Argolo, o adversário ideológico de Archanjo, foi inspirado no médico e antropólogo Nina Rodrigues, racista e promotor das teorias de segregação racial. O cruel delegado Pedrito Gordo foi baseado no chefe de polícia soteropolitano Pedrito Gordilho, que perseguia os praticantes do Candomblé e da Capoeira no início do século XX na capital do estado.
Muitos personagens tiveram o mesmo nome das pessoas que foram baseadas. O professor Silva Virajá foi um médico famoso. Os professores Ramos e Azevedo de fato existiram na vida real. Ambos foram antropólogos, sendo o primeiro Arthur Ramos e o segundo Thales de Azevedo. E o padre Jacques foi um freire que viveu em Salvador na primeira metade do século XX.
Ao ler "Tenda dos Milagres" tem se a impressão de que se está lendo um documentário e não um romance. São tantos os elementos reais ou aparentemente reais narrados que ficamos em dúvida sobre o que é ficção e o que é realidade. Passamos até a acreditar na existência de Pedro Archanjo e de James D. Levenson.
O aspecto mais interessante do livro, na minha opinião, está na baixa autoestima dos brasileiros e no colonialismo cultural que nosso país sofre. Surpreendentemente, a imprensa, os intelectuais e a sociedade nacional só passam a valorizar Pedro Archanjo depois que um estrangeiro renomado cita o baiano com entusiasmo. "Se estão falando lá fora bem de alguém aqui dentro, é porque vale a pena considerá-lo" pensam todos. Isso é um absurdo! A valorização da nossa cultura, da nossa gente e dos nossos ideais não precisa passar pelo crivo estrangeiro, como acontece no livro e como acontece até hoje em nossa nação.
O aspecto negativo desta obra está em seu ritmo lento, na velocidade quase parando da narrativa. Tive muita dificuldade de prosseguir no meu ritmo habitual de leitura porque várias vezes dormi no meio da história ou me pegava entediado, precisando interromper a leitura. Demorei quase três semanas para concluir esta obra (algo que faria normalmente em três ou quatro dias). O excesso de relatos e o grande número de personagens tornam a história um pouco maçante. A falta de acontecimentos mais impressionantes na trama e o abuso no debate político/racional também incomodam um pouco.
Apesar de ter considerado este o livro mais chato de Jorge Amado, da lista selecionada para este mês, ao concluir "Tenda dos Milagres" fiquei com uma boa sensação. O elemento mais positivo da obra é o debate aberto sobre o preconceito racial e cultural no Brasil. Apesar de ser um discurso datado do início do século, este tema é ainda bem atual em nosso país e motivo de polêmica até hoje.
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