Millôr Fernandes foi um dos maiores cartunistas do nosso país. Publicadas principalmente na Veja, no Jornal do Brasil e no cultuado O Pasquim, suas tirinhas cômicas representavam o que havia de melhor e de mais inteligente na crítica política e na sátira social. O humor de Millôr (eita, não é que rimou!) marcou as décadas de 1960, 1970 e 1980. Em uma época em que a censura da ditadura militar imperava, seus desenhos eram ao mesmo tempo corajosos e extremamente sagazes. Não à toa, o ilustrador foi preso pelos milicos quando trabalhava para o Pasquim.
A produção de Millôr Fernandes acompanhou o artista até o final de sua vida. Recordo com saudosismo de sua coluna semanal na Veja já nos anos 2000. Era a minha favorita. A primeira coisa que fazia ao abrir a revista era conferir os desenhos de Millôr. Mesmo idoso, o cartunista era imbatível na arte de fazer o leitor rir de suas artes gráficas. Pobre dos políticos e dos famosos alvos de seu humor desbocado e preciso.
Com a morte de Millôr Fernandes em 2012, a Companhia das Letras resolveu publicar no ano passado alguns dos livros mais famosos do artista. Na verdade, o termo correto seria republicar, afinal a maioria dessas obras são de relançamentos. Nessa coletânea de títulos que voltaram a ser impressos estão: “Esta é a Verdadeira História do Paraíso”, talvez sua obra editorial mais famosa, originalmente de 1972, “A Vaca foi pro Brejo/The Cow Went to The Swamp”, de 1988, e “Tempo e Contratempo”, sua primeira publicação, de 1949. De livro novo temos “Essa Cara Não Me é Estranha e Outros Poemas”.
Como sou fã de carteirinha de Millôr, comprei no último final de semana “A Vaca foi pro Brejo/The Cow Went to The Swamp” (Companhia das Letras). De tão ansioso que estava, acabei lendo a obra na mesma noite da compra. O livro é curtinho, tem pouco mais de 120 páginas. É possível lê-lo em uma hora, uma hora e meia. Curiosamente, as ilustrações que aparecem em algumas páginas não são de Millôr. O ilustrador responsável pelo trabalho foi Nani. Coube ao Millôr exclusivamente o texto da publicação.
“A Vaca foi Pro Brejo” foi um dos maiores sucessos editoriais de Millôr Fernandes na década de 1980. A proposta do livro nasceu de um hábito antigo e meio esdrúxulo do seu autor: traduzir para o inglês expressões típicas do português brasileiro. Vale a pena ressaltar que Millôr Fernandes foi um dos principais tradutores de arte cênica do nosso país. Contudo, aqui, o que ele fazia em tom de deboche era traduzir os termos literalmente. Assim, deixava-os sem qualquer sentido. Era o lado humorístico de Millôr invadindo um dos seus (poucos) trabalhos (essencialmente) sérios (a tradução).
Utilizando o título da obra como exemplo, “a vaca foi pro brejo” se transforma em “the cow went to the swamp”. E aí vai: “Arrebentar a boca do balão” vira “to blow up the balloon´s mouth”, “almofadinha” fica sendo “little cushion”, “estar de saco cheio” é “to have a full bag”, “tirar o cu da reta” é “took his ass off the straight line” e “não estou nem aí” é “I´m not even there”.
O livro traz a tradução millordiana de mais de seiscentas expressões da nossa língua. Junto com essas traduções, há algumas tirinhas de Nani com a exemplificação absurda do ditado popular. “Está procurando um pé” se transforma em “He is searching for a foot” quando traduzido. E na ilustração, temos literalmente alguém procurando um dos pés (e não um calçado).
O lado positivo de “A Vaca foi pro Brejo/The Cow Went to The Swamp” é que seu humor se mantém atual. Apenas uma ou outra expressão da década de 1980 pode parecer estranha para o leitor de 2015.
Por outro lado, o principal aspecto negativo deste livro é que ele rapidamente se torna enfadonho. A proposta de traduzir os termos literalmente é até engraçada. Porém, repetir a graça por mais de 100 páginas me pareceu excessivo. Sabe aquele tipo de piada que de tanto repetido se torna chato? É mais ou menos o que ocorre aqui. Quando você chega à décima, à vigésima ou à trigésima tradução, o efeito do humor perde em grande parte a potência. Aí, a leitura torna-se mecânica (e sem graça) até o final da leitura da obra.
Curiosamente, o que provoca mais o riso do leitor é a coletânea de tirinhas de Nani e não o texto de Millôr. Afinal, repetimos mecanicamente os ditados populares e as expressões típicas da nossa língua sem notarmos o que elas dizem literalmente (“carioca da gema”, “é um tremendo picareta”, tirei meu time de campo”, “tudo pela hora da morte”, etc.). E, aí, quando vemos sua tradução para o desenho, acabamos achando graça.
Ao terminar a leitura de “A Vaca foi pro Brejo/The Cow Went to The Swamp” fiquei com uma sensação de decepção. Achei que iria rir mais com seu texto. Acho que talvez deva ler outra obra de Millôr Fernandes para espantar essa má impressão. Acho que vou comprar “Esta é a Verdadeira História do Paraíso” na minha próxima visitinha à livraria. Nada como uma crítica às religiões para me fazer rir um pouco.
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