Um livro delicioso! "Gabriela, Cravo e Canela" (Companhia das Letras) é saborosíssimo. Comecei com o pé direito a leitura das obras de Jorge Amado deste Desafio Literário. Se o escritor baiano tiver escrito um livro melhor do que este, ele é um gênio. Na verdade, já o estou considerando assim por ter escrito uma obra dessa envergadura, o que dirá se ele tiver em seu portfólio duas ou mais histórias desta mesma qualidade.... Impossível, creio, alguém escrever algo melhor.
Publicada originalmente em 1958, esta obra marca uma mudança de estilo de Jorge Amado. Pode-se dizer que "Gabriela, Cravo e Canela" representa a entrada do escritor baiano em uma segunda fase de sua carreira. Depois de lançar títulos mais voltados para temas sociais (primeira fase), dessa vez ele envereda pela crônica de costumes (nova fase). Aborda mais intensamente os tipos populares, os coronéis, as mulheres sensuais, as damas conservadoras, os homens libertinos, os artistas, os empresários, os jovens e os idosos. Portanto, ao invés de falar de intrigas entre povo e burguesa e discutir a relação entre exploradores e explorados, Jorge Amado passa a confrontar valores éticos e culturais do povo, criticando seus hábitos, seus costumes, sua cultura e seus ideais. São exemplos dessa nova etapa, além de "Gabriela, Cravo e Canela", "Dona Flor e Seus Dois Maridos" e "Tieta do Agreste".
"Gabriela, Cravo e Canela" narra os principais fatos ocorridos na cidade de Ilhéus, no sul da Bahia, durante o ano de 1925. Esse período foi marcante para o município, pois muitas transformações econômicas, sociais, culturais e políticas ocorreram na localidade a ponto de transformá-la sensivelmente. O livro conta a história de amor do casal Nacib e Gabriela, enquanto aborda a briga política entre o velho coronel Ramiro Bastos e o jovem exportador Mundinho Falcão. No meio desses dois cenários (micro e macro), desfila uma variedade de personagens (coronéis, jagunços, prostitutas, trambiqueiros, artistas, religiosos, retirantes do sertão, comerciantes, amantes, etc.) da sociedade cacaueira de Ilhéus que dá um colorido especial para a história e provoca uma complexa polifonia narrativa.
A primeira característica marcante deste livro é a sua alta dose de sinestesia. Ao ler suas páginas, praticamente temos todos os nossos sentidos aguçados. Impossível ficar indiferente a isto. O primeiro sentido estimulado é o olfato. A cidade de Ilhéus cheira cacau ("o perfume das amêndoas do cacau seco, tão forte") e Gabriela exala o odor de cravo e canela (esse elemento é tão importante que está no título da obra). O perfume natural da moça é um importante afrodisíaco, mexendo com a cabeça dos homens do município, principalmente o dono do bar.
O paladar também é estimulado. A esposa de Nacib conquista a todos, em parte, pela sua comida. A cozinheira faz doces, salgados e pratos típicos da culinária baiana que encanta as pessoas (principalmente os homens). Quando ela para de cozinhar, um desespero se abate sobre os clientes do bar. Eles praticamente obrigam o proprietário do lugar a recontratar a cozinheira. A visão, outro sentido muito explorado na narrativa, está intimamente ligada à sexualidade das mulheres. Elas são descritas em seus detalhes, como são vistas pelos marmanjos. Os melhores exemplos são Glória e Gabriela. As duas mais belas damas da cidade são as musas dos cidadãos do sexo masculino do município e foram incansavelmente retratadas como são vistas por eles.
O tato, por sua vez, aparece mais evidente na relação carnal entre Nacib e Gabriela, principalmente quando o casal vai dormir enroscado ou quando está abraçado. Este aspecto também surge quando os clientes do bar do árabe, aproveitando-se da passagem de Gabriela pelas mesas e cadeiras do estabelecimento, passam a tocar e a mexer no corpo da moça. E por fim a audição é aflorada no linguajar das falas do povo. Cada personagem tem um jeito de se pronunciar. O Doutor é mais erudito, Gabriela fala de forma simplória, Clemente fala errado, Nacib tem um sotaque forte e o coronel Bastos é coercitivo.
A segunda característica importante de "Gabriela, Cravo e Canela" é a alta dose de sensualidade de sua personagem principal e sua sexualidade aflorada. Para um livro escrito nos anos de 1950, colocar uma mulher totalmente liberta em relação ao sexo é de uma ousadia ímpar. Gabriela praticamente vai para a cama por vontade própria com qualquer homem que lhe interesse, sem medo, preocupação ou receio religioso. Ela não tem ciúmes dos parceiros e é muito bem resolvida sexualmente (até mais do que os homens com quem convive). Jorge Amado foi muito inovador nesse ponto, provando estar algumas décadas a frente do seu tempo.
Se formos analisar atentamente, Gabriela é muito diferente de Emma, personagem principal de "Madame Bovary", romance do francês Gustave Flaubert, e de Luísa, protagonista de "Primo Basílio", obra de Eça Queiroz. Estas duas traíram seus respectivos maridos, carregando a culpa e o peso moral dessa atitude. Gabriela, por sua vez, fazia isso com liberdade e pureza, sem peso na consciência. A moça "cravo e canela" é praticamente o bom selvagem descrito por J. J. Rousseau. A retirante que chegou para trabalhar na cozinha do bar do árabe é boa de coração, livre, não possui maldades em seus atos e vê o sexo como algo normal e corriqueiro. Se deu vontade, por que não? A maldade, assim, está nos olhos da sociedade, nas regras absurdas e nos julgamentos presunçosos das pessoas. A própria instituição do casamento é, nesta obra, interpretada de maneira distinta do senso comum. Não há uma imagem idílica da cerimônia e do ato de se casar. Isso fica evidente no caso de Nacib e de Gabriela. O pior período do relacionamento dos dois foi quando estiveram casados oficialmente.
Outra questão importante para ser abordada é a relação entre o progresso e o atraso, retratada o tempo inteiro no livro. Esse jogo paradoxal está presente em quase todas as brigas entre Ramiro Basto e Mundinho Falcão (ascensão dos exportadores frente à decadência dos coronéis do cacau, a tentativa de dragagem do porto da cidade contra a proposta dessa ideia, a multiplicação dos negócios capitalistas em detrimento à economia agrária e de monocultura e a chegada de novos hábitos e costumes contra a visão conservadora da população mais antiga). As rápidas transformações sofridas pela cidade de Ilhéus, forçada a se modernizar pelos novos tempos que estão chegando, provoca choques sociais.
Grande parte da graça do livro, a meu ver, está na mudança constante de foco da narrativa, muito bem executada por Jorge Amado. Às vezes estamos lendo sobre os problemas de relacionamento de Gabriela e de Nacib (micro visão), os personagens principais da obra, para logo em seguida estarmos atentos às discussões políticas da cidade (visão macro), que afetam o cotidiano de todos os habitantes. Nesse meio tempo, temos expostas diante de nossos olhos as vidas dos vários personagens da história (visão intermediária). Esse jogo narrativo é espetacular, conferindo graça, agilidade e entusiasmo para a trama.
"Gabriela, Cravo e Canela" é um livro maravilhoso. Li suas mais de 400 páginas em quatro dias e fiquei triste ao terminá-lo. Queria prosseguir em sua história e conhecer o restante da vida dos seus personagens.
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